Resumo: O presente ensaio tem por objetivo estabelecer uma relação entre alguns pontos principais da Teoria do Direito de Herbert Hart e a recente decisão do STF relativa ao reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar. Para tanto, nos propomos a apresentar um breve panorama da Teoria de Hart, notadamente no que concerne à ideia de Direito como união de normas primárias e secundárias. Passaremos, ainda, por uma sucinta noção acerca do fenômeno da mutação constitucional e sobre o tema união homoafetiva no Brasil. Por fim, apresentaremos uma breve análise demonstrativa dos pontos de contato do positivismo de Hart e o referido julgamento da Suprema Corte.
Palavras-chave: Positivismo Jurídico – Herbert Hart – Normas Primárias e Secundárias – Mutação Constitucional – União Homoafetiva – Entidade Familiar
Abstract: This paper aims to establish a relationship between some main points of the legal theory of Herbert Hart and the recent Supreme Court decision on the recognition of the homoaffective union as a family entity. To this end, we propose to provide a brief overview of Hart’s theory, especially regarding the idea of law as a union of primary and secondary standards. We will also, for a succinct idea about the phenomenon of constitutional mutation and the theme homoaffective union in Brazil. Finally, we present a brief analysis of the demonstrative points of contact with the positivism of Hart referred to the Supreme Court trial.
Keywords: Legal Positivism – Herbert Hart – Primary and Secondary Standards – Constitutional Mutation – Homoaffective Union – Family Entity
Sumário: 1. Introdução – 2. A Teoria positivista de Herbert Hart: 2.1. Breves apontamentos acerca da vida e obra de Herbert Hart; 2.2. O Direito como união de normas primárias e secundárias – 3. O fenômeno jurídico da mutação constitucional: breves apontamentos – 4. União Homoafetiva: breves traços sobre o tema no Brasil – 5. O reconhecimento da união estável homoafetiva como entidade familiar pelo STF à luz do positivismo de Herbert Hart – 6. Considerações Finais – Referências
1 INTRODUÇÃO
Local: Brasil, Cidade de Brasília, Plenário do Supremo Tribunal Federal. Data: 5 de maio de 2011. O que poderia ter sido um dia comum na rotina de milhões de brasileiros, acabou por marcar uma verdadeira quebra de paradigma, ao menos formal, no conceito de entidade familiar no Direito Brasileiro. Estamos a nos referir ao histórico julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277/DF e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132/RJ, por meio das quais se questionava a constitucionalidade do tratamento legal dado ao instituto da união estável, a qual se reconhecia apenas entre pessoas de sexos diferentes. A decisão histórica da Suprema Corte tratou de reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo, a união homoafetiva, como entidade familiar.
A referida decisão foi recebida com festa por milhares de parceiros homossexuais, bem como por todas as demais pessoas que sempre entenderam haver um verdadeiro descompasso entre a Lei e a vida real, aquela que se passa fora das quatro paredes do Parlamento, aquela na qual os direitos previdenciários, os sucessórios, os patrimoniais, enfim, todos aqueles direitos garantidores da dignidade da pessoa humana eram negados àquele grupo minoritário.
Na esfera técnica do Direito, tratou-se, aquela decisão, de uma das atribuições do Supremo Tribunal Federal, consoante o art. 102, da Constituição Federal[1], qual seja, a de processar e julgar as ações diretas de inconstitucionalidade e declaratórias de constitucionalidade, bem como apreciar as arguições de descumprimento de preceito fundamental, enfim, o controle concentrado de constitucionalidade. Mas existe uma outra maneira de ler o fato jurídico ocorrido naquele dia no Plenário do STF: uma leitura à luz da Teoria Geral do Direito.
Com o presente ensaio pretendemos, em sede da Teoria Geral do Direito, demonstrar a possibilidade de leitura da referida decisão, um exemplo do fenômeno jurídico da mutação constitucional, à luz do Positivismo de H. L. A. Hart, notadamente com base na obra O Conceito de Direito, de autoria do jurista inglês.
Mas quem foi Hart, e o que nos legou com sua Teoria?
2 A TEORIA POSITIVISTA DE HERBERT HART: BREVE PANORAMA
2.1 Breves apontamentos acerca da vida e obra de Herbert Hart
Nascido em 18 de julho de 1907, em Harrogate, na Inglaterra, Herbert Lionel Adolphus Hart graduou-se em direito em 1929. Profissionalmente, atuou como advogado em Londres de 1932 a 1939, basicamente em causas relacionadas a impostos e relações de confiança.
Com o início da Segunda Guerra Mundial, Hart, convidado pelo Departamento de Guerra, passou a atuar na inteligência militar britânica. Trabalhou, de 1939 a 1945, no MI5, a divisão de inteligência britânica, juntamente com dois filósofos de Oxford, Gilbert Ryle e Stuart Hampshire. Em face de suas conversas com os citados estudiosos, Hart interessou-se pelo assunto filosofia.
Com o fim da guerra, o jurista passou a lecionar em Oxford, onde também concluiu pós-graduação em filosofia. Sua experiência com a advocacia, os assuntos da guerra e o estudo da filosofia influenciaram Hart na elaboração de sua teoria, notadamente no que toca ao aspecto relacionado com a moral e o direito. Hart é tido como pertencente a uma corrente positivista inclusivista, uma vez que não exclui totalmente a Moral do campo de definição do Direito, como o fazem os positivistas da corrente exclusivista.
Hart ainda atuou como professor visitante na Universidade de Harvard, de 1956 a 1957, bem como na Universidade da Califórnia, de 1961 a 1962. Aposentou-se em Oxford, no ano de 1978, falecendo naquela cidade, em 1992. Além de O Conceito de Direito, publicado em 1961 na Inglaterra, livro em que expõe sua Teoria e que serve de base a este artigo, Hart publicou as seguintes obras: Definition and Theory in Jurisprudence (1953); Causation in the Law, em coautoria com Tony Honoré (1959); Law, Liberty and Morality (1963); The Morality of the Criminal Law (1964); Punishment and Responsibility (1968); Essays on Bentham: Studies in Jurisprudence and Political Theory (1982) e Essays in Jurisprudence and Philosophy (1983).
Como já dissemos, Herbert Hart, jurista positivista, elaborou uma Teoria jurídica própria, na qual se destacou por definir o Direito como um sistema de união de normas primárias e secundárias. Neste ponto, entendemos oportuna uma breve exposição sobre a essência da Teoria de Herbert Hart.
2.2 O Direito como união de normas primárias e secundárias
Inicialmente, haja vista estarmos no campo do positivismo jurídico, notadamente em face do estudo sintético de uma teoria positivista – a de Herbert Hart -, faz-se mister trazermos à colação o escólio de Norberto Bobbio[2] sobre o assunto:
“[…] o positivismo jurídico é uma concepção do direito que nasce quando ‘direito positivo’ e ‘direito natural’ não mais são considerados direito no mesmo sentido, mas o direito positivo passa a ser considerado como direito em sentido próprio. Por obra do positivismo jurídico ocorre a redução de todo o direito a direito positivo, e o direito natural é excluído da categoria do direito: o direito positivo é direito, o direito natural não é direito. […]”
Em sua obra O Conceito de Direito, o positivista Herbert Hart se propôs a discutir três problemas recorrentes relativos ao campo de definição do direito, aos quais chamou de Questões Persistentes. Segundo o jurista inglês:
“Eis, portanto, os três problemas recorrentes: em que o direito difere das ordens apoiadas por ameaças e como se relaciona com estas? Em que a obrigação jurídica difere do dever moral e como se relaciona com este? O que são normas e até que ponto elas são os elementos essenciais do direito?”[3]
Neste trabalho, haja vista o objetivo de relacionar a teoria proposta com o tema mutação constitucional, em face da recente decisão do supremo Tribunal Federal, ficaremos limitados à questão referente à divisão de normas conforme idealizada pelo jurista em estudo.
Podemos, a título de simplificação, dizer que Hart estabeleceu como ponto de partida para sua discussão a teoria imperativa do Direito, elaborada pelo positivista inglês John Austin. Para Austin, o Direito seria um conjunto de regras ou comandos impostos por um soberano e acompanhados de ameaças que assegurariam seu cumprimento. Herbert Hart, a despeito de discordar do colega positivista, reconheceu um ponto positivo naquela teoria, a ideia de obrigação, de onde estabeleceu um novo começo. Assim Hart[4] se posicionou:
“[…] não obstante seus erros, a teoria de que o direito consiste em ordens coercitivas partiu da percepção perfeitamente correta de que, onde existe o direito, a conduta humana se torna, num certo sentido, obrigatória ou não opcional. Aquela teoria foi feliz ao escolher esse ponto de partida, e partiremos também da mesma ideia para construir uma nova descrição do direito em função da inter-relação entre as normas primárias e as secundárias. É aqui, entretanto, neste primeiro passo crucial, que mais temos a aprender com os erros da teoria já analisada.”
Para Herbert Hart, não se deveria pensar no Direito somente como comandos obedecidos por força de coerção, uma vez que existiriam normas que não implicariam necessariamente em uma ordem ou comando a ser cumprido sob pena de sanção por parte de um soberano. Podemos entender aqui o soberano como o Estado-Legislador. O jurista de Oxford entendia que o sistema jurídico seria complexo e formado por normas de dois tipos diferentes, mas relacionados. Um dos dois tipos de normas seriam chamadas de primárias ou de tipo básico. Tais normas seriam as que exigiriam que as pessoas agissem de uma determinada maneira ou se abstivessem de agir em determinadas situações, independentemente das vontades individuais. As normas do outro tipo foram chamadas por Hart de secundárias ou parasitárias em relação às normas primárias. Por meio das normas secundárias, fazendo ou dizendo determinadas coisas, as pessoas poderiam introduzir novas normas ou modificar as do tipo principal existentes. Com espeque nas normas secundárias, poderia ainda ser controlada a aplicação das normas primárias, ser determinada sua forma de incidência, bem como se poderia proceder à extinção de determinadas normas pertencentes ao grupo básico.[5]
Continuando sua exposição acerca da existência dos dois tipos de normas acima referidas, Hart registrou em seu livro:
“As normas do primeiro tipo impõem deveres; as do segundo tipo outorgam poderes, sejam estes públicos ou privados. As do primeiro tipo dizem respeito a atos que envolvem movimento físico ou mudanças físicas; as do segundo dispõem sobre operações que conduzem não apenas a movimentos ou mudanças físicas, mas também à criação ou modificação de deveres ou obrigações.”[6]
Neste ponto façamos uma pequena pausa para inserir uma reflexão que ora nos vem à mente. Não seria a mutação constitucional, por meio da técnica da interpretação conforme a Constituição, um exemplo das normas secundárias propostas por Hart, uma vez que o Supremo Tribunal Federal, estaria, aí, determinando uma nova forma de incidência de uma determinada norma? Nossa vontade de responder a essa pergunta de forma peremptória é enorme, mas é prudente avançarmos um pouco mais em nosso estudo.
Continuando a breve exposição acerca da Teoria proposta por Hart cabe-nos trazer ao corpo deste trabalho a noção de defeito que estaria relacionado às normas primárias. Para ele, as normas primárias estariam sujeitas a três defeitos. A uma, em um determinado grupo social, em face das normas estarem não sistematizadas, se houvesse alguma dúvida com relação ao âmbito de aplicação de determinada norma, ou seja, de certeza com relação à validade de uma norma, não haveria um procedimento específico ou até mesmo autoridade que dirimisse tal questão. A duas, outro defeito seria a estaticidade das normas primárias, que não conseguiriam acompanhar formalmente a evolução da sociedade. Por último, o terceiro defeito seria a ausência de uma instância responsável pela pacificação social e solução de conflitos, o que acabaria por levar à ineficiência das normas primárias.[7]
Nesse ponto, Hart definiu Direito como um sistema composto da união de normas primárias e secundárias, estas corrigindo cada um dos três defeitos que estariam ligados àquelas. O defeito da incerteza das normas primárias seria solucionado com a introdução de uma norma de reconhecimento. Já o defeito do caráter estático das normas primárias teria como solução as normas de modificação. Por fim, o defeito da ineficiência seria eliminado por meio das normas de julgamento. Resumindo, seriam estas as normas secundárias: as de reconhecimento, as de modificação e as de julgamento.[8]
Entendemos, a esta altura, que a resposta ao questionamento apresentado no que toca ao fenômeno da mutação constitucional já está bem mais fácil de ser proferida. Entretanto, é prudente que façamos uma breve passagem sobre o tema Mutação Constitucional.
3 O FENÔMENO JURÍDICO DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL: BREVES APONTAMENTOS
Em aulas de história, é muito comum alguns professores desenharem no quadro negro (na realidade de hoje, quadro branco, já para indicar a evolução das coisas) uma linha do tempo, sobre a qual marcam pontos que representariam diversos marcos da evolução da humanidade. A evolução é algo inerente à vida. Em pleno século XXI, na era da internet e da globalização, tal evolução é ainda mais acelerada.
O Direito, como integrante da vida de uma sociedade organizada, para não dizer seu principal pilar, não fica fora da evolução mencionada. Para ficarmos na seara do positivismo jurídico, tema base deste ensaio, e considerando a Lei como principal fonte do Direito, imaginemos uma norma escrita editada há mais de 70 anos atrás. Estaria tal norma totalmente condizente com a dinâmica atual da sociedade, haja vista a evolução no referido período? Poderíamos dizer que, na maioria dos casos, haveria dissonância entre o texto legal e os valores atuais de uma sociedade. Quem reforça com um exemplo o que afirmamos aqui é Pedro Lenza[9]:
“Damos um exemplo, valendo-nos do Código Penal brasileiro, apenas para ilustrar: antes do advento da Lei n. 11.106/2005, os arts 215, 216 e 219 do CP traziam a expressão ‘mulher honesta’. Quando falamos que este termo sofreu uma mutação interpretativa, não queremos dizer que o artigo em si foi alterado, mas, sim, que o conceito de ‘mulher honesta’, ao longo do tempo, levando em consideração os padrões aceitos pela sociedade da época, adquiriu significados diversos. ‘Mulher honesta’ no começo do século XX tinha determinado significado, diverso do que adquire a ‘mulher honesta’ dos dias atuais ‘Mulher honesta’ em uma cidade talvez tenha um significado diverso do que adquire em cidade de outra localidade”.
Dessa forma, podemos entender que o fenômeno da mutação constitucional é responsável pela atualização de normas jurídicas pelo uso, por parte do Supremo Tribunal Federal, da técnica da interpretação conforme a Constituição, oxigenando tais normas e as mantendo vivas em face da evolução e alteração do comportamento da sociedade brasileira. Dirley da Cunha Júnior[10] assim define o fenômeno em questão:
“[…] a mutação constitucional é um processo informal de alteração de sentidos, significados e alcance dos enunciados normativos contidos no texto constitucional através de uma interpretação constitucional que se destina a adaptar, atualizar e manter a Constituição em contínua interação com sua realidade social. Com a mutação constitucional não se muda o texto, mas lhe altera o sentido à luz e por necessidade do contexto. É um fenômeno que vem se revelando necessário para a respiração das Constituições, cujos enunciados muitas vezes ficam asfixiados à espera de revisões formais que nunca vêm ou que, vindo, não atendem as demandas do texto e dos fatos.”
Aqui já estamos prontos para responder à questão posta por nós no corpo deste texto, ou seja, podemos afirmar sim, que a técnica da interpretação conforme, por meio da qual se manifesta o fenômeno da mutação constitucional, se enquadra na classificação de normas secundárias da Teoria de Herbert Hart, mais especificamente na categoria das normas de modificação. Por meio da interpretação conforme, o STF modifica a interpretação de determinada norma jurídica, adaptando-a aos novos tempos. Em outras palavras, a mutação constitucional elimina o caráter estático da norma primária, o conceito de mulher honesta, por exemplo, para tomar emprestada a ilustração proposta por Pedro Lenza e transcrita no corpo deste ensaio.
Importa-nos, neste breve estudo, destacar a questão da união homoafetiva, a mutação constitucional representada por recente decisão do Supremo Tribunal Federal acerca do tema e sua relação com parte da Teoria positivista de Herbert Hart. Como o tema da união homoafetiva vem sendo tratado no país é pressuposto para continuarmos nossa caminhada.
4 UNIÃO HOMOAFETIVA: BREVES TRAÇOS SOBRE O TEMA NO BRASIL
Passamos a analisar de forma sucinta, a partir deste momento, a questão da união homoafetiva no Brasil, estabelecendo uma relação entre a recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o tema e a Teoria de Herbert Hart.
No que toca ao tema homossexualidade e homoafetividade, seria, no mínimo leviano, tentar estabelecer uma linha do tempo na qual procurássemos demonstrar a origem e a evolução dos referidos conceitos. Seja por questões ligadas à psicologia, no caso a opção sexual de cada pessoa, seja por fatores biológicos, ligados ao componente genético de cada ser humano, o certo é que o assunto é inerente à humanidade, e com ela caminha. São questões ligadas à liberdade de escolha de cada um, na busca daquilo que mais importa em termos de dignidade da pessoa humana – a busca pela felicidade.
No que toca ao Direito de Família, importante inovação foi introduzida pelo Constituinte de 1988 no texto da Carta Maior,[11] ao ampliar o âmbito da proteção jurídica por parte do Estado daquela família formada somente pelo casamento entre um homem e uma mulher para outros tipos de entidades familiares: a formada pela união estável e a família monoparental, ou seja, aquela formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Sabemos, hoje, que o texto constitucional não fechou as portas ao intérprete e que as relações familiares têm como base o enlace afetivo entre as pessoas. Apesar de não constar no texto constitucional, dois irmãos, órfãos de pai e mãe, formam uma entidade familiar.
Mas no nosso estudo específico importa a questão da união estável. Como já trazido à colação neste trabalho, o art. 226, § 3º, da Constituição Federal limitou a possibilidade de seu reconhecimento jurídico somente às uniões entre pessoas de sexos opostos. Silenciou o Constituinte Cidadão no tocante às uniões homoafetivas, as quais, de fato já existiam na década de 80, não só no Brasil, mas em todo o mundo. Ocorre que de 1988 para os nossos dias a sociedade evoluiu e, na seara das relações familiares, tal evolução é ainda mais significativa. Nesse sentido lecionou Maria Berenice Dias[12]:
“As relações familiares são as mais sujeitas a mutações, pois regidas por costumes que se alteram cada vez em maior velocidade. O gradual afastamento da sociedade da moral judaico-cristã rompeu o modelo conservador da família, que dispunha de um perfil patriarcal, hierarquizado, patrimonial, matrimonializado e heterossexual. A revolução feminista, bem como o surgimento dos métodos contraceptivos e de reprodução assistida, produziu profundas alterações na estrutura familiar. O desafio foi abandonar o tradicional conceito de família, identificado exclusivamente com o casamento, e encontrar novos referenciais, para albergar as organizações que se formaram fora do laço da oficialidade. O comprometimento mútuo decorrente de um elo de afetividade levou a doutrina a chamar de família a multiplicidade de vínculos que se identificam pelo afeto.”
Como situação de fato, as uniões homoafetivas começaram a ser levadas à apreciação do Judiciário. Afinal, estavam em jogo direitos sucessórios, previdenciários, direitos relativos à adoção por parceiros homossexuais, enfim, o direito à felicidade de uma minoria precisava ser respeitado, ademais em um Estado Democrático de Direito, onde a tolerância a e o respeito entre as pessoas são essenciais. Esse pressuposto de tolerância democrática é reforçado pelo escólio de José Afonso da Silva[13]:
“[…] a democracia é um processo de convivência social em que o poder emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do povo. Diz-se que é um processo de convivência, primeiramente para denotar sua historicidade, depois para realçar que, além de ser uma relação de poder político, é também um modo de vida, em que, no relacionamento interpessoal, há de verificar-se o respeito e a tolerância entre os conviventes”.
Pioneiro no que toca ao tema, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul começou a proferir e confirmar decisões que garantiam direitos aos parceiros homossexuais. Tal pioneirismo daquela Justiça gaúcha mereceu a atenção da jurista Maria Berenice Dias, que acabou por publicar no ano de 2003 uma obra, já referenciada neste trabalho, dedicada a abordar o pioneirismo daquelas decisões. Sobre a tendência do Judiciário brasileiro, já naquela época, a autora previu:
“A postura da jurisprudência, juridicizando e inserindo no âmbito do Direito de Família as relações homoafetivas, como entidades familiares, é um marco significativo. Inúmeras outras decisões despontam no panorama nacional a mostrar a necessidade de se cristalizar uma orientação que acabe por motivar o legislador a regulamentar situações que não mais podem ficar à margem da justiça. Consagrar os direitos em regras legais talvez seja a maneira mais eficaz de romper tabus e derrubar preconceitos. Mas, enquanto a lei não vem, é o Judiciário que necessita suprir a lacuna legislativa, mas não por meio de julgamentos permeados de preconceitos ou restrições morais de ordem pessoal.”[14]
Poderíamos citar uma extensa casuística acerca do tema do reconhecimento dos direitos de parceiros homossexuais pela Justiça brasileira, entretanto, um exemplo de enorme relevância e atualidade passa a ser objeto do presente estudo: a recente decisão, por unanimidade, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a possibilidade jurídica da união estável entre pessoas do mesmo sexo, a união homoafetiva, bem como atribuiu a tal união o caráter de entidade familiar. Trataremos, enfim, de analisar alguns pontos de contato entre decisão em questão e a Teoria de Herbert Hart.
5 O RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA COMO ENTIDADE FAMILIAR PELO STF À LUZ DO POSITIVISMO DE HERBERT HART
Inicialmente cabe-nos, em poucas linhas, tecer considerações sobre o conteúdo do julgamento ocorrido no STF acerca do tema objeto desta análise.
O julgamento em pauta tratou da apreciação conjunta da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277/DF e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132/RJ. A primeira, proposta pela Procuradoria-Geral da República, pedia o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, com a ampliação dos direitos conferidos aos companheiros heterossexuais nas uniões estáveis aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo. A segunda, proposta pelo governador do estado do Rio de Janeiro, pedia, sob os argumentos da isonomia, liberdade e dignidade da pessoa humana, que o regime jurídico das uniões estáveis, previsto no artigo 1.723 do Código Civil[15], fosse estendido às uniões homoafetivas de funcionários públicos civis daquele estado.
Acompanhando o voto do Relator, Ministro Ayres Britto, por unanimidade, o Plenário do STF decidiu pela procedência das ações propostas e com efeito vinculante, dando interpretação conforme a Constituição no sentido de excluir qualquer significado do artigo 1.723 do Código Civil que pudesse vir a impedir o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar.
Iniciando nossa análise do julgado com base na Teoria de Hart, podemos destacar um primeiro ponto de contato: as normas secundárias de reconhecimento. Como já vimos, um dos defeitos das normas primárias, qual seja o da imprecisão, seria, segundo Hart, corrigido pelas normas secundárias de reconhecimento. Mas vejamos no caso qual seria a norma primária: aquela prescrita pelo art. 1.723 do Código Civil. Por meio de uma interpretação a contrario sensu do enunciado normativo do referido artigo da codificação civil brasileira, podemos extrair a norma: não é possível juridicamente a união estável entre pessoas do mesmo sexo, bem como uniões homoafetivas não podem ser reconhecidas como entidade familiar. Considerando a Teoria de Herbert Hart, estaríamos diante de uma ordem de não fazer dirigida ao Estado, qual fosse a de não reconhecer a união homoafetiva como união estável, nem tampouco conceder status de entidade familiar a tal situação.
Ora, conforme já demonstramos, as uniões homoafetivas no Brasil há muito são situações de fato, à margem do Direito. A evolução da sociedade trouxe incerteza quanto à validade daquela norma insculpida no enunciado normativo do art. 1.723 do Código Civil. Tal incerteza necessitava ser apagada do mundo da vida daquela minoria afetada pela restrição representada pela Lei. Como norma secundária de reconhecimento, a atribuição de competência pela Constituição de 1988 ao STF para apreciar e julgar a ADI e a ADPF veio para corrigir o defeito representado pela incerteza gerada no seio social.
Um segundo ponto de contato que podemos vislumbrar diz respeito às normas secundárias de modificação, também já referenciado em sede da Teoria do jurista inglês. Vejamos: se a sociedade passou por evolução, notadamente em seu comportamento, corroborada por decisões judiciais de primeira e segunda instâncias, conforme mencionado por Maria Berenice Dias em linhas anteriores deste ensaio, podemos perceber que não houve acompanhamento por parte da legislação no mesmo sentido. Afinal, o art. 1.723 do Código civil continuava lá, estático. Tal estaticidade deveria ser corrigida pelas normas secundárias de modificação, a priori, uma correção a cargo do Legislativo. No entanto, diante da inércia do legislador ordinário, a Corte Suprema brasileira, tratou de aplicar a norma secundária de modificação representada pela técnica de interpretação conforme a Constituição, corrigindo o defeito, in casu, o caráter estático do art. 1.723 do Código Civil. Foi um marcante exemplo do fenômeno da Mutação Constitucional no direito brasileiro.
O terceiro defeito apresentado pela norma primária em discussão, qual seja o da inefetividade, é o último ponto de contato do julgamento em questão e o positivismo de Herbert Hart, dentro do que nos propusemos em nossas reflexões. Nesse aspecto, podemos dizer que a norma secundária de julgamento poderia ser representada pela estrutura representada pela divisão de funções estatais, sendo a função de julgar e estabelecer a paz social inerente ao Poder Judiciário. No que toca às uniões homoafetivas, a inefetividade vinha sendo corrigida de forma difusa, por meio de decisões judiciais de primeiro e segundo graus, faltava uma correção definitiva do defeito da inefetividade, a qual foi obtida com a decisão do Supremo Tribunal Federal em sede do julgamento das Ações discutidas neste trabalho.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após termos chegado ao fim das breves reflexões propostas no início deste ensaio, podemos tecer, em forma de síntese, as seguintes considerações finais:
1. Em um primeiro momento, após tecer breves comentários acerca da vida e obra de Herbert Hart, trouxemos, em síntese apertada, um dos principais pontos da Teoria proposta pelo jurista inglês: a ideia de Direito como a união de normas primárias e secundárias. Vimos que as normas primárias trariam um comando de fazer ou não fazer algo e que as secundárias serviriam para corrigir defeitos apresentados pelas primeiras, suplementando-as. Tais defeitos seriam basicamente três: a incerteza, o caráter estático e a inefetividade. A correção ficaria a cargo, respectivamente, de normas secundárias, divididas em três categorias: as de reconhecimento, as de modificação e as de julgamento.
2. Passamos em seguida a tecer breves comentários acerca do fenômeno da Mutação Constitucional, como responsável, em face da técnica da interpretação conforme aplicada pelo STF, pela oxigenação de normas jurídicas em descompasso com a realidade fática e evolução da sociedade.
3. Interessados no estudo do tema mutação constitucional em face das uniões homoafetivas, prosseguimos com um breve panorama sobre o tema no Brasil, destacando o comportamento do judiciário pátrio, valendo-nos de valiosa contribuição da jurista gaúcha Maria Berenice Dias, que demonstrou uma forte tendência do Judiciário em reconhecer direitos a parceiros homossexuais, entretanto, frisando a necessidade de colocação de um ponto final na questão a nível geral.
4. Por fim, estabelecemos alguns pontos de contato entre a Teoria positivista de Hart e a recente decisão do STF que reconheceu a possibilidade da existência de união estável entre pessoas do mesmo sexo, bem como concedeu a tais uniões o caráter de entidade familiar. No que toca à Teoria de Herbert Hart, pudemos constatar a presença tanto das normas primárias quanto das secundárias no caso da decisão referida.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Especialista em Direito do Estado pela Faculdade de Tecnologia e Ciências de Salvador, Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia
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