Sumário: 1. Introdução; 2. Conceitos; 3.
Posicionamento do Código Civil; 4. Polêmicas acerca da Matéria; 5. Conclusões.
1. Introdução
No princípio, criou Deus os céus e a terra (…) E disse Deus: Façamos o
homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança.[i]
E parece que o homem se
sentiu incluído nesse “façamos”, isto porque com a capacidade inventiva do seu
intelecto, foi capaz de criar técnicas que, artificialmente, substituem o
mecanismo natural da criação.
Nessa esteira evolutiva
surgem variadas técnicas de reprodução humana assistida. São métodos que
envolvem desde a “simples” inseminação artificial até a fertilização em
laboratório, que consiste na manipulação do material fertilizante feminino
(óvulo) e masculino (esperma) em um tubo de ensaio (proveta) a fim de dar
início à fecundação do óvulo e o conseqüente desenvolvimento do embrião, com
sua posterior transferência no útero da mulher. Esta última técnica é comumente
conhecida como fertilização in vitro.
Apesar dos benefícios
que a técnica de reprodução assistida traz, é inegável que, a seu reboque,
surge, no ventre da sociedade, uma miríade de problemas de cunho ético, moral,
religioso, social e jurídico.
Em relação às técnicas
de reprodução humana assistida, o Estado exerce um papel de fundamental importância,
pois cria limites aos avanços biotecnológicos, regula as matérias causadoras de
controvérsias e atualiza o ordenamento jurídico às novas necessidades sociais.
Das técnicas de
reprodução humana assistida, sem dúvida, a que mais enseja questionamento é a
fertilização in vitro. Esta técnica
colheu seu primeiro resultado positivo em 26 de julho de 1978 na Inglaterra,
mais precisamente em Lancashire, onde um óvulo, extraído de Lesley Brown, foi
fecundado em uma proveta com o sêmen de seu marido, John Brown, tendo como
resultado o nascimento de Louise. No Brasil, o primeiro fruto dessa técnica foi
colhido em 7 de outubro de 1984 com o nascimento de Anna Paula Caldera. Os
vinte e cinco anos do primeiro experimento serviram para que os problemas
advindos desta técnica aflorassem, exigindo de cada Estado uma posição acerca
da matéria.
Nos casos
supramencionados a fertilização foi homóloga, isto é, tanto o óvulo quanto o
sêmen pertenciam ao casal, aos pais da criança. Entretanto, nem sempre é assim.
A fertilização in vitro também pode
ser heteróloga, onde o material fertilizante é de terceiro.
Ao passo que se avança
no estudo do tema, percebe-se que cada detalhe é responsável pelo surgimento de
inúmeros questionamentos, alguns dos quais seguem exemplificados, sem
pretensões de, no entanto, enfrentar a matéria.
a) Destino dos embriões
excedentários
Nessa seara, os
doutrinadores discutem se os embriões devem ser congelados, descartados, doados
ou se os médicos deverão fertilizar menos óvulos, de modo a reduzir a quantidade
de embriões, em que pese a maior possibilidade de fracasso no tratamento.
Dentre os
questionamentos acerca do congelamento dos embriões, pode-se apontar
exemplificadamente: essa técnica pode ter repercussão física ou psíquica no
embrião? Qual a situação jurídica do embrião congelado? Quem seria o
responsável pela guarda e depósito dos embriões?
No que concerne ao
descarte, a discussão gira em torno da seguinte questão: o embrião,
independentemente de ser in vivo ou in vitro, é vida ou ao menos tem expectativa
de vida?
No caso de doação dos
embriões excedentes não há grandes questionamentos em relação ao destino dado,
porém surgem problemas outros envolvendo principalmente a necessidade ou não do
anonimato e a relação de parentesco do embrião com sua nova família.
No que tange ao número
de embriões a serem fertilizados, não há uniformidade na comunidade científica.
Juridicamente há quem surgira que este número deve ser reduzido o máximo
possível.
b)
Anonimato dos doadores
A Resolução do Conselho
Federal de Medicina (CFM) nº 1.358/92 estabelece o anonimato dos doadores e
receptores de gametas e embriões, evitando, desta forma, complexas situações
emocionais e legais entre doadores e receptores, com repercussões no
desenvolvimento psicológico da criança nascida através deste procedimento.
Salienta-se a exigência pelo CFM de um cadastro de informações biológicas,
genéticas e fenotípicas do doador, resguardando-lhe sua identidade civil.
Entretanto, outros
afirmam que as crianças com desconhecimento de sua origem genética poderiam
apresentar incompleta percepção de sua identidade, com graves repercussões
psicológicas. O Projeto de Lei (PL) n.º 90/99 admite que a criança possa obter
todas as informações sobre o processo que a gerou, inclusive a identidade civil
do doador, no momento em que completar a maioridade, ou antes desse termo,
havendo óbito de ambos os pais.
Outro projeto propõe a
inserção de um novo artigo na Lei 8.560/92, possibilitando o acesso do nascido
oriundo de técnicas de RHA à identidade do doador, vedando, contudo, a
aquisição de direitos sucessórios.
Com relação ao anonimato
dos doadores, há, ainda, o questionamento acerca da necessidade da anuência do
consorte na hipótese de o doador do material fertilizante ser casado.
c) Variações em relação à origem
do material fertilizante e ao útero onde será transferido o embrião
Deste aspecto extraem-se
questões intrincadas, surgidas ao sabor das variadas hipóteses relativas à
origem (do casal ou de terceiro) do material fertilizante e do útero.
Vale ressaltar que toda
problemática fica ainda mais complexa se o casal beneficiado pela técnica de
reprodução assistida for homossexual, doador, ou não, de gametas e possuidor,
ou não, do útero onde será transferido o embrião. Saliente-se que o legislador
já se preocupa com a questão, haja vista o PL n.º 90/99, que veda o direito à
reprodução assistida a mulheres solteiras e a casais do mesmo sexo, admitindo-o
apenas a casados e conviventes. Entretanto, tal dispositivo, não impede
totalmente que ocorra o uso indevido da técnica, não devendo o diploma legal, de lege ferenda, fechar os olhos a esta
questão.
Outro complicador que
pode ser considerado é o fato de a transferência ser feita após a dissolução da
sociedade conjugal (ou união estável).
d) O tempo da transferência
Dentre os aspectos
relevantes a serem considerados nas técnicas de reprodução humana assistida
está o tempo da transferência em relação à constância ou dissolução do vínculo
conjugal ou da união estável.
Se a transferência
ocorre na constância do casamento ou união estável, a problemática gira em
torno da autorização de ambos os cônjuges ou companheiros. Por outro lado, se
ocorre a transferência após a dissolução da sociedade conjugal ou da união
estável, há de se perguntar qual a natureza da dissolução: se por morte, se por
separação de fato, ou de direito, ou se por divórcio.
A par de toda as
intrigantes questões que envolvem este interessante tema, o presente trabalho
focará a transferência de embriões excedentários heterólogos na dissolução da
sociedade conjugal. Nesse sentido, alguns questionamentos serão analisados de per si, a fim de se amadurecer o
entendimento acerca das implicações jurídicas deles decorrentes.
2. Conceitos
Antes de adentrar à
problemática do presente trabalho é necessário trazer à tona alguns conceitos
importantes para o bom entendimento do tema proposto.
2.1. Reprodução Assistida
É sabido que a maioria
dos avanços da ciência se destina a facilitar, melhorar e satisfazer de forma
cada vez mais completa a vida do homem.
Nesse diapasão, não poderiam
ser diferentes as perspectivas apontadas pela Biotecnologia e pela Engenharia
Genética, as quais estão possibilitando às pessoas que não conseguem gerar
filhos a chance de exercerem o direito de serem pais e mães.
A Resolução do CFM n.º
1.358/92, inciso I, n.º 2, assegura o direito de alguém à concepção e à
descendência por meio de fertilização assistida, se não colocar em risco a vida
ou a saúde da paciente e do possível descendente.
A chance de ser pai ou
mãe é dada pelas modernas técnicas de reprodução assistida, que representam a
intervenção homem no processo de procriação natural, com o objetivo de
possibilitar que pessoas inférteis ou estéreis satisfaçam o desejo de alcançar
a maternidade ou a paternidade. No dizer de Maria Helena Diniz a reprodução
assistida é um conjunto de operações para
unir, artificialmente, os gametas feminino e masculino, dando origem a um ser
humano[ii].
Conforme aponta o artigo
jurídico da acadêmica Carolina Anison Paludo:
“Os
avanços biotecnológicos vêm permitindo, através dos tempos, que o homem domine
a sua própria vida, sobretudo no que concerne à reprodução (…). A
contribuição trazida à reprodução humana, no que diz respeito à impossibilidade
de ter filhos, é muito mais notória, sobretudo, porque a transmissão de vida
constitui a mais sublime capacidade humana, à medida que traz enormes mudanças
sociais, jurídicas e psicológicas na vida de quem procria”[iii].
No que diz respeito à
regulamentação de tais técnicas, a já citada Resolução do CFM, dispõe, no seu
artigo 1º, que se deve adotar as Normas
Éticas para a Utilização das Técnicas de Reprodução Assistida, anexas à
presente Resolução, como dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos.[iv] Destacam-se
aqui alguns dos princípios gerais definidos na resolução e que devem nortear a
utilização dessas técnicas:
“I-
Princípios Gerais
1-
As técnicas de Reprodução Assistida (RA) têm o papel de auxiliar na resolução
dos problemas de infertilidade humana, facilitando o processo de procriação
quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes para a
solução da situação atual de infertilidade.
2-
As técnicas de RA podem ser utilizadas desde que exista probabilidade efetiva
de sucesso e não incorra em risco grave de saúde para a paciente ou o possível
descendente.
3-
O consentimento informado será obrigatório e extensivo aos pacientes inférteis
e doadores. Os aspectos médicos envolvendo todas as circunstâncias da aplicação
de uma técnica de RA serão detalhadamente expostos, assim como os resultados já
obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta. As informações
devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico, ético e econômico. O
documento de consentimento informado será em formulário especial e estará
completo com a concordância, por escrito, da paciente ou do casal infértil.
4-
As técnicas de RA não devem ser aplicadas com a intenção de selecionar o sexo
ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se
trate de evitar doenças ligadas ao sexo do filho que venha a nascer”.[v]
Pode se verificar, por
tais princípios, que as técnicas de RA deverão ser conscientemente utilizadas
tanto pelos profissionais que atuam nessa área, como pelos homens e mulheres
que desejem fazer uso dessas benesses da ciência.
2.2. Fecundação
O que se chama de ontogenia humana, ou seja, o
aparecimento de um novo ser humano, acontece quando se fundem os gametas
masculino e feminino, o que origina um zigoto. Este possui um código genético
único, diverso tanto do óvulo como do espermatozóide que o gerou.
A fecundação é o
processo através do qual um gameta masculino (espermatozóide) perfura as
membranas lipoprotéicas do gameta feminino (óvulo) e combina-se com esse
formando uma célula diplóide, o zigoto (com dupla carga genética), que em
poucas horas inicia seu processo de divisão celular, o que já configura o
desenvolvimento do embrião.
A fecundação ocorre
quando o óvulo encontra o espermatozóide, e este o fecunda, havendo a formação
de um novo ser. Como relata o geneticista francês Jérôme Lejeune de modo poético:
Não quero repetir o óbvio, mas na
verdade, a vida começa na fecundação. Quando os 23 cromossomos masculinos se
encontram com 23 cromossomos da mulher, todos os dados genéticos que definem o
novo ser humano já estão presentes. A fecundação é o marco do início da vida.
2.3. Concepção
Costuma-se confundir o
momento da fecundação com o da concepção, na medida em que o primeiro conduz ao
segundo. É a partir do momento em que o óvulo foi fecundado pelo espermatozóide
que se pode considerar a concepção já ocorrida.
Define o Dictionnaire de Médecine, de E. Littré,
concepção como:
“(…) substantivo feminino derivado do latim conceptio, concipere, de cum, junção
de com e capere, que denota uma ação de natureza orgânica ou vital da qual
resulta a produção de um novo ser, nas entranhas de uma fêmea animal, como
fruto do contato do espermatozóide com o óvulo, contato este denominado de
ontogenia humana”.
Seria o embrião gerado
no momento da concepção (que num estágio posterior poderia ser chamado de
nascituro, ente concebido, embora não nascido) titular de direitos, ou seja,
dotado de personalidade jurídica?
Embora esse não seja um
questionamento que permeie o viés principal do presente trabalho, é importante
expor sinteticamente a polêmica acerca da questão, visto que a atribuição ou
não de personalidade jurídica ao embrião (e sua conseqüente titularidade de
direitos), poderá causar efeitos no que tange à possível dissolução de uma
sociedade conjugal, onde o homem e/ou a mulher tenham sido responsáveis pela
presença de embriões excedentes.
Sobre o tema, duas
teorias se opõem: natalista e concepcionista. A primeira, como destacam os
profs. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona, é aquela segundo a qual a aquisição da personalidade opera-se a partir do
nascimento com vida, donde é razoável
o entendimento de que, não sendo pessoa, o nascituro possui mera expectativa de
direito[vi].
Já a teoria concepcionista defende que o nascituro adquiriria personalidade
jurídica desde a concepção, sendo dessa maneira considerado pessoa. É de se
ressaltar que essa titularidade de direitos só diz respeito aos da
personalidade, não existindo os de cunho patrimonial, que deverão estar
sujeitos ao nascimento com vida.
Esclarece Maria Helena
Diniz que:
“Na vida intra-uterina, ou mesmo in vitro, tem personalidade jurídica
formal, relativamente aos direitos da personalidade, consagrados
constitucionalmente, adquirindo personalidade jurídica material apenas se
nascer com vida, ocasião em que será titular dos direitos patrimoniais, que se
encontravam em estado potencial, e do direito às indenizações por dano moral e
patrimonial por ele sofrido”.[vii]
A autora, em outra obra,
ressalta que:
“Embora a vida se inicie com a fecundação, e a vida
viável com a gravidez, que se dá com a nidação, entendemos que na verdade o
início legal da consideração jurídica da personalidade é o momento da
penetração do espermatozóide no óvulo, mesmo fora do corpo da mulher”.[viii]
Destarte, no momento da
concepção já estariam resguardados os direitos do nascituro, sendo esse o atual
posicionamento da doutrina dominante.
2.4. Fertilização in
vitro
A mais difundida técnica
de reprodução assistida pode ser definida com a fecundação do óvulo in vitro,
ou seja, os gametas masculino e feminino são previamente recolhidos e colocados
em contato in vitro para que sejam
fecundados. O embrião resultante é transferido para o útero ou para as trompas[ix].
Essa técnica, também
chamada de ectogênese, concretiza-se
através do uso do método ZIFT (Zibot
Intra Fallopian Transfer), onde o óvulo da mulher é retirado e fecundado na
proveta, a fim de que, após a fecundação, o embrião possa ser introduzido no
seu útero ou no de outra.
Como expõe Alexandre
Gonçalves Frazão:
“O primeiro a começar este tipo de experiência em
seres humanos foi o Dr. R.G. Edwards, que por volta de 1965 realizava
experimentos tentando a maturação de ovócitos retirados de ovários em qualquer
estágio de desenvolvimento. Após o boom
da criação de Edwards, não tardou para que esse fizesse escola. Em 1980, na
cidade de Melbourne, Austrália, já registravam-se 13 casos de gravidez de um
total de 103 pacientes tratados pela técnica de fecundação in vitro. Entre 86 e 88, só na França, aproximadamente 4.000
mulheres engravidaram após ter seus embriões criados através desse processo”.[x]
2.4.1. Fertilização in
vitro homóloga
A fecundação
artificial,ou fertilização in vitro
na forma homóloga, ocorre quando os gametas feminino e masculino a serem
reunidos são do próprio casal que deseja obter filhos. A coleta do material,
obviamente, dependerá da expressa anuência do casal, ligados pelo matrimônio ou união estável, uma vez que tem
propriedade das partes destacadas de seu corpo, como sêmen e óvulo. No caso da
mulher, esta é submetida, antes da fecundação in vitro, a tratamento hormonal para ter uma superovulação, a fim
de que vários óvulos sejam fertilizados na proveta, transferindo-se, porém, por
recomendação médica, apenas quatro deles no útero.
2.4.2. Fertilização in
vitro heteróloga
Ao contrário do processo
homólogo, na fertilização in vitro heteróloga,
um dos gametas (geralmente o óvulo), ou até os dois, masculino e feminino, são
doados ao casal a fim de que possam ter filhos.
Tanto no caso de doação
de óvulos, como na doação de embriões, serão os pais aqueles socioafetivos, que
decidiram ter a criança. A filiação aqui assume um aspecto muito mais afetivo
do que biológico. Como entende, com propriedade, Maria Helena Diniz o filho deverá ser, portanto, daqueles que
decidiram e quiseram o seu nascimento, por serem deles a vontade procriacional.[xi]
2.5. Fertilização in
Vivo ou Inseminação Artificial
Aqui a fertilização se
faz pelo método GIFT (Gametha Intra
Fallopian Transfer), onde há inoculação do sêmen na mulher, sem que haja
qualquer manipulação externa do óvulo ou embrião. Há a introdução de esperma no
interior do canal genital feminino, por processos mecânicos, sem que tenha
havido aproximação sexual. O operador recolhe em uma seringa o material
fecundante, injetando-o na cavidade uterina da mulher. Essa técnica pretende
auxiliar a resolução dos problemas da fertilidade humana, facilitando o
processo de procriação quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes.
2.6.
Embriões Excedentários ou Excedentes
Os processos de
reprodução assistida claramente se destinam a concretizar o desejo de homens e
mulheres de serem pais. As tentativas de fecundação e a expectativa de maiores
acertos inevitavelmente geram um número maior de embriões do que realmente é
utilizado.
Nessa perspectiva, há a
formação de embriões excedentários, os quais, se não forem objeto de um
processo de transferência, serão, a breve prazo, biologicamente excluídos,
deixando de ter condições biológicas para serem viáveis, isto é, para o
desenvolvimento de um novo ser.
E com relação à
preservação desses embriões pelas clínicas, para que possam ser utilizados
posteriormente?
A já referida Resolução
do CFM autoriza os centros de reprodução assistida a criopreservar os embriões.
Como discorrem Andréa Aldrovandi e Danielle França:
“O número total de embriões produzidos em
laboratório será comunicado aos pacientes, para que se decida quantos
pré-embriões serão transferidos a fresco. No momento da criopreservação, os
conjugues ou companheiros devem expressar a sua vontade, por escrito, quanto ao
destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, em caso de divórcio,
doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos e quando desejam
doá-los. Não pode o casal optar pelo descarte ou destruição, nem cede-lo a
pesquisas ou experimentações, mas apenas doá-los para satisfação do projeto
parental de outro casal estéril ou utilizá-los novamente para outros filhos
futuros”.[xii] (grifo
nosso).
De acordo com entrevista
realizada pela equipe na clínica CENAFERT, com Dr.ª Maria Cecília de Almeida
Cardoso, em 12 de setembro de 2003, o número mais adequado de embriões a serem
transferidos para o útero fica em torno de dois a três.
3. Posicionamento do Código Civil
3.1. Código Civil de1916
Se a interpretação de
normas editadas em contexto histórico e social diverso daquele em que ocorre a
situação fática muitas vezes dificulta a atividade do aplicador, os obstáculos
se tornam ainda maiores se, ao tempo da edição, sequer se imaginava a
possibilidade de determinado evento ocorrer. É o que acontece, por exemplo, com
as técnicas de reprodução humana assistida, surgidas em meados do século
passado, muito depois, portanto, do advento do Código Civil de 1916.
Por esse motivo, não
havia como esse diploma legal disciplinar matérias relativas à inseminação
artificial e à transferência de embriões excedentários.
Desse modo, restava ao
intérprete, tão somente, fazer a subsunção do caso concreto às normas legais
até então existentes, o que, dada a desatualização destas, poderia gerar
decisões controvertidas em face à atual realidade técnica, científica e,
sobretudo, social.
O Código Civil de 2002,
disciplinando apenas superficialmente a matéria, deixa várias lacunas que terão
que ser decididas pelo intérprete à luz do caso concreto. É o caso da
transferência de embriões excedentários heterólogos após a dissolução da
sociedade conjugal, tema do presente artigo, do qual pelo menos dois aspectos
devem ser retirados para análise mais aprofundada.
O primeiro é a relação
de parentesco entre a criança e o doador do material fertilizante. O outro
aspecto envolve a transferência de embriões após a dissolução da sociedade
conjugal, que, subsidiariamente, exige a análise da necessariedade e da
essencialidade da autorização do cônjuge.
O Código Civil de 1916
dedica os art. 330 a
405 às relações de parentesco, objeto do Título V do mencionado diploma.
Com relação à filiação,
a referida codificação, como era de se esperar, haja vista a época de sua
elaboração, não previu a transferência de embriões heterólogos.
Desse modo, qual seria a
solução jurídica para o caso concreto em que um dos cônjuges, após a dissolução
da sociedade conjugal, viesse a realizar a transferência de embriões
heterólogos?
Assim dispõe o Código
Civil de 1916:
“Art. 338. Presumem-se concebidos na constância do
casamento:
(…)
II – os nascidos dentro nos trezentos dias
subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, desquite, ou
anulação”.
Nascendo em até
trezentos dias, após a dissolução da sociedade conjugal, presumir-se-á
concebido na constância do casamento. Decorrido este prazo, a criança não seria
filha do casal, mas de apenas um dos ex-cônjuges, o que, a rigor, só poderia
ser legalmente admitido se considerada a Constituição Federal de 1988 (CF/88),
que reconhece a família monoparental.
Esta interpretação
parece pouco recomendada, haja vista que dois embriões fertilizados em uma
mesma época, porém transferidos em momentos distintos teriam tratamentos
desiguais, que variariam em função do nascimento da criança. A nascida dentro
do prazo legalmente instituído iria usufruir de todos os benefícios advindos da
filiação legítima, a outra, apenas por ter nascido após aquele prazo, não seria
filha do casal.
À luz do dispositivo
normativo acima mencionado, pouco importa a origem do embrião (homólogo ou
heterólogo) para a presunção de concebidos na constância do casamento. Do
cotejo com o tratamento dispensado à adoção pelo art. 376 do Código Civil de
1916, onde ocorria a quebra da relação de parentesco entre o adotado e seus
pais genéticos (sendo mantidos, apenas, os impedimentos matrimoniais), pode-se
concluir que, mutatis mutandis,
deveria ocorrer o mesmo entre a criança e o terceiro doador do material
genético. Assim, não seria reconhecida qualquer relação de parentesco entre os
dois, sendo mantidos os impedimentos matrimoniais.
Digna de grifo era a
dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de se garantir esses impedimentos em
face do anonimato, ínsito às técnicas de reprodução humana assistida.
Também estava esvaziada
de importância a manutenção do material embrionário após a dissolução da
sociedade conjugal, sendo necessário para a presunção de concebidos na constância
do casamento apenas a época de nascimento da criança.
Situações como esta
mereceram uma melhor disciplina no Código Civil de 2002. É o que será abordado
no próximo sub-item.
3.2. Código Civil de 2002
O Código Civil de 2002
disciplina o tema da filiação – um dos capítulos do subtítulo Relações de
Parentesco – nos artigos 1596
a 1606.
No que tange a esse
assunto, é inegável que valiosas inovações foram trazidas em relação a seu
antecessor, porém o novel diploma ainda não trata da matéria com a devida profundidade,
pois deixou muitas lacunas que, por certo, serão preenchidas pelos tribunais e
que, inexoravelmente, ensejarão uma futura disciplina legal.
O art. 1597, inc. II, do
Código Civil de 2002, atualizando o art. 338, inc. II, do Código Civil de 1916
dispõe:
“Art. 1597. Presumem-se concebidos na constância do
casamento os filhos: (…)
II – Nascidos nos trezentos dias subseqüentes à
dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e
anulação do casamento”.
Diante da existência, neste
mesmo artigo, de incisos específicos acerca da inseminação artificial e de
embriões excedentários, fica clara a intenção do legislador em direcionar essa
norma aos nascidos mediante o método natural de reprodução humana.
O inciso III do
mencionado artigo reza que se presumem concebidos na constância do casamento os
filhos havidos por fecundação artificial
homóloga, mesmo que falecido o marido.
Vale salientar que a
expressão fecundação artificial,
trazida no dispositivo citado, abarca duas técnicas distintas: a inseminação
artificial e a transferência de embriões. Como já explicado, a primeira é
também chamada de fertilização in vivo,
a outra, fertilização in vitro.
Sem dúvida, no
mencionado inciso ocorreu uma atecnia do legislador, que quis, em verdade, se
referir à inseminação artificial. Pelo menos dois argumentos podem ser
utilizados para fundamentar esta tese.
O primeiro considera o
disposto no inciso IV: (presumem-se
concebidos na constância do casamento os filhos) havidos, a qualquer tempo,
quando se tratar de embriões excedentários decorrentes de concepção artificial
homóloga. Não fosse a interpretação ora defendida, os dois incisos (III e
IV) versariam sobre a mesma matéria, sendo que o inciso III o faz
implicitamente, pois cita uma técnica (fecundação
artificial) que engloba a outra (transferência
de embriões), enquanto o inciso IV traz expressamente o método a que se
refere. Ademais, no inciso III, indiretamente, está se considerando a qualquer tempo, tal qual o item que o
sucede.
Outro argumento é que o
inciso III só se refere a marido, o
que só faz sentido se o dispositivo quiser se referir, apenas, à inseminação
artificial. Se intencionasse abranger também a transferência de embriões,
considerando que esta técnica pode ser usada por qualquer um dos cônjuges mesmo
após a morte do outro, jamais poderia se restringir ao marido.
Na leitura do inciso IV,
verifica-se que o legislador se referiu apenas aos embriões excedentários
decorrentes de concepção artificial homóloga, excluindo do tratamento legal os
embriões heterólogos.
Trilhando nesse
raciocínio e considerando a seqüência lógica traçada no artigo, isto é,
inseminação artificial homóloga (inc. III), embriões excedentários homólogos
(inc. IV) e inseminação artificial heteróloga (inc. V), a presunção da
concepção na constância do casamento de filhos havidos da transferência de
embriões excedentários heterólogos deverá, ter tratamento expresso, de lege ferenda, pelo legislador.
Os tribunais devem
enfrentar tal matéria construindo uma interpretação do dispositivo em
consonância com os ditames da preservação do princípio da dignidade da pessoa
humana.
4. Polêmicas acerca da matéria
4.1. Reprodução Humana Assistida e União Estável
No ordenamento jurídico
brasileiro, não há qualquer impedimento legal em relação ao fato de casais que
mantenham uma união estável venham a constituir livremente sua descendência. Ao
contrário, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, §3º, erige a união
estável à entidade familiar:
“Art. 226 (…)
§3º: Para efeito da proteção do Estado, é
reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar,
devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
Diante disso, pode-se
afirmar que a exigência de vínculo matrimonial para os casais que venham a se
submeter às técnicas de reprodução assistida constitui um desrespeito às normas
constitucionais, uma postura manifestamente discriminatória e descabida, embora
adotada por países como Áustria, Japão, Coréia, Egito, Líbano, Singapura e
África do Sul, conforme ensinam Sérgio Costa, Gabriel Oselka e Volnei Garrafa [xiii].
A família decorre tanto
do casamento quanto da união estável, e não é a formalidade de relação entre os
casais que servirá de parâmetro para aplicação dos métodos reprodutivos em questão. Deve-se
considerar, nestes casos, a estabilidade
e a afetividade do casal, que será o suporte emocional que permitirá o
crescimento saudável da criança[xiv]. O casamento, em si mesmo, não é
garantia de um ambiente familiar adequado ao desenvolvimento da prole do casal.
4.2. A Filiação Sócio-Afetiva
A filiação representa um
dos direitos fundamentais do ser humano, já que é um vínculo indispensável ao
adequado desenvolvimento de sua personalidade. O desconhecimento acerca de suas
origens pode levar a danos muitas vezes irreparáveis no que tange à formação de
sua própria identidade.
Sob o aspecto do
Direito, a filiação é um fato jurídico que abrange todas as relações e,
respectivamente, sua constituição, modificação e extinção, que tenham como
sujeitos pais e filhos[xv].
Em tempos remotos, costumava-se
asseverar que a maternidade era sempre certa (mater semper certa est), ao contrário da paternidade, muitas vezes
imprecisa (pater semper incertus est).
Com o advento das técnicas de reprodução humana assistida, entretanto, pode-se
afirmar que tais princípios, anteriormente tidos como verdades absolutas, foram
sendo relativizados.
Diante do avanço da
Engenharia Genética e da Biotecnologia, avulta de importância o esclarecimento
da noção de filiação afetiva. Tal conceito nem sempre coincide com a filiação
biológica ou genética, pois considera os laços de amor e carinho existentes nas
relações familiares. Nesse sentido,
“Segundo José Roberto Moreira Filho, pela atual
orientação doutrinária, o pai e a mãe não se definem apenas pelos laços
biológicos que os unem ao menor e sim pelo querer externado de ser pai ou mãe,
de então assumir independentemente do vínculo biológico, as responsabilidades e
deveres em face da filiação com a demonstração de afeto e de bem-querer ao
menor. Para o referido autor, partindo dessa premissa, poderemos definir a
filiação do nascituro concebido por técnicas reprodutivas artificiais, tanto
pelo aspecto biológico, quanto pelo aspecto sócioafetivo”.
O Direito não pode
permanecer alheio a esse novo desafio que lhe impõem as circunstâncias sociais.
Neste sentido, preleciona o professor Sílvio de Salvo Venosa:
“De qualquer modo, no campo do Direito, por maior
que seja a possibilidade da verdade técnica, nem sempre o fato natural da
procriação corresponde à filiação como fato jurídico. O legislador procura o
possível no sentido de fazer coincidir a verdade jurídica com a verdade
biológica, levando em conta as implicações de ordem sociológica e afetiva que
envolvem essa problemática”.[xvi]
Frente ao exposto,
convém examinar as repercussões da filiação afetiva no que tange à
transferência dos embriões excedentários decorrentes da fertilização in vitro heteróloga após a dissolução da
sociedade conjugal.
4.3. Consentimento Informado e Ação Negatória de
Paternidade
Em face do critério
sócio-afetivo acima explanado, pode-se perceber que a filiação definida apenas
pelo critério biológico revela-se insuficiente diante da nova realidade
tecnológica pós-moderna. A utilização de técnicas de reprodução humana
assistida fez surgir uma modalidade peculiar de vínculo, visto que a
maternidade e a paternidade advêm não da conjunção carnal, mas sim de um querer
expressamente destinado a este fim. Destarte, a vontade do casal é fator
determinante e indispensável ao surgimento da relação entre os pais e a criança
gerada mediante as técnicas supracitadas, tendo em vista os princípios
constitucionais da paternidade responsável e do livre planejamento familiar.
Neste sentido, pondera a Professora Mônica Aguiar em sua tese de doutorado:
“O critério biológico é relevante para que se possa
atribuir essa responsabilidade, na relação paterno-filial, àquele que deu
ensejo ao nascimento. Se o dado biológico tem esse peso na concepção sexuada,
impõe-se, para a geração levada a efeito sem prévia conjunção carnal, a
redefinição do valor e dos efeitos que a vontade deve ter, mantido, de qualquer
sorte, o critério da responsabilidade, no sentido de que a paternidade e a
maternidade devem ser exercidas com o cumprimento dos direitos e deveres a ela
inerentes, e com vistas à proteção dos interesses da criança, seja qual for a
forma de procriação”.[xvii]
Diante disso, cumpre
analisar a forma por meio da qual essa vontade é exteriorizada, tornando-se
idônea a produzir efeitos na ordem jurídica, ou seja, o chamado consentimento
informado.
Insta salientar que a
única norma que se refere ao consentimento é a Resolução do CFM nº 1358/92, uma
vez que o Código Civil (art. 1.597, V) estabelece a necessidade de prévia autorização apenas nos casos de
inseminação artificial heteróloga, sendo, portanto, omisso no tocante à
ectogênese heteróloga. A referida resolução disciplina esta matéria nos
seguintes termos:
“O consentimento informado será obrigatório e extensivo aos pacientes
inférteis e doadores. Os aspectos médicos envolvendo todas as circunstâncias da
aplicação de uma técnica de RA serão detalhadamente expostos, assim como os
resultados já obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta. As
informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico, ético e
econômico. O documento de consentimento informado será em formulário especial,
e estará completo com a concordância,
por escrito, da paciente ou do casal infértil”.(grifos nossos)
Dada a obrigatoriedade
do consentimento, é imperioso questionar qual a extensão do seu âmbito de
vigência temporal frente à dissolução da sociedade conjugal. Seria este
consentimento irretratável, mesmo após a morte, separação judicial ou de fato,
ou divórcio?
Diante da lacuna
existente no ordenamento jurídico brasileiro, e em respeito ao princípio constitucionalmente
consagrado do livre planejamento familiar, os efeitos do consentimento prestado
voluntariamente por ambos os cônjuges devem ser permanentes, é dizer, o
consentimento é irretratável. Senão vejamos.
O Art. 1.597, IV, do
Código Civil dispõe:
“Art. 1.597 – Presumem-se concebidos na constância
do casamento os filhos:
IV – havidos, a
qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de
concepção artificial homóloga”; (grifo nosso)
Da leitura do inciso
transcrito, pode-se inferir que o legislador disciplinou tão-somente os casos
de fertilização in vitro homóloga,
estabelecendo, ao utilizar a expressão a
qualquer tempo, que, independentemente do momento da transferência (na
constância do casamento ou da união estável, ou após a dissolução destes), a
criança gerada em decorrência do procedimento procriacional será presumidamente
filha do casal.
Ocorre, porém, que o
fundamento do vínculo paterno-filial oriundo da ectogênese homóloga é o mesmo
que o da heteróloga, a saber: a vontade procriacional inequívoca. A única
diferença existente ente as duas técnicas citadas é, simplesmente, a origem dos
gametas. Ora, estabelecer um tratamento distinto entre ambas ao prever a
presunção em apreço exclusivamente para a fertilização in vitro homóloga, excluindo da previsão legal a técnica
heteróloga, implica na adoção do critério biológico, notadamente insuficiente
para nortear as relações advindas das modernas técnicas de reprodução
assistida. Como já exposto anteriormente, é o critério sócioafetivo o único
idôneo a enfrentar a mudança de paradigma trazida para o Direito de Família com
os hodiernos métodos procriacionais artificiais.
Neste diapasão, a
solução para a problemática em análise encontra guarida na Lei de Introdução ao
Código Civil em seu art. 4º: Quando a lei
for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. (grifo
nosso)
Desta forma, a
disposição contida no inciso IV do art. 1.597 do Código Civil deverá ser
aplicada analogamente aos casos de ectogênese heteróloga. O consentimento
torna-se, por conseguinte, irretratável, visto que a criança gerada, a qualquer
tempo, gozará da presunção prevista no diploma legal.
No entanto, de lege ferenda, esta situação deve ser
devidamente revista pelo legislador, de modo que haja a exigência do
consentimento informado expresso em relação ao emprego de ambas as técnicas,
tanto no momento do início do procedimento, quanto à época da realização
efetiva de cada transferência.
Tal regramento possibilita
uma solução mais satisfatória para os casos de dissolução da sociedade
conjugal, visto que será permitido a um dos ex-cônjuges ou ex-companheiros
revogar seu consentimento anterior. Este entendimento encontra-se em
consonância com o magistério de Fernando Abellán:
“En los casos, como el aquí analisado, en los que
la realización de la técnica de reproducción asistida se lleva a cabo a lo
largo de momentos muy diferentes de la relación personal existente entre los
miembros de la pareja, parece conveniente, después de la separación una
revalidación por parte de ambos del consentimiento prestado inicialmente,
mediante la que los progenitores ratifiquen su deseo de procreación.
Y ello porque es presumible que lá situación
afectiva de la pareja y sus deseos comunes de procreación no sean los mismos al
tiempo de la obtención de los ovocitos de la esposa y de su fecundación,
momento en el que decidieron la criopreservación de los embriones sobrantes,
que tras la separación conyugal, instante éste en que los caminos se bifurcan y
los proyectos comunes decaen”.[xviii]
Entretanto, em caso de
dissolução da sociedade conjugal, bem como dissolução da união estável, se, sem
embargo disso, ambos os ex-cônjuges ou ex-conviventes concordam com o emprego
da técnica de reprodução assistida, não há motivos para negar-lhes a
possibilidade de transferência dos embriões. Tal afirmação pode ser justificada
com base no art. 1.622, parágrafo único, do Código Civil de 2002 e no art. 42,
§4º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), os quais possuem redação
idêntica:
“Art. 1.622. (…)
Parágrafo único- os divorciados e os judicialmente
separados poderão adotar conjuntamente, contanto que acordem sobre a guarda e o
regime de visitas, e desde que o estágio de convivência tenha sido iniciado na
constância da sociedade conjugal”.
Destarte, infere-se que
as disposições mencionadas acabam por autorizar, analogamente, a possibilidade
de casais que se encontrem nas condições descritas se valerem do mesmo direito,
transferindo os embriões oriundos da constância do casamento e realizando,
assim, seu desejo de conceber uma prole comum.
Assim, resulta evidente
que a mudança da affectio maritalis conduz
à necessidade da ratificação do desejo de procriar para que haja a formação do
vínculo paterno-filial, sob pena da caracterização de uma família monoparental.
Imaginemos o seguinte
exemplo: homem e mulher, casados, ambos inférteis, decidem empregar a técnica
da reprodução assistida para procriar. Depois de algumas tentativas sem
sucesso, decidiram pela criopreservação dos embriões excedentários heterólogos.
Dois anos após esta decisão, ocorre a dissolução do vínculo matrimonial.
Passados cinco anos do desenlace, a mulher resolve utilizar o embrião
criopreservado para ter um filho. O homem, por já estar envolvido em outro
relacionamento, não anui com o intento da ex-esposa, deixando de ratificar o
seu consentimento anteriormente oferecido. Assim, se a mulher levar a cabo a
transferência do embrião e der a luz à uma criança, somente a maternidade estará
definida, havendo a configuração de família monoparental.
Mas, como tornar tal
procedimento exigível? Cumpre analisar como ocorre, atualmente, o processo para
utilização da transferência dos embriões excedentários nas clínicas que
trabalham com RA.
De acordo com entrevista
realizada pelo grupo na clínica de reprodução humana assistida CENAFERT, com a
Dr. Maria Cecília, constatou-se que se costuma empregar o consentimento
informado, no qual o casal deve conceder sua assinatura demonstrando
conhecimento de todas as nuanças do processo. Não se trata, pois, de um
contrato no sentido clássico do termo, embora, ainda segundo a médica, existam
certas clínicas que empreguem tal acordo.
Atualmente, tal consentimento
informado exige autorização para o procedimento da fertilização apenas uma vez.
Contudo, de acordo com explicações já salientadas neste trabalho, vislumbra-se
a importância de ser(em) exigida outra(as) autorização(ões), tantas quantas
necessárias, no momento mesmo da transferência dos embriões. Respeita-se,
assim, a chamada vontade complexa,
isto é, a vontade do casal considerada como ente único, no qual cada
manifestação funciona como parte indispensável para formação do todo. Logo, a
vontade solitária de cada consorte não tem valor neste sentido.
Ademais, recomenda-se, de lege ferenda, que seja elaborado um
formulário padrão a ser adotado pelas clínicas no desenvolvimento deste
procedimento. A fiscalização deve ser feita pelo Ministério da Saúde, o qual
será responsável por zelar pela idoneidade do processo. As clínicas ficam,
portanto, obrigadas a consultar a vontade dos sujeitos, ressaltando-se que se,
por acaso, desrespeitem tal comando, estão sujeitas às multas abstratamente
cominadas pela lei. Estas atitudes fariam com que, certamente, houvesse uma maior
proteção à vontade dos casais, visto que esta é o fundamento do vínculo a ser
formado.
Outra conseqüência da adoção do
critério sócioafetivo de filiação é a inadequação da ação negatória de
paternidade no tocante ao questionamento da existência do vínculo jurídico da
filiação oriunda das técnicas de RA.
De fato, a ação referida seria
uma contradição à anuência anterior expressa constante do documento de
consentimento informado. Além disso, a impugnação da paternidade iria de
encontro à Teoria do Ato Próprio – venire
contra factum proprium –, segundo a qual é inadmissível que alguém exercite
uma faculdade em sentido contrário a um comportamento anteriormente adotado.
Nesta linha:
“Ao prestar consentimento necessário à realização
de ato médico destinado à procriação assistida, a pessoa exerce um direito
potestativo apto ao estabelecimento de uma situação jurídica de filiação, que
não pode mais, por sua vontade em sentido oposto, desconstituir”.[xix]
O art. 1.601 do Código Civil
prevê a ação negatória de paternidade, declarando, ainda, sua
imprescritibilidade. Contudo, o legislador ordinário não fez referência à
impropriedade de tal ação para os casos decorrentes das técnicas de reprodução
assistida. A omissão constatada, de lege
ferenda, deve ser suprida por meio da introdução de um novo parágrafo ao
art.1.601, que passará, portanto, a ter a seguinte redação:
“Art. 1.601- Cabe ao marido o direito de contestar
a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível.
§1º- Contestada a filiação, os herdeiros do
impugnante têm direito de prosseguir na ação.
§2º- É proibida essa impugnação, em relação ao
nascido em decorrência de técnica de reprodução assistida[xx],
quando haja o cônjuge livremente consentido no emprego desta técnica médica”.
Em face disso, é necessário que o
legislador atente para as deficiências constantes do texto do código civil
vigente, com o fito de adaptá-lo às novas necessidades sociais.
4.4.
Maternidade e Paternidade Post Mortem
Uma vez exarada a vontade de
realizar o procedimento de fertilização heteróloga, é necessário que se recorra
a um segundo consentimento, quando da efetiva transferência dos embriões
excedentários. Justifica-se tal assertiva por força da já citada vontade complexa.
Destarte, se um dos cônjuges ou
conviventes vier a falecer depois de concedida a autorização para se iniciar o
procedimento de fertilização in vitro,
sem que, no entanto, tenha havido a transferência de embriões excedentários
oriundos na constância do casamento, não haverá presunção de paternidade ou de
maternidade. Isto porque seria necessária a ratificação do consentimento
anterior para a formação do vínculo paterno-filial, o que, no caso em apreço, é
impossível dado o falecimento de um dos cônjuges ou companheiros, que,
obviamente, não poderá manifestar sua vontade.
5. Conclusões
I – O Código Civil de 1916 não
tratou, especificamente, da transferência de embriões excedentários, devido às
limitações próprias da época em foi elaborado;
II – O Código Civil de 2002
trouxe valiosas (embora tímidas), inovações acerca da matéria, não a
disciplinando, ainda, de maneira completamente adequada;
III – No ordenamento jurídico
brasileiro, não existe impedimento para que os casais que convivem em união
estável possam ter a liberdade de constituir sua descendência mediante técnicas
de reprodução humana assistida;
IV – Com os avanços da Engenharia
Genética e da Biotecnologia, avultam de importância os laços de amor e carinho
existentes entre as relações familiares, em detrimento dos vínculos puramente
biológicos. Daí a necessidade de se trazer à baila o conceito de filiação
sócioafetiva;
V – A vontade procriacional
inequívoca de ambos os cônjuges ou conviventes é fundamento do vínculo jurídico
paterno-filial advindo das técnicas de reprodução humana assistida;
VI – O consentimento informado é
a forma adequada para manifestação da vontade procriacional, idônea a produzir
efeitos na órbita jurídica;
VII – Constatada a lacuna existente no Código Civil Brasileiro, esta deverá ser colmatada
por meio da aplicação análoga do que preceitua o art. 1597, IV, de forma que o
consentimento prestado voluntariamente por ambos os cônjuges seja considerado
irretratável;
VIII – De lege
ferenda, deve ser respeitada a teoria da vontade complexa, isto é, deve-se
exigir dupla manifestação volitiva de ambos os cônjuges ou conviventes, em
momentos distintos, a saber: tanto no início do procedimento quanto à época da
realização efetiva de cada transferência;
IX – É importante a criação de um formulário padrão que
consubstancie a exigência do consentimento informado, o qual deve ser utilizado
por todas as clínicas de fertilização humana nas técnicas de reprodução
assistida, sob pena de multa cominada em lei;
X – A ação negatória de paternidade não deve ser
utilizada para impugnar a filiação decorrente do vínculo em apreço, devendo ao
art. 1601 do Código Civil ser acrescentado um parágrafo 2º, com esse teor;
XI – Nos casos de maternidade ou paternidade post mortem, devido à impossibilidade de
novo consentimento a ser prestado pelo (a) falecido (a), exigido pela teoria da
vontade complexa, verifica-se a impossibilidade de se configurarem os vínculos
de parentesco.
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acessado em 01/06/2003 às 9:53 h
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito
Civil: Direito de Família. 3ª ed., v.6. São Paulo: Atlas, 2003.
Notas:
[i] Bíblia Sagrada: Gênesis 01: 1 e 26a. 2ª
ed. rev. cor, 4ª imp., tradução João Ferreira de Almeida. São Paulo:
Geográfica, 2000, p. 3-4.
[ii] DINIZ,
Maria Helena. O Estado Atual do
Biodireito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.475.
[iii] PALUDO, Carolina Anison. Bioética e Direito: Procriação Artificial, Dilemas
Éticos, p.2.
[iv]
Resolução n.º 1358/92 do Conselho Federal de Medicina, art. 1º.
[v]
Resolução n.º 1358/92 do Conselho Federal de Medicina
[vi]
GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil,
Parte Geral. v.1. São Paulo: Saraiva, 2002. p 91.
[vii] DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 2ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2002, p.113-114.
[viii] DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 6ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2000, p 10.
[ix]
ALDROVANDI, Andrea; FRANÇA, Danielle Galvão de. A reprodução assistida e as relações de parentesco. Jus Navigandi,
Teresina, a. 6, n. 58, ago. 2002.
[x] FRAZÃO, Alexandre Gonçalves. A fertilização ‘in vitro’: uma nova
problemática jurídica. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 42, jun. 2000.
[xi] DINIZ,
Maria Helena. A ectogênese e seus
problemas jurídicos, apud FERNANDES, Tycho Brahe. A Reprodução Assistida em face da Bioética e do Biodireito: Aspectos do
direito de família e do direito das sucessões. Ed. Diploma Legal:
Florianópolis, SC, 2000, p 76.
[xii]
ALDROVANDI, Andrea; FRANÇA, Danielle Galvão de. A reprodução assistida e as relações de parentesco. Jus Navigandi,
Teresina, a. 6, n. 58, ago. 2002.
[xiii]
COSTA, Sérgio Ibiapina Ferreira; OSELKA, Gabriel e GARRAFA, Volnei. Iniciação à Bioética. Brasília: Conselho
Federal de Medicina, 1998, p. 117.
[xiv] COSTA,
Sérgio Ibiapina Ferreira; OSELKA, Gabriel e GARRAFA, Volnei. Iniciação à Bioética. Brasília: Conselho
Federal de Medicina, 1998, p.117.
[xv] VENOSA,
Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito
de Família. 3ª ed., v.6. São Paulo: Atlas, 2003. p. 265.
[xvi]
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil:
Direito de Família. 3ª ed., v.6. São Paulo: Atlas, 2003. p. 266.
[xvii]
SILVA, Mônica Neves Aguiar da. Reflexos Jurídicos dos Avanços Tecnológicos no
Direito à Filiação. 2003, 339
f. Tese (Doutorado em Direito Civil) –
Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
p.158
[xviii]
ABELLÁN, Fernando. Reproducción humana
asistida y responsabilidad médica:consideraciones legales y éticas sobre
casos prácticos. Granada: Editorial Comares, 2001, p.53.
[xix] Idem,
p.162.
[xx] É
importante ressaltar que a Drª Mônica Aguiar propõe, com base na legislação
lusa, redação equivalente à acima grafada, sendo que a única diferença é a
expressão técnica de reprodução assistida,
já que a autora refere-se a inseminação
artificial.
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