Algumas notas sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

Constitui objeto deste trabalho discorrer brevemente a respeito de alguns momentos marcantes da trajetória do Direito Administrativo positivo regente da estrutura educacional brasileira. Ao chegar ao sistema vigente, pretende-se apontar em algumas notas conceituais e principiológicas os fundamentos que o sistema ordenatório ostenta em nossos dias, particularmente no que respeita à educação superior.

1. Breve resenha histórica do Direito Educacional positivo

O Direito Educacional constitui-se em ramificação do Direito Administrativo, à vista de que seu objeto constitui-se essencialmente no estudo do dever estatal de prestar educação formal à sociedade e na organização e funcionamento das estruturas habilitadas para a consecução daquele fim. Especializa-se, assim, o Direito Administrativo[1] no contexto do dever de educar, com retrospecto histórico bastante jovem. Em verdade, as primeiras disposições do ordenamento brasileiro relativamente à educação em qualquer dos seus níveis, nasce pouco antes do Império, no primeiro quartel do século XIX[2]. Ranieri[3] nota que o ensino superior mantido entre 1810 e 1879 foi exclusivamente público e privativo do Poder Central, e visou a formação de uma ideologia de unidade nacional capaz de justificar a continuidade dos sistemas social, econômico e político existentes na época do Império, nos mais puros moldes da universidade napoleônica. Em sede de educação superior universitária autônoma, não se retroage mais do que ao início do século XX, com a edição da Lei Orgânica do Ensino Superior e Fundamental da República, baixada pelo Decreto nº 8.659, de 5.4.11, como resultado da chamada “Reforma Rivadávia[4].

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Este primeiro diploma teve o mérito de demarcar uma autonomia universitária em suas três dimensões básicas (didática, administrativa e financeira)[5]. Na sua esteira, foram fundadas as primeiras universidades brasileiras, em Curitiba (1912) e no Rio de Janeiro (1920).

Seguiu-se a chamada “Reforma Vaz Rocha”, contida no Decreto nº 16.782-A, de 13.1.25, que teve por tônica o viso de aumentar o controle da União sobre o sistema escolar, numa tentativa de conter movimentos ideológicos, que realmente viriam a redundar nas crises políticas e sociais deflagradoras da Revolução de 1930[6].

Outra reforma sobreveio ao novo regime político implantado no limiar da Era Vargas, por força do Decreto nº 19.851, de 11.4.31. Apelidada inicialmente de “Reforma Francisco Campos”, ficou conhecida como o “Estatuto das Universidades Brasileiras”, e teve importantes méritos. Desde logo, cumpre salientar que atribuiu personalidade jurídica às universidades e conferiu-lhes autonomia administrativa, didática e disciplinar, nos limites da lei (art. 9º).

No entanto, Ranieri critica o Estatuto, porque manteve a orientação normativo-detalhista da administração pública brasileira: a exaustiva regulamentação do sistema universitário, desdobrada em cada regimento de cada instituto universitário, limitava-se à liberdade de organização, além de dificultar eventuais modificações na estrutura regimental estabelecida, à vista das inúmeras aprovações requeridas[7]. Por isto mesmo, o então chamado “Conselho Nacional de Educação” tornou-se, no dizer de Leão de Mattos, o desaguadouro de intermináveis questões e um dos principais instrumentos do controle do governo federal sobre as universidades[8].

A Constituição do Estado Novo imprimiu retrocesso à crescente autonomia das universidades, ao estabelecer competências que acentuavam a intervenção da União (Constituição de 1937, arts. 15, IX, e 16, XXIV). Com a criação da Universidade do Brasil pela Lei nº 452, de 1937, fixou-se uma espécie de padrão do ensino superior brasileiro, num esforço nítido de linearização organizacional da academia, ignorando-se com isso que a universidade, como a própria carga etimológica dessa palavra está a apontar, respirasse um pluralismo de idéias e concepções pedagógicas. O trato uniformizador ignorou as peculiaridades regionais do País, dando às universidades um tratamento administrativo e didático incompatível com o avanço de autonomia que se havia alcançado no art. 3º do Estatuto das Universidades Brasileiras.

Chega-se finalmente à primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, editada pela Lei nº 4.024, de 10.12.61. Sob as luzes democratizadoras da Constituição de 1946, o projeto do Governo admitia a competência supletiva dos Estados-membros (arts. 5°, XV, d, e 6°) para dispor sobre a organização de seus sistemas de ensino (art. 171). A liberdade de cátedra foi preservada (art. 168, VII). No entanto, a liberdade de pensamento foi restringida pela proibição de “propaganda de subversão da ordem” (art. 141, § 5°).

Fundamental, no entanto, foi a manutenção da gratuidade do ensino público[9] e a obrigatoriedade da educação fundamental, embora não tivesse havido qualquer progresso constitucional nesta matéria.

Logo após a edição da Carta de 1967, é editado o monumental Decreto-lei n° 200, de 25.2.67, cujas disposições alcançam as instituições federais de ensino. Tanto assim é que três dias depois é editado o Decreto-lei n° 252, de 28.2.67, que introduz a estrutura departamentalizada no ensino superior federal, já conceituando o departamento como “menor fração da estrutura universitária para todos os efeitos de organização administrativa e didático-científica e de distribuição de pessoal” (art. 2°, § 1°).

A atomização departamental do Decreto-lei n° 252/67 serviu como modelo para a estrutura universitária proclamada na Lei n° 5.540, de 28.11.68, que vigorou até a edição da LDB de 1996, apenas com algumas alterações que advieram do Decreto-lei n° 464, de 11.2.69, e, mais recentemente, das Leis 9.131, de 24.11.95, e 9.192, de 21.12.95.

Importa salientar o esforço de unificação estrutural do sistema federal de ensino superior que decorreu da Lei n° 7.596, de 10.4.87 (Lei da Isonomia), época em que foi construída uma equiparação entre as universidades federais autárquicas e as fundacionais, essas de origem privada mas quase inteiramente mantidas pelos cofres da União. Esta equiparação foi comandada a partir da federalização das universidades fundacionais, que passaram a integrar a Administração Federal Indireta por força da disposição do art. 4°, § 2°, do Decreto-lei n° 200/67, com a redação dada pelo Decreto-lei  n° 2.299, de 21.11.86[10].

A Lei n° 7.596/87 impôs em seu art. 3° a edição de um Plano Único de Classificação e Retribuição de Cargos e Empregos – PUCRCE, que vigorou a partir do Decreto n° 94.664, de 23.7.87, e das Portarias MEC ns. 474[11] e 475, ambas de 26.8.87. Estes diplomas compõem o quadro de carreira das instituições federais de ensino, vigente até hoje, não obstante diversas de suas disposições terem sido revogadas pelo advento do Regime Jurídico Único dos Servidores Civis da União[12].

Após a extinção do Conselho Federal de Educação durante a gestão de Itamar Franco, houve inovações legislativas com a Lei n° 9.131, de 1995, que criou o Conselho Nacional de Educação, e com a Lei n° 9.1921, do mesmo ano, que alterou o processo de escolha dos dirigentes das instituições de ensino superior. O tema movimentava o Congresso Nacional, que já discutia havia algum tempo várias propostas para introdução de uma reforma constitucional consistente. Após delongada trajetória na Câmara dos Deputados, que iniciou com o Projeto de Lei de autoria do Deputado Octávio Elisio em dezembro de 1988, passou pelo substitutivo do Deputado Jorge Hage em junho de 1990, começou a tramitar em paralelo no Senado Federal um Projeto de Lei de autoria do Senador Darcy Ribeiro (PL/67, de maio de 1992). Em notável manobra política, o mesmo Senador veio a assumir a Comissão de Constituição e Justiça, onde colheu a oportunidade para “bombardear” o PLS Jorge Hage, que já havia passado pela Câmara, como lembra Saviani[13]. Abriu assim caminho para que o projeto de sua autoria, já alterado com alguns avanços, fosse aprovado no Senado e remetido à Câmara, na forma do Substitutivo Darcy Ribeiro, onde acabou aprovado em 17 de dezembro de 1996 e promulgado três dias depois sem vetos como a Lei n° 9.394.

Polêmica desde seu nascedouro, a LDB mostrou ranços e avanços, como salientou Pedro Demo[14]. Com precisão, esse autor aponta que a nova Lei assumiu necessário e inadiável compromisso com a avaliação acadêmica e com a formação de professores, além de estimular o direcionamento de investimentos financeiros para a capacitação e a valorização do magistério. A despeito desses pontos positivos, o texto não soube inovar a própria noção de educação, como também não tratou de renovar o universo acadêmico. Demo[15] é enfático a esse respeito, quando afirma que talvez não fosse exagero aventar que a parte mais caduca da LDB é sua visão de educação superior. Cabe salientar ainda que a Lei ignorou por completo o desenvolvimento da informática como ferramenta indispensável para a expansão e intensificação da atividade educacional.

Apesar das críticas de que a LDB tem sido alvo, é inegável que abriu espaço para uma discussão que jamais havia alcançado tamanha intensidade, no tocante à educação superior. Estimulou que os princípios constitucionais que a Constituição havia introduzido com caráter programático viessem a alcançar maior eficácia substancial, ao mesmo tempo em que desnudou as imensas fragilidades que os sistemas de ensino enfrentam.

2.Premissas fundamentais da LDB

2.1.Conceito de educação

Como é próprio do Direito Público, seus institutos têm base conceitual nas especificações que lhe são dadas pelo texto legal. Assim o é com a educação, que assim está descrita na LDB:

Art. 1º. A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.

O diploma anterior não se ocupava de conceituar a figura nuclear. O cunho estritamente jurídico destas notas não nos autoriza avançar no exame deste dispositivo, posto que tarefa dos especialistas em educação. Nota-se, em linhas gerais apenas, que o legislador adotou um conceito universal de educação, vendo-a como um processo de construção do homem como ser social a partir das experiências informais do quotidiano, do envolvimento nos mecanismos formais de aprendizado e da observação do ambiente coletivo.

Esta é tipicamente uma norma de natureza programática que, como definiu Celso Ribeiro Bastos, não reúne condições de uma integral aplicação de imediato[16]. Limita-se a enunciar uma constatação fenomenológica da ordem jurídica e de determinada estrutura social, nos domínios sobre os quais versa. Sua positividade é parcial, porquanto carece da edição de uma outra norma, de cunho preceptivo, que a integre no ordenamento jurídico, e que a torne capaz de incidir, condição final para justificar a sua própria existência no plano formal.

Mas o pecado maior do enunciado reside no teor do parágrafo primeiro do dispositivo, ao estatuir que esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias. Esse enunciado é arcaico, na medida em que estritamente associa a aprendizagem à noção de aula, completamente ultrapassada. Demo[17] salienta que nenhuma teoria moderna importante daria aval a esse tipo de percepção, que se baseia na polarização superada entre aquele que ensina e aquele que aprende. Conclui o renomado sociólogo da UnB[18] que considera-se erro grosseiro tomar a aprendizagem do aluno como resultado de uma atividade chamada de ensino(…).

Nesse ponto, então, que versa sobre o componente de maior relevância de uma lei que pretende definir as diretrizes e bases para a educação em nosso país, constata-se timidez e fragilidade legislativa. Na última década, os sistemas de educação, em especial no nível superior, tiveram um crescimento quantitativo notável, mas, regidos por uma diretriz que em nada avançou em relação às décadas que antecederam esta LDB, o cenário educacional vigente mostra-se pobre e ineficiente. Não fosse a incorporação de novos conceitos por iniciativa exclusiva do magistério brasileiro, o quadro seria muito pior. É rigoroso e urgente que, passados apenas nove anos de sua edição, que a LDB seja reformada para incorporar com o caráter impositivo da lei os avanços científicos e técnicos já alcançados no ambiente acadêmico, mas até hoje pouquíssimo postos em prática.

Por outro lado, uma importante inovação da década de 90 para a educação superior não foi gerada pela LDB, diga-se a bem da verdade, em que pese tenha por ela sido consolidada. A experiência pioneira e bem sucedida com os cursos de graduação em Direito a partir da Portaria n° 1.886, de 1994, que introduziu uma fórmula curricular mais aberta, induziu a edição da regra que ingressou no ordenamento positivo educacional por meio do art. 9°, § 2°, c, da Lei n° 9.131, de 1995. Essa disposição cria as diretrizes curriculares, como regime legal de estruturação curricular para todos os cursos de graduação. Não custa lembrar que a figura do currículo mínimo do sistema anterior teve como objetivos iniciais, além de facilitar as transferências entre instituições diversas, garantir qualidade e uniformidade mínimas aos cursos que conduziam a um diploma profissional. A nova LDB, em seu art. 48, caput, acabou com a vinculação entre diploma e exercício profissional, ao dispor que os diplomas constituem-se em prova da formação recebida por seus titulares.  O enunciado aporta nova compreensão à matéria, basicamente porque os currículos dos cursos superiores, formulados na vigência da legislação revogada pela Lei 9.394, de modo geral caracterizavam-se pela excessiva rigidez decorrente, em grande parte, da fixação detalhada de mínimos curriculares que resultavam na progressiva diminuição da margem de liberdade que foi concedida às instituições para organizarem suas atividades de ensino.

Em suma, os caminhos abertos pela nova LDB, aplicados à regra instituidora das diretrizes curriculares, apontam no sentido de assegurar maior flexibilidade na organização de cursos e carreiras, atendendo à crescente heterogeneidade tanto da formação prévia como das expectativas e dos interesses dos alunos. Este entendimento, fixado no Parecer n° 776/97, da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação[19], conduziu à elaboração de diretrizes curriculares para todos os cursos de graduação, com resultados nitidamente positivos para a melhoria da qualidade acadêmica.

2.2.Dever da família e do Estado.

O diploma proclama que a educação é dever da família e do Estado. Até a Constituição de 1967 (art. 168)[20], os textos legais se limitavam a proclamar que a educação é direito de todos, mas se furtava de proclamar a quem impor o dever de assegurar a consecução de tal prerrogativa. A constitucionalização da educação como dever de Estado somente adveio da Emenda Constitucional nº 1, de 1969[21], havendo reiteração do enunciado na Carta vigente (art. 205).

É justamente esta norma de cunho principiológico que legitima as regras constitucionais e infra-constitucionais que dispõem sobre um sistema oficial de ensino, e o financiamento de sua manutenção e desenvolvimento. No dizer de José Afonso da Silva, tal concepção importa, como já dissemos, em elevar a educação à categoria de serviço público essencial que ao Poder Público impende possibilitar a todos[22].

A LDB limitou-se a repetir o enunciado do art. 208 da Constituição, no tocante ao dever do Estado de educar. Obrigatório e gratuito é o ensino fundamental. O ensino médio submete-se à diretriz de progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade (LDB, art. 4°, II). No tocante ao ensino superior, o dever de Estado limita-se a garantir o acesso segundo a capacidade de cada um (LDB, art. 4°, V). Essa noção, de cunho liberal e individualista, alivia o comprometimento do Estado com a oferta de vagas nos cursos superiores da rede pública, o que é parcialmente contrabalançado pela diretriz que impõe o incremento da oferta de cursos de graduação no período noturno (LDB, art. 47, § 4°).

Os fins colimados pela educação nacional foram expressamente enunciados no art. 205 da Carta de 88, dando assim suporte à parte final do art. 2º da LDB, para afirmar que a educação visa precipuamente ao desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da soberania e sua qualificação para o trabalho.

3.Princípios informativos do ensino

Sunfeld[23] escreveu que os princípios são as idéias centrais de um sistema, ao qual dão sentido lógico, harmonioso, racional, permitindo a compreensão de seu modo de organizar-se. Por isso mesmo, Bandeira de Mello[24] afirmou que os princípios constituem-se no meio de especificar e reger o sistema de uma disciplina jurídica.

Inegavelmente, os princípios constituem-se em verdadeiras normas jurídicas, ensina Bobbio. Para o jusfilósofo italiano[25], os princípios gerais são normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais. Ao lembrar que a palavra princípios leva a engano, tanto que é velha questão entre os juristas se os princípios gerais são normas, põe-se taxativo: para mim não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as outras.

À sua vez, Carmen Rocha[26] explica que o regime jurídico administrativo brasileiro de hoje em dia tem natureza constitucional decorrente da sede normativa na qual repousa a principiologia diretora dos comportamentos administrativos. Reporta-se, para assim afirmar, aos princípios enunciados no art. 37 da Constituição da República, que regem a Administração Pública. Por estas razões, expressos ou tácitos, os princípios guardam a mesma força normativa. A impositividade e normatividade de que se revestem, são sempre materialmente imperativas, ainda que nem sempre explicitamente estabelecidas.

Ante estes fundamentos, é de toda relevância passar os olhos sobre a vertente principiológia enunciada pela nova LDB.

Estes princípios informativos foram afirmados inicialmente pela Carta de 88 (art. 206) para impor que a educação formal garanta a realização substancial – e não meramente formal – de um direito ao ensino. Reproduzem-se no art. 3° da LDB, com acréscimos decorrentes da especialização dos princípios constitucionais. Passa-se a examinar aqueles que interessam particularmente à educação superior.

3.1.Igualdade de condições de acesso e permanência na escola

A lei fixa diretriz programática de igualdade de condições de acesso e permanência na escola (LDB, art. 3°, I), dispondo mais minudentemente sobre mecanismos de sua implementação substancial. Mas é preciso lembrar que não há igualdade de condições de acesso à escola quando não há oferta de vagas, às vezes nem de escola, num grande número de localidades brasileiras. Do mesmo modo, não há condições de permanência na escola se o aluno se evade precocemente ante a inarredável necessidade de trabalhar para auxiliar, ou mesmo para garantir, o orçamento familiar.

A realidade econômico-social do País realmente não está a permitir que se anteveja a concretização do comando legal. Não se trata, assim, de um problema a ser resolvido no plano jurídico-formal, mas, muito antes disto, através da implementação de ações governamentais que concretamente assegurem a disponibilidade a toda a população de salas de aula e professores.

Pontes de Miranda[27] registrou severa crítica por oportunidade da constitucionalização do direito à educação:

A educação somente pode ser direito de todos se escolas em número suficiente e se ninguém é excluído delas; portanto, se há direito público subjetivo à educação e o Estado pode e tem de entregar a prestação educacional. Fora daí, é iludir o povo com artigos de Constituição ou de leis. Resolver o problema da educação, não é fazer leis, ainda excelentes; é abrir escolas, tendo professores e admitindo alunos.

Para garantir o direito a educação a todos os brasileiros, é fundamental que o Estado implemente substancialmente o mecanismo de financiamento que a LDB anuncia nos artigos 69 e 70. Tal providência, no entanto, depende de efetiva vinculação[28] dos recursos de que trata o art. 212 da Constituição à arrecadação efetiva, o que tem sido objeto de constante resistência governamental. Além disto, há óbices que sistematicamente entravam a adoção de meios eficazes de assegurar o financiamento das instituições públicas de ensino superior. De um lado, como são constituídas com a forma jurídica de autarquias ou fundações públicas, essas entidades sujeitam-se aos princípios informadores e às limitações impostas à administração pública pelos arts. 37 e 39 da Constituição. De outro, o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a autonomia das universidades tem um sentido essencialmente acadêmico, obsta a que essas instituições persigam meios gerenciais mais eficientes de execução de seus recursos financeiros, dadas as mencionadas restrições constitucionais e legais[29].

A implantação do regime de quotas na educação superior nos últimos anos, tanto para estudantes oriundos de escolas públicas, como para estudantes afro-descendentes, tem assento no chamado princípio da discriminação positiva. Segundo esse ideário, busca-se atenuar os efeitos de discriminação duradoura mediante a adoção de regras de discriminação inversa. Esse tema tem sido objeto de intensa exploração política, apesar de que, no entendimento do autor deste trabalho, espelha clamoroso desvio do sentido próprio do tema. Ambos os mecanismos de quotas têm por objeto reduzir desigualdades, o que é relevante e necessário, mas não atentam para o fato de que o fator principal de desigualdade social é econômico e não racial. Assim, acredita-se que melhores resultados seriam alcançados se a discriminação positiva tivesse em mira a hipossuficiência econômica de larguíssimo segmento de nossa população. Além disto, as escolas públicas não servem como parâmetro indicativo de hipossuficiência econômica, nem a afro-descendência pode ser identificada com precisão na sociedade brasileira, de intensa miscigenação.

3.2.Liberdade intelectual

A doutrina constitucional brasileira optou pelo modelo de liberdade como uma proibição ao Estado de obrigar a quem quer que seja que faça ou deixe de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (Constituição, art. 5°, II).

O indivíduo é portanto sujeito ativo de um direito subjetivo à liberdade, sendo sujeito passivo o Estado. Melhor é entender este direito muito mais como uma garantia fundamental do art. 5°, IX, que consagra a liberdade de expressão da atividade intelectual, do que meramente como um princípio informativo do ensino, elencado no inciso II do art. 206. Vê-se compatibilidade do princípio  com a garantia fundamental, mas sem dúvida um está submetido ao império do outro.[30]

No plano principiológico, propõe a LDB, em consonância com o texto constitucional, liberdade para aprender, ensinar, pesquisar, e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber.

A educação formal há de ser ministrada de um modo sistemático, obedecendo os princípios e as regras próprios da Pedagogia, mas sem apor freios à inesgotável criatividade e ao poder de contraposição que são ínsitos ao indivíduo. Pontes de Miranda[31] sustenta este ponto de vista, advertindo que se (o Estado) elimina a liberdade de pensar, ou a de cátedra, é um monstro. É o Leviathan de Hobbes. Em 1935 dizia o Presidente Franklin D. Roosevelt que “genuine knowledge demands freedom to pursue it”.

Além de proclamar a liberdade, em desnecessária repetição do texto constitucional, a LDB traz à tona um novo enunciado, de apreço à tolerância (art. 3°, IV). Este dispositivo, desconhecido da doutrina jurídica, mais se apresenta como uma pregação de conteúdo moral, de discutível serventia neste âmbito formal em que está inserida. A lei não aborda este “princípio”, seja em caráter programático, seja preceptivo, em qualquer outra regra, deixando o intérprete completamente desprovido de qualquer elemento informativo que guie a sua exegese.

Certamente o dispositivo não pretende que a comunidade educacional pregue a submissão intelectual, a incapacidade de formular a divergência, a inconformidade, porque isso implicaria conflito com o princípio da liberdade intelectual. É preciso se diga mais a respeito desta norma, sob pena de decretar pela omissão o sepultamento deste ininteligível conteúdo normativo.

3.3.Pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas

Traduz a LDB o respeito ao pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas (LDB, art. 3°, III). A estes princípios correspondeu no passado o ideal de liberdade de cátedra, reconhecido pela Constituição de 1946 (art. 168), e que deve ser havida como uma garantia institucional, muito mais do que mero enunciado programático constitucional. È preferível atrelá-lo à garantia fundamental de liberdade de expressão da atividade intelectual.

As concepções pedagógicas têm livre trânsito na LDB, em homenagem ao que dispõe a Constituição neste domínio. Há lugar mesmo para as abordagens pós-modernas ou pós-estruturalistas, como lembrou Xavier[32], referindo o ocaso da modernidade e suas crenças na racionalidade, no poder emancipatório da ciência, nas explicações universais, e nas metanarrativas, nas utopias(…).

A liberdade consagrada no texto legal encontra no entanto um limitador, que se faz presente nos mecanismos de avaliação referidos no art. 9°, VI da LDB. A avaliação do rendimento discente torna-se obrigatória em todos os níveis, com o objetivo de possibilitar a definição de prioridades e a melhoria da qualidade do ensino. A implantação do Exame Nacional de Cursos e do Exame Nacional do Ensino Médio pelo Ministério da Educação revelou a introdução de um instrumento positivo, na medida em que as deficiências dos sistemas hoje em dia são muito mais conhecidas.

3.4.Coexistência das instituições públicas e privadas

A partir do princípio enunciado pelo art. 206, III, da Constituição, que especializa os princípios mais amplos da valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, assentou-se a noção, consignada no art. 209 da Carta Maior, de que a função educativa formal, dever de Estado por excelência, é igualmente livre à iniciativa privada. A LDB, em consonância com o fundamento constitucional, reitera o princípio da coexistência de instituições públicas e privadas de ensino (LDB, arts. 3°, V, e 7°).

A liberdade de ingresso da instituição privada no sistema educacional sujeita-se à observância das normas gerais de educação e do sistema de ensino a que pertencer (no caso da educação superior, todas as instituições privadas pertencem ao sistema federal de educação, segundo a regra do art. 16, II, da LDB). Sujeitam-se também a comprovar capacidade de autofinanciamento (LDB, art. 7°, III).

Embora a iniciativa privada seja regulada pela legislação civil, como a educação formal constitui-se em dever de Estado, a participação das instituições privadas nessa atividade tem em grande parte regência do Direito Público. Por isso mesmo não se discute mais no ambiente judiciário que o dirigente de instituição privada de ensino é considerado como autoridade coatora para o fim de responder ao controle judiciário dos atos do Poder Executivo pela via do mandado de segurança.

A exigência da capacidade de autofinanciamento para a atuação do segmento privado no ramo da educação formal suscita interessante polêmica. O ensino privado não é gratuito e, como serviço público essencial que é, induziu a noção de que as taxas acadêmicas devem sujeitar-se a controle de preços pelo Estado. Ribeiro Lopes[33] tem esse pensamento, face à relevância pública da educação e à sua caracterização como serviço público (…). Em sentido contrário, o autor deste trabalho tem sustentado que, se o Estado exige que a instituição privada mantenha-se exclusivamente com recursos próprios, não poderá instituir políticas de controle de preços, sob pena de estar intervindo na liberdade da instituição de estabelecer sua política pedagógica. As decisões de aumentar ou reduzir investimentos em instalações e equipamentos, em política salarial docente, devem ficar ao livre alvedrio da instituição privada de ensino, para que a pluralidade de idéias e de concepções pedagógicas seja preservada.

É justamente na anteposição da esfera educacional pública, eventualmente impregnada de um dogmatismo estatal, com a variedade de configurações que o setor privado oferece, que se manifesta a desejada pluralidade. É nisto, em suma, que reside a idéia de coexistência preconizada na Constituição e na LDB.

Coloca-se em discussão, no entanto, um outro aspecto. No regime da LDB revogada, a autorização para funcionamento de instituição privada de educação dependia, junto com outros requisitos que perduram na lei atual, a prova da chamada “necessidade social”. Significa dizer que a instituição candidata ao credenciamento para ingressar no sistema de educação deveria fazer prova que a localidade em que pretendia se instalar evidenciava demanda concreta no mercado de trabalho das formações que se propunha a oferecer. Com o advento da Constituição de 1988 (art. 209) e mais tarde da LDB, o Ministério da Educação passou a entender que tal exigência não tinha mais lugar, razão pela qual permitiu uma proliferação desordenada de instituições privadas.

Realmente, o texto da LDB não aponta diretamente que a “necessidade social” deva ser um parâmetro para deliberação sobre pedido de credenciamento de instituição ou de autorização de cursos novos. Indiretamente, porém, o art. 53, IV, da LDB, sinaliza o contrário. A regra diz que as universidades detêm autonomia para fixar o número de vagas de seus cursos, de acordo com a capacidade institucional e as exigências do seu meio. Essa expressão não tem outro significado que o de aferição da “necessidade social” a que se referia a LDB revogada. Além disto, se aponta que se as universidades detêm autonomia para fixar vagas mediante a observância de tais parâmetros, faz-se presente uma restrição à livre iniciativa. Maior ainda será essa restrição para as instituições não universitária, que, despojadas de autonomia, dependem de prévia autorização ministerial para fixação e alteração de quantitativo de vagas. No entanto, até recentemente, o parâmetro em questão não era levado em consideração.

3.5.Gratuidade do ensino

O enunciado da gratuidade do ensino público nos estabelecimentos oficiais (LDB, art. 3°, VI) é fundamental e inarredável, pois estabelece um dever de Estado que pode e deve ser cobrado pelo povo. Assim é que tem amparo no enunciado do art. XXVI, § 1º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem[34]. A propósito, é no § 2º deste mesmo dispositivo da Declaração que se encontra a gênese do art. 2º da LDB, com a consagração da liberdade e da solidariedade humana como elementos inspiradores da educação como dever de Estado.

A imposição da gratuidade do ensino público está enunciada no conjunto normativo da LDB nos três níveis de formação (fundamental, médio e superior, na linguagem da LDB), posto que no texto não há distinção, e onde a lei não distingue, o intérprete não poderá fazê-lo, sob pena de furtar vigência ao dispositivo. A regra do art. 70 da LDB dá firmeza ao que aqui se assevera, ao considerar como de manutenção e desenvolvimento do ensino as despesas ínsitas aos objetivos básicos das instituições educacionais de todos os níveis. Esta norma complementa a enunciação de garantia do financiamento do ensino público através de recursos orçamentários do Tesouro, prevista no art. 69[35].

Em que pese a garantia do financiamento público em todos os níveis da educação formal, ressalta-se que a garantia à formação gratuita restringe-se ao nível fundamental, pela regra do art. 208, I, da Constituição. O Estado brasileiro apenas promete, pelo enunciado do inciso II do mesmo dispositivo constitucional, progressiva universalização do ensino médio gratuito. Promete, não garante. No que tange ao ensino superior, não há garantia nem promessa. Terá acesso ao ensino gratuito em estabelecimento público aquele que lograr, por seus próprios meios, vencer a acirrada competição pelas exíguas vagas disponíveis. Por isso mesmo, de tempos em tempos, o Ministério da Educação edita programas destinados a assegurar financiamento a estudantes de baixa renda familiar para acesso ao ensino privado não gratuito. Assim o foi com os programas Creduc e Fies, já comprovadamente ineficazes devido ao alto custo financeiro que acarretam aos alunos financiados e que derivam irremediavelmente para o fracasso, diante da expressiva inadimplência verificada. Atualmente, o Programa “Universidade para todos – Pro-uni” busca atenuar o grave problema da exigüidade de vagas em instituições públicas de ensino superior, em paralelo com a criação de novas instituições públicas e do estímulo ao aumento de vagas nas já existentes[36].

3.6.Valorização do profissional da educação

A valorização do profissional da educação escolar (LDB, art. 3°, VII) ganha status de princípio informativo na LDB. O dispositivo não teria significado prático algum, ante sua natureza programática, não tivesse o legislador inserido na regra do art. 67 expressas disposições destinadas a materializar relevantes parâmetros de valorização profissional.

Para o magistério público a lei promete ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aperfeiçoamento profissional continuado com direito a licenciamento remunerado para esse fim, piso salarial profissional, progressão funcional baseada na titulação ou habilitação e na avaliação de desempenho, período reservado a estudos, planejamento e avaliação, e condições adequadas de trabalho.

A expressão “profissionais do ensino” tem gênese no texto constitucional, que proclama em seu art. 206, V, a valorização dos profissionais do ensino como princípio informativo da prestação do dever de Estado da educação formal. No entanto, refere-se exclusivamente ao magistério quando disciplina a instituição infra-constitucional de planos de carreira, com piso salarial profissional e ingresso mediante concurso público de provas e títulos. Os recursos humanos partícipes do processo educativo abrangem não apenas professores, mas igualmente diversos outros atores, tanto voltados para atividades-fins como para atividades-meio. Seria mais adequado que a Lei tivesse abrangido todos esses profissionais.

Não se poderia deixar de verberar contra o grave defeito que o plano de carreira do magistério público federal apresenta no texto do Decreto n° 94.664/87 e seu regulamento, a Portaria MEC n° 475/87. A valorização de qualquer carreira demanda um mecanismo de desenvolvimento que abrange pelo menos a maior parte de sua duração, principalmente se abranger atribuições que demandem constante capacitação e atualização. É o caso típico do magistério. No entanto, o mecanismo da carreira docente federal é curtíssimo e capenga. Por um lado, se o ingressante já porta título de doutor, é admitido na classe de professor adjunto, nível I e progredirá a cada dois anos para os níveis II, III e IV. Ou seja, seis anos depois do ingresso sua carreira estagna e o professor não disporá de um só incentivo funcional até completar tempo para inativação. Na classe de professor titular somente ingressará mediante concurso se o Ministério do Planejamento o autorizar. Raramente autoriza. O que se tem, em conseqüência, é uma gigantesca falta de motivação acadêmica no seio do magistério público federal. Não é isso que a Constituição e a LDB propõem. No entanto, não há uma imposição legal para que o plano de carreira seja compatibilizado.

3.7.Gestão democrática

O imperativo de uma gestão democrática do ensino público (LDB, art. 3°, VIII) constitui salutar comando destinado a coibir centralização de poder, desvio de poder, abuso de poder, enfim.

Uma compreensão precisa do comando legal em foco passa necessariamente por uma conceituação pelo menos sucinta de democracia, no que toma-se a lição de Bobbio[37], que a vê como um regime onde exista um conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados. É claro que no âmbito de um grupo social complexo como este em que vivemos não é possível, a participação de todos, razão pela qual o princípio democrático se opera pela via da representação.

A LDB destacou no art. 14 uma parcela da competência para legislar sobre diretrizes e bases da educação, delegando aos sistemas de ensino (art. 8° e seu § 2°) a atribuição de definir as normas de gestão democrática no segmento básico (infantil, fundamental e médio, na nomenclatura instituída pelo art. 21, I). Impôs, no entanto, a observância de dois critérios inarredáveis: participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola e das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.

Já no que respeita às instituições públicas de educação superior, afirma-se no art. 56 da LDB a figura dos colegiados deliberativos superiores, com participação dos segmentos da comunidade institucional, local e regional. A composição destes colegiados deverá observar um mínimo de setenta por cento de participantes docentes. Esta regra se coaduna com a que foi instituída pela Lei n° 9.192, de 21.12.95, para dar redação ao inciso II do art. 16, da Lei n° 5.540, de 28.11.68, relativamente à competência para organizar listas tríplices para escolha de reitor, vice-reitor e diretor de unidade administrativa de universidade.

Seria desejável que a regra do art. 56 da LDB não se limitasse aos estabelecimentos públicos de ensino superior. Impregnada, talvez, de um liberalismo excessivo, a LDB preferiu deixar os estabelecimentos privados sujeitos aos ditames de suas entidades mantenedoras. Equivoca-se, porque não se entrelaçam necessariamente as decisões acadêmicas da comunidade educacional (instituição de ensino) e a vontade econômica dos dirigentes da mantenedora. Por isso, sujeitar a vontade acadêmica da comunidade educacional, composta por professores, técnicos, alunos e comunidade extra muros, ao arbítrio exclusivo do interesse econômico da mantenedora, parece ferir os demais princípios regentes da educação nacional. Um poder de veto da mantenedora em toda deliberação da comunidade educacional que acarretasse repercussão econômica seria razoável, mas a possibilidade de intervir na política pedagógica da instituição de ensino representa uma indevida interferência da economia privada na consecução do dever de Estado de prestar educação.

3.8. Outros princípios

O art. 3° da LDB estabelece a observância de outros princípios informadores do ensino, como a garantia de padrão de qualidade (inc. IX), a valorização da experiência extra-escolar (inc. X), e a vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais (inc. XI).

É interessante observar que a garantia do padrão de qualidade foi instituída na mesma época em que o Governo propôs emenda ao art. 37 da Constituição, para inserir no caput, ao lado dos princípios da publicidade, da moralidade, da impessoalidade e da legalidade, informadores da administração pública, também o princípio da qualidade do serviço prestado. O princípio foi finalmente instituído no caput do art. 37, pela EC n° 19/98.

Isto significa que a garantia de padrão de qualidade, hoje um princípio informativo do ensino, constante no art. 3°, XI, da LDB em ratificação ao que dispõem os arts. 37, caput, e 206, VII, da Lei Maior, constitui-se em regra de plena eficácia. Não é fácil, porém, a implementação efetiva do preceito. O principal instrumento de sua consecução encontra-se no art. 46 da própria LDB, que inseriu um dos pontos mais positivos do diploma legal comentado, que é o da avaliação institucional. Segundo o dispositivo, deixou de existir o credenciamento “perpétuo” do regime anterior, segundo o qual uma vez reconhecido o curso, o ato de reconhecimento tinha caráter permanente. Assim, muitos cursos superiores reconhecidos por ato do Poder Executivo permaneceram décadas à margem de qualquer verificação de qualidade ou sequer do cumprimento das exigências legais e regulamentares para o funcionamento do ensino superior.

A sistemática do art. 46 da LDB rompeu a letargia da ação estatal de fiscalização, ao estatuir que todas as autorizações e reconhecimentos de cursos superiores passam a ter caráter temporário, renováveis periodicamente após processo regular de avaliação. Atualmente, vários procedimentos de avaliação possibilitam que a sociedade tenha conhecimento da qualidade dos cursos oferecidos. Mais ainda, os instrumentos de avaliação estimulam o incremento qualitativo, principalmente no segmento privado, dado que os conceitos obtidos em avaliação oficial passaram a se constituir em parâmetro de competição entre as instituições. Ademais, esses instrumentos permitem que o Estado desempenhe o poder-dever de polícia, para revogar autorizações e reconhecimentos de cursos que deixem de oferecer condições qualitativas mínimas de oferta e, mesmo, para revogar credenciamento de instituições de ensino superior que deixem de cumprir as normas gerais de educação a que se refere o já citado art. 209, I, da Constituição.

4.À guisa de epílogo

O tema da educação superior tem despertado insaciável apetite pelo debate e pela apresentação de novas idéias por estudiosos de todo o mundo desde o advento das primeiras universidades no século XII. Neste momento vive-se intenso debate em torno de nova proposta de reforma universitária, que já tramita no Congresso Nacional, com o propósito de introduzir regras de alargamento do acesso à educação superior para as camadas de renda mais baixa da população e para assegurar melhores instrumentos de financiamento e de gestão das instituições de ensino superior. A tarefa é árdua, diante dos imensos paradoxos sociais e culturais que a sociedade brasileira ostenta.

O afã de encontrar novos caminhos para a educação superior seria, no entanto, muito mais tormentoso não fossem os avanços proporcionados pela Constituição de 1988 e muito especialmente pela LDB de 1996. Hoje se pode imaginar o estágio calamitoso em que a rede de ensino superior se encontraria não fossem os impulsos que a LDB propiciou em três vetores fundamentais, quais sejam a possibilidade de expansão da rede, a consolidação dos instrumentos de avaliação e o estímulo à capacitação docente em nível de pós-graduação. Os princípios norteadores da LDB vieram a se constituir, portanto, em alicerces essenciais à discussão em torno de novas reformas, o que assegura uma dinâmica evolutiva para a educação, tão necessária que é para reverter o atraso social e econômico em que ainda vivemos. Nisso reside o mérito maior desta Lei.

 

Bibliografia
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CAMPOS, Eduardo Souza. Educação superior no Brasil, Rio de Janeiro, Ministério da Educação, 1940, p. 134-71.
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XAVIER, Maria Luisa M. “A relação pedagógica”. Melhoria do Ensino e Capacitação Docente. Vera Regina Pires Moraes (org.). Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1996.
Notas
[1] Segundo Araújo (2005, p. 81), o Direito Administrativo é a disciplina integrante do direito público que estuda os princípios e normas jurídicas que regem as atividades jurídicas (exceto a judiciária e a legislativa formais) do Estado (…), bem como dos bens e meios utilizados para a realização de suas finalidades públicas. Em que pese alguns esforços, como o de Boaventura (1997, p. 47), que procura definir o Direito Educacional como ramo autônomo do Direito, o caráter dominante de seu conteúdo sobre a organização de um sistema estatal, inobstante delegável ao setor privado, de ensino formal, denota o caráter essencialmente publicista da matéria. Essa característica, a par do objetivo regulatório das relações entre o Estado-educador e o educando, inexoravelmente insere o tema educacional no objeto mais amplo do Direito Administrativo. Evidência maior disto está em que a jurisprudência nacional há muito pacificou o entendimento de que o dirigente de estabelecimento formal de ensino, seja ele público ou privado, é considerado autoridade de direito público para o fim de figurar no pólo passivo do mandado de segurança agitado contra lesão de direito líquido e certo individual brotado da relação entre o estabelecimento de ensino e o aluno.
[2] Eduardo Souza Campos refere-se ao nascimento do núcleo das instituições superiores hoje existentes em 1808 (1940, p. 134).
[3]1994, p. 63.
[4] O apelido do diploma é atribuído a Rivadávia Cunha, que havia sido encarregado pelo Presidente da República Marechal Hermes da Fonseca, de elaborar o texto do Decreto nº 8.659/11.
[5] Evidencia-se nisto o caráter de permanent issue da inesgotável polêmica que a expressão “autonomia universitária” induz.
[6] Ranieri, 1994, p. 74.
[7] Op. cit., p. 81.
[8] Veja-se a respeito o artigo sob o título “Quadro Histórico da Política de Supervisão e Controle do Governo sobre as Universidades Federais Autárquicas”, in Ciência e Cultura, SBPC, 37(7):14-38, p. 22.
[9] A gratuidade do ensino primário vem da Constituição do Império, de 25.3.1824, art. 179, inciso 32.
[10] A “federalização” das universidades fundacionais deveria, por força deste dispositivo, dar-se mediante a subordinação aos mecanismos e normas de fiscalização, controle e gestão financeira da União, e através da vinculação de seu pessoal (cargos, empregos e funções) ao PCC (Plano de Classificação de Cargos da Lei n° 5.645, de 10.12.70). Os requisitos para federalização de fundação eram ou ter sido instituída por lei federal ou ser mantida, total ou parcialmente por recursos da União.
[11] Totalmente revogada pelo Decreto n° 95.689, de 29.1.88, que vigorou até a implantação da nova sistemática de exercício e retribuição de cargos e funções de confiança, introduzida pela Lei n° 8.112/90, art. 62, com a regulamentação da Lei n° 8.168, de 16.1.91, da Lei n° 8.216, de 13.8.91, e Decreto n°  228, de 11.10.91.
[12] Lei n° 8.112, de 11.12.90, e farta legislação que lhe é complementar.
[13] 1997, p. 127.
[14] 1997, 10.
[15] Op. cit., p. 75.
[16] 1988, p. 343.
[17] Op. cit., p. 68.
[18] Op. cit., p. 69.
[19] Disponível em http://www.mec.gov.br. Acessado em 30/11/2005.
[20] A Constituição democrática de 1946 também não se atreveu a apontar o responsável pela garantia do exercício do direito à educação (art. 166).
[21]Dispôs o art. 176 da EC nº 1/69: A educação, inspirada no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e solidariedade humana, é direito de todos e dever do Estado, e será dada no lar e na escola.
[22] 1991, p. 703.
[23] 1992, p. 137.
[24] 1992, p. 44.
[25] 1994, p. 158
[26] 1994, p. 26
[27] 1987, p. 348.
[28] É entendimento do autor que sem vinculação efetiva não há garantia de financiamento, porque faltaria coerção à regra de destinação de recursos suficientes para manutenção e desenvolvimento do ensino público.
[29] STF, Pleno, ADI n° 1.599-1/DF, relator o Min. Maurício Correa, DJ de 18.5.2001.
[30] A supremacia da garantia individual está assegurada pela sua condição de cláusula constitucional pétrea (art. 60, § 4°), que significa imutabilidade, salvo por decisão constituinte originária.
[31] Op. cit. p. 358.
[32] 1996, p. 42.
[33] 1999, p. 54.
[34] Aprovada por Resolução da III Sessão Ordinária da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 10.12.48.
[35] A regra do art. 69 reproduz a garantia constitucional de financiamento do ensino público em todos os níveis, fixada no art. 212 do Diploma Maior, que assim dispõe: Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.
[36] Mesmo diante das iniciativas do Ministério da Educação nos últimos anos, os resultados ainda apresentam-se extremamente tímidos, à vista de que as vagas disponíveis em todo a rede de ensino superior não atende sequer um terço da meta preconizada no Plano Nacional de Educação.
[37] 1987, p. 12.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Sérgio Amaral Campello

 

Doutor em Direito, advogado, professor aposentado da Fundação Universidade Federal do Rio Grande, professor da Faculdade Anhanguera do Rio Grande

 


 

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Equipe Âmbito Jurídico

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