Com o objetivo de fazer frente a diversos assuntos profissionais relacionados à minha profissão de advogado e porque a tarde da última quinta-feira, 30 de março, fez-se ensolarada, resolvi ir de Porto Alegre, onde resido, até a cidade de Gravataí, de motocicleta.
Ao entrar na Av. Castello Branco, logo nos primeiros metros, deparei-me com uma “blitz”, realizada pela Brigada Militar. Todos conhecemos o sistema: ficam os soldados à direita da via, numa espécie de corredor, para onde são os veículos escolhidos obrigados a entrar. Num primeiro momento, nada achei de estranho, porque o caráter preventivo é imanente às atribuições das polícias de segurança. Quando desliguei a moto e sofri a abordagem policial, entretanto, comecei a perceber não ser a situação tão normal como se me afigurara. Primeiro, porque dentre os “escolhidos” somente se encontravam veículos velhos e motocicletas. Segundo, pela forma como fui abordado. Dirigiu-se a mim um miliciano, que me pareceu de patente superior a outro que o acompanhava, ambos armados – escudados por um terceiro, que ficava por trás, portanto uma espingarda (calibre 12), dedo ao gatilho -, e disse-me que tirasse o capacete e me colocasse de costas para eles (tudo sob os olhares dos inúmeros motoristas que lá circulavam naquele horário – por volta das 15:00h), pés afastados, braços sobre a nuca, para inspeção. Ponderei-lhe que tal ato constituir-se-ia numa ilegalidade, porque a lei somente autoriza a busca pessoal sem mandado judicial em caso de “fundada suspeita” de cometimento de algum crime por parte do revistando, como preceitua o art. 240, § 2º do CPP, e que, por óbvio, não havia suspeita nenhuma, muito menos “fundada”, nem sobre mim, nem sobre os demais que ali estavam sendo vítimas daquele constrangimento. Gritou-me o soldado que não; que me estava dando uma “ordem”; e que também as malas da moto seriam devassadas, assim como a minha pasta profissional, porque o simples fato de estar dirigindo aquele veículo já me transformara em suspeito, haja vista os inúmeros “assaltos praticados por motoqueiros”. E foi o que aconteceu: sofri a humilhação de ser revistado em público, pernas abertas, braços ao alto, sob a mira de uma arma grosso calibre. Somente depois do que me foram pedidos os documentos pessoais e do veículo.
Numa república, todos devem ser igualmente considerados frente à lei. E é o que, preconiza a Constituição Federal. Ademais, não tem o policial, antes de identificar o abordado, a obrigação de saber com quem vai tratar. Neste passo, não se discute o seu direito de proteger-se preventivamente. Não é esta a questão.
O que não se pode aceitar em um Estado Constitucional e Democrático de Direito é o fato de serem as pessoas atacadas na rua, para serem humilhadas na frente dos demais, porque obrigadas a saírem de seus veículos e sofrerem revistas, em posições vexatórias, como se fossem suspeitos de algum crime, somente porque têm um carro mais velho, ou dirigem motocicletas, ou se vestem fora do padrão burguês. Tal atitude é ilegal: não se pode cogitar de “fundada suspeita” sobre todos os cidadãos, ou mesmo sobre determinada parcela da cidadania. A isto, chama-se preconceito.
Tal postura, que evidentemente se constitui num abuso de autoridade, diga-se, tem cariz ideológico. Foi implementada pelo Secretário de Segurança recém-licenciado e bem absorvida pela Secretaria atual, a qual, ao que parece, continuará a estimular a bizarra gincana que mede os brigadianos pelo número de abordagens diárias, na esteira do movimento fascista conhecido como da “Lei e Ordem”.
No Piratini, entrementes, é recorrente a lembrança do personagem de Martin Page, Antoine, que proclamava: “Eu não quero ter força para ser eu, nem coragem nem cobiça de ter algo parecido com uma personalidade. Uma personalidade é um luxo que me custa muito caro. Quero ser um espectro banal. Estou sufocado pela minha liberdade de pensamento, por todos os meus conhecimentos, pela minha abominável consciência!” (PAGE, Martin. Como me tornei estúpido, trad. Carlos Nougué, Rio de Janeiro: Rocco, 2005, pp. 25-26). E concluia: “a renúncia a uma verdadeira inteligência é o preço a pagar por ter certezas e é sempre uma reserva invisível no banco da nossa consciência” (Ibid., p. 62).
Advogado em Porto Alegre. Professor de Direito Penal e de Direito Processual Penal na ULBRA/Gravataí – RS
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