Resumo: A desconsideração de ato ou negócio jurídico realizado com finalidade tributária, o que se tem popularmente por cláusula antielisiva, surgiu em 1919, através da Ordenação Tributária Alemã. Em 1999, por meio do Projeto de Lei Complementar número 77 da Câmara dos Deputados, ingressou no corpo legislativo pátrio a desconsideração de atos e negócios. Em termos de nomenclatura do instituto considera-se elisão o que a doutrina e os criadores da Lei Complementar número 104/2002 identificam como ação de dissimular a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária (fato gerador) que ocorreu. No que diz respeito ao artigo 116, parágrafo único, do CTN, há, ainda, outras questões em matéria de princípios e teorias, algumas relativas à própria razão da tributação. A constitucionalidade, ou seja, a interpretação econômica é justa se pensada do ponto de vista da coletividade, que perde quando determinado indivíduo subverte a intenção do sistema para favorecer-se. No entanto, sem a devida regulamentação normativa, paira de ilegitimidade ante os contribuintes, por se imiscuir unilateralmente, pelo Fisco, de forma subjetiva na esfera de escolhas negociais plausíveis dentro do sistema legal vigente.
Palavras-chave: Direito Tributário, Norma Antielisiva, Código Tributário Nacional.
Sumário: Introdução. I. Fundamentos da desconsideração de atos ou negócios simulados com fins tributários no sistema jurídico brasileiro. 1.1. Noções Históricas e Sociais. 1.2. Criação da Lei Complementar número 104/2001. 1.3. Definição quanto à Forma do Procedimento do Artigo 116, Parágrafo Único, do CTN. II. Operacionalização do artigo 116, parágrafo único do CTN. 2.1. Medida Provisória Número 66/2002. 2.2. Projeto de Lei da Câmara Número 536/2007. 2.3. Aplicação do artigo 116, parágrafo único do CTN, pela União e decisões dos Conselhos de Contribuintes. III. Princípios constitucionais e teorias jurídicas relacionados à validade do artigo 116, § ún. do CTN. Conclusão. Bibliografia.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objeto a análise do artigo 116, parágrafo único do Código Tributário Nacional, a vulgarmente chamada “norma geral antielisiva”, cuja finalidade é fornecer às autoridades tributárias mecanismo de intervenção na esfera privada do cidadão, no escopo de averiguar e desfazer eventuais negócios dissimulados sob forma para a qual não existe hipótese de incidência tributária.
Em verdade, trata-se de mecanismo legal imbuído de evitar atitudes de planejamento fiscal por parte dos contribuintes.
Registre-se, logo de início, que essa sistemática legislativa não é de origem recente e muito menos uma inovação perpetrada pela legislação brasileira. De fato, o mecanismo em voga surgiu em 1919, trazido na legislação tributária alemã, passando posteriormente a ser adotado em vários outros países europeus e nos Estados Unidos.
No Brasil, foi introduzido por meio da Lei Complementar número 104, de 10 de janeiro de 2001, que acrescentou no artigo 116 do Código Tributário Nacional um parágrafo (único), no qual resta a “norma antielisiva” disciplinada.
Neste contexto, o objetivo do presente trabalho monográfico surge no sentido de definir a validade ou não da norma do artigo 116 do CTN, tanto do ponto de vista social, ou seja, voltado para a eficácia, quanto da sua pertinência com o texto constitucional.
Para alcançar tal desiderato, no primeiro capítulo traça-se um breve relato dos fundamentos históricos e sociais da “norma antielisiva”, bem como alguns comentários sobre a teoria do abuso de direito em matéria tributária.
Além desses itens, ainda no capítulo exordial, expõe-se os motivos do surgimento da Lei Complementar número 104/2001, bem como faz-se uma análise comparativa da situações sociais vivenciadas outrora, assim como em sistemas alienígenas.
Outra questão relevante tratada no primeiro capítulo versa sobre a definição formal do que seja a matéria de que trata o art. 116, § único, CTN: evasão, elisão ou fraude. Tais elementos conceituais figuram como determinantes para a melhor análise do referido dispositivo, apresentando-se seu estudo como imprescindível para a presente pesquisa.
Numa segunda etapa aborda-se os mecanismos normativos adotados no sentido de outorgar-se operacionalidade à norma antielisiva, como a MP 66/2002, além do Projeto de Lei número 536, de 28 de março de 2007, cuja finalidade é regulamentar o parágrafo único do artigo 116 do CTN. Igualmente foi analisada a postura dos órgãos administrativos exaradores das decisões em âmbito fiscal frente ao referido comando legal.
No capítulo derradeiro, ingressa-se no campo dos princípios constitucionais atinentes à matéria, especificamente mediante breve análise da influência dos princípios da legalidade, da segurança jurídica, capacidade contributiva, e também se analisa a teoria do abuso de direito e o instituto da interpretação econômica, cuja definição como princípio é deveras controversa.
Por fim, traçam-se considerações acerca da validade nos planos social, moral e econômico do procedimento de desconsideração de atos e negócios jurídicos tidos por simulados, bem como quanto à constitucionalidade do artigo 116, parágrafo único do Código Tributário Nacional.
Em verdade, gostem ou não os mais experimentados na seara tributária, hodiernamente está em vigência um mecanismo de desconsideração de negócios jurídicos para fins tributários, cujo funcionamento e aplicação já é sentido no cotidiano fiscal dos contribuintes, principalmente em autuações levadas a efeito pelos órgãos tributários.
Dessarte, fomentar a discussão sobre tão caro tema não é só importante enquanto contribuição acadêmica em nível de conhecimento, mas também meio de garantir que tal assunto ganhe o devido espaço nos debates havidos no corpo social, fazendo com que novos e diversos posicionamentos e perspectivas venham à tona.
Permitir a correta aplicação dos termos da norma antielisiva nada mais é, no final das contas, do que consagrar o sagrado direito outorgado pelo nossa Constituição Federal em prol dos contribuintes de garantia à livre iniciativa no campo econômico.
I FUNDAMENTOS DA DESCONSIDERAÇÃO DE ATOS OU NEGÓCIOS SIMULADOS COM FINS TRIBUTÁRIOS NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO
1.1 Noções Históricas e Sociais
A tributação é a forma encontrada pelo Estado para angariar fundos financeiros, recursos estes reinseridos no meio social sob a forma de bens, serviços e obras públicas desenvolvidos pelo ente tributante.
Neste sentido, remonta aos primórdios da civilização a atividade arrecadatória estatal, assim como a resistência verificada por parte dos cidadãos, exercida tanto por meios lícitos como ilícitos.
Nos mais diversos momentos históricos governantes almejaram resguardar os cofres de seus principados de atos que, por meio de simulação ou outro artifício desempenhado pelos cidadãos, trouxessem consigo o contorno ao dever tributário, isto é, atos que escapassem da incidência exacional imposta. O fato é que o Estado, enquanto instituição, em todas as épocas encontrou barreiras no caminho de exercício da prerrogativa de impor aos seus comandados o dever de pagar tributos.
De referir que os fatores determinantes para a obediência ou não do cidadão-contribuinte às normas referentes à tributação são numerosos, no entanto podem, conforme Iudícibus e Pohlmann[1] estar vinculados a certos elementos variáveis passíveis de categorização em quatro grupos: (i) demográficas (idade sexo), (ii) oportunidade de desobediência (educação, nível de renda, fonte de renda e ocupação), (iii) atitudes (éticas, percepção da justiça do sistema tributário, influência dos pares) e (iv) estruturais (complexidade do sistema tributário, contato com autoridades tributárias, sanções, probabilidade de detecção e alíquotas).
Conforme Alm[2], apud Iudícibus e Pohlmann, alguns experimentos na área de obediência tributária já foram realizados e chegou-se a conclusão de que
“a) A obediência é menor dentre os sujeitos que afirmaram que sua tributação era maior do que de outros, e a obediência é maior dentre os sujeitos que disseram que sua carga tributária era menor. Ou seja, a percepção de iniqüidade fiscal afeta a obediência.
b) A obediência individual declina se o sujeito acredita que recebe menos do que outros, em termos de benefícios e serviços públicos.
c) A decisão de obediência é afetada pela presença de incertezas quanto à probabilidade de auditoria, apesar de os efeitos serem um tanto complicados.
d) Os sujeitos que sofreram auditoria reportaram mais renda posteriormente.
e) Alguns indivíduos não evadem por razões morais. […]
g) Após uma anistia fiscal, há um declínio da obediência tributária. […]
i) A obediência está relacionada com a presença do fornecimento de bens e serviços públicos ao contribuinte.
j) A obediência é maior quando indivíduos votam no uso dos recursos arrecadados.
k) Prêmios para a obediência tributária aumentam o nível desta.”
Dessas considerações decorre a conclusão de que quando o cidadão sabe onde e como estão sendo empregados os recursos públicos e que cada indivíduo na sociedade está contribuindo na medida de seus rendimentos a obediência às normas tributárias é mais elevada.
Para se evitar a evasão fiscal medidas de modificação da própria estrutura social, como a valorização da educação como meio de construção da cidadania, por exemplo, resultariam em um maior compromisso da sociedade com o Estado, visto que um indivíduo dotado de cultura consegue vislumbrar claramente o papel do Estado perante as contingências da sociedade.
Porém, mesmo nas sociedades cujo desenvolvimento cultural permite a formação de cidadãos conscientes da importância da fidelidade no pagamento de tributos, em vista de sua efetiva aplicação em serviços públicos, ainda há os que buscam evitar a incidência de tributos sobre seu patrimônio, razão pela qual surgiu o mecanismo da desconsideração de atos ou negócios simulados com fins tributários.
A desconsideração de ato ou negócio jurídico realizado com finalidade tributária surgiu, conforme Becker, apud Fossati[3], no Reichsabgabenordnung (RAO) em 1919, a Ordenação Tributária Alemã.
Os alemães foram os precursores na criação da interpretação econômica, que é um dos fundamentos da desconsideração de atos os quais o Estado acredite haverem sido realizados sob determinada forma para evitar a incidência de tributos. Ainda segundo o mesmo autor, o atual Código Tributário Nacional da República Federal da Alemanha mantém disposição quanto à desconsideração de atos simulados, conforme § 41, número 2 do Abgabenordnung – AO de 1997.
Na Suíça, Conforme Höhn, apud Cassone[4], a jurisprudência do Tribunal Federal, quanto à definição da ocorrência da simulação, fixou entendimento de que a elisão se dá quando atendidos os seguintes pressupostos:
“Quando a forma jurídica escolhida pelas partes se apresenta como “não usual, contrária à realidade, ou extravagante, de qualquer modo inteiramente inadequada para a operação econômica”; quando, além disso, se tem de admitir que a escolha foi adotada “abusivamente, apenas para economizar impostos que seriam devidos, se aplicada a ordem normal dos negócios”; e quando “o procedimento escolhido realmente conduziria a uma considerável economia de imposto, se devesse ser aceito pelas autoridades fiscais”[5].
1.2 Criação da Lei Complementar número 104/2001
Em 1999, por meio do Projeto de Lei Complementar número 77 da Câmara dos Deputados, ingressou no corpo legislativo pátrio a desconsideração de atos e negócios simulados com a finalidade de evitar o pagamento de tributos, projeto que se tornou a Lei Complementar nº 104, de 10 de janeiro de 2001, cuja finalidade, dentre outras, foi a alteração do artigo 116 do Código Tributário Nacional, com o acréscimo de um parágrafo único, com a seguinte redação:
“Artigo 116, parágrafo único – A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.”
O Projeto de Lei foi acompanhado da Mensagem número 1.459/1999, expedida pelo outrora Ministro de Estado da Fazenda Pedro Malan, que justificava[6] a importância da alteração do artigo 116 do Código Tributário Nacional, em razão de que se criaria instrumento capaz de permitir à autoridade tributária
“Desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de elisão, constituindo-se [ … ] em instrumento eficaz para o combate aos procedimentos de planejamento tributário praticados com abuso de forma ou de direito.”
A razão predominante para aprovação do projeto na Câmara dos Deputados, ao menos no que se refere a criação da “norma antielisiva”, foi, conforme se antevê do parecer do relator do projeto na Comissão de Constituição de Justiça na Câmara dos Deputados, o então deputado federal Eduardo Paes, a criação de uma nova fonte de receita para a União, capaz de viabilizar o aumento do salário mínimo da época (2000) para R$ 180,00.
Os termos do parecer são interessantes, pois, de certa forma, deixam claras as intenções dos que contribuíram com o ingresso da “norma antielisiva” no ordenamento jurídico pátrio.
No parecer, se estabelece que elisão e sonegação não são sinônimos, sendo aquela dissimulação que visa evitar a incidência de determinado tributo antes de ocorrido o fato gerador, já aquela se daria após a ocorrência, revelando meios ilegítimos.
Visava-se conceder à Receita Federal, manifestação inapropriada já que se eventualmente a norma fosse aprovada, e o foi, as Fazendas Públicas Estadual e Municipal poderiam e podem se utilizar do mecanismo da norma “antielisiva”, “instrumento [ … ] para que, identificado qualquer ato ou negócio jurídico buscando dissimular a ocorrência do fato gerador, ela possa anulá-los”[7].
O relator do projeto justificou sua opinião acerca da constitucional idade do mesmo por ver na norma “antielisiva” mecanismo de justiça social e instrumento “para acabar com esse absurdo do planejamento tributário abusivo no País”[8].
Em que pese tais argumentos supramencionados, cabe referir que um ato abusivo é aquele que extrapola limite, é injusto ou errado. Além disso, é ato que implica em desrespeito a algo ou alguém.
Por seu turno, o planejamento tributário é instrumento lícito, contanto não seja utilizado para simulação, fraude ou abuso de direito.
Além disso, fica claro pela leitura do parecer que a norma antielisiva só foi aprovada por estabelecer mais uma fonte de receita à União e permitir à Câmara dos Deputados poder de barganha quanto à definição do valor do salário mínimo da época, numa total falta de responsabilidade e consciência quanto aos efeitos de tal instrumento na sociedade.
1.3 Definição quanto à Forma do Procedimento do Artigo 116, Parágrafo Único, do CTN
Existe na doutrina uma dúvida ainda insolúvel sobre a natureza da norma do artigo 116, parágrafo único do CTN. O legislador, conforme exposição de motivos e parecer mencionados, considera a norma como mecanismo “antielisivo”.
Porém, há doutrinadores que acreditam estar diante de uma norma “antievasiva”.
Conforme Hugo de Brito Machado, apud Weiss[9]:
“Embora a palavra evasão seja habitualmente utilizada para designar forma ilícita de fugir do tributo e elisão para designar a forma lícita, ambas em sentido amplo significam qualquer forma de fuga ao tributo, lícita ou ilícita, e em sentido restrito significam a fuga ao dever jurídico de pagar o tributo e constituem, pois comportamento ilícito”.
Já Heleno Torres, apud Weiss[10], classifica o comportamento do contribuinte em três espécies, elisão, elusão e evasão.
A elisão seria uma forma legítima de reduzir o encargo fiscal através do exercício de opções válidas oferecidas pela legislação, através do planejamento tributário, com o objetivo de afastar, reduzir ou postergar a incidência tributária, casos de isenção, imunidade, enquadramento em hipóteses privilegiadas de tributação etc.
A elusão seria o que o artigo 116, parágrafo único do Código Tributário Nacional tem por “elisão”, uma forma de iludir o Fisco através da dissimulação da natureza de uma relação jurídica.
A evasão seria o descumprimento direto da norma tributária, através de condutas ilegais como a omissão de receitas e extravio de documentos.
Alfredo Augusto Becker, por seu turno, vê a questão sob dois matizes: o da licitude, a evasão, e o da ilicitude, a fraude.
Conforme Rubens Gomes Souza, apud Becker[11]:
“Um critério seguro [para se verificar se se está diante de evasão ou fraude] é verificar se os atos praticados pelo contribuinte, para evitar, retardar ou reduzir o pagamento de um tributo foram praticados ‘antes’ ou ‘depois’ da ocorrência do respectivo fato gerador: na primeira hipótese, trata-se de evasão; na segunda, trata-se de fraude fiscal).”
Em termos de nomenclatura do instituto considerar-se-á elisão o que a doutrina e os criadores da Lei Complementar número 104/2002 identificam como ação de dissimular a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária e evasão como ato ilícito tendente a camuflar uma relação jurídica tributária (fato gerador) que ocorreu.
É de se ressaltar, entretanto, que dar nome ao instituto a que se refere o artigo 116, parágrafo único do Código Tributário Nacional, é prescindível, contanto que se tenha em mente a forma como este se manifesta e suas implicações.
O artigo 116, § único, do CTN traz, na verdade, dois elementos distintos.
Diz o artigo que: (i) a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo e (ii) a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.
No primeiro caso existe um fato gerador; o que se faz é tentar ocultá-lo, disfarçar sua ocorrência, o que implica em uma tentativa de escapar do recolhimento de tributo e isso é evasão.
Dissimular a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária implica em dizer que a natureza da obrigação, que só se poderá dizer tributária se enquadrar-se nas hipóteses legais, requer um ato comissivo de dissimulação.
Se não houver a intenção de dissimulação da natureza da obrigação, e sim mera opção por uma forma que não de ensejo a tributação, encontra-se essa obrigação fora do alcance da norma.
Becker[12], quanto à simulação, declara:
“Não se pode falar em negócio jurídico ‘simulado’, com referencia aos negócios jurídicos escolhidos pelo contribuinte para obter a evasão fiscal; e não se pode pensar em negócio simulado porque dito negócio foi e é realmente desejado pelas partes, as quais se sujeitaram às regras jurídicas que disciplinam aquele negócio e também se sujeitaram a sua eficácia jurídica: efeitos econômicos e jurídicos irradiados pela eficácia jurídica do fato jurídico; noutras palavras, os efeitos econômicos específicos e condicionados à eficácia jurídica daquele negócio.”
Portanto, a menos que se verifique que a vontade deliberada das partes envolvidas em negócio jurídico com consequências no âmbito tributário foi dirigida à simulação, com fulcro de evitar a incidência tributária, a desconsideração do negócio não pode se implementar, pois deve se presumir que a escolha feita pelos envolvidos, contanto que lícita, ocorreu de forma desinteressada em qualquer tipo de vantagem além dos marcos legais.
Isso gera ao Fisco um duplo ônus, saber qual é o fato gerador, e prová-lo, além de ter de verificar se o ato/fato que está atacando foi praticado com a finalidade de dissimular. Se o Fisco não provar a finalidade, não pode provar o fato gerador.
Vejamos no próximo capítulo, de forma mais detalhada, os termos já adotados, ou ainda em adoção, para a operacionalização da famigerada norma ora em análise.
II Operacionalização do Artigo 116, Parágrafo Único, do CTN
A norma contida no artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, já anteriormente transcrita, expressamente exige como requisito de sua eficácia a criação de lei que venha a regulamentá-la. Neste passo já foram adotados determinados comandos normativos previstos em nosso sistema. Vejamos.
2.1 Medida Provisória Número 66/2002
Em 29 de agosto de 2002 foi editada a Medida Provisória número 66[13] cuja finalidade era, dentre outras, dispor sobre procedimentos para desconsideração de atos ou negócios jurídicos, para fins tributários. Dispunha o artigo 14 da referida MP que:
“Art. 14. – São passíveis de desconsideração os atos ou negócios jurídicos que visem a reduzir o valor de tributo, a evitar ou a postergar o seu pagamento ou a ocultar os verdadeiros aspectos do fato gerador ou a real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.
§1º Para a desconsideração de ato ou negócio jurídico dever-se-á levar em conta, entre outras, a ocorrência de:
I – falta de propósito negocial; ou
II – abuso de forma.
§2º Considera-se indicativo de falta de propósito negocial a opção pela forma mais complexa ou mais onerosa, para os envolvidos, entre duas ou mais formas para a prática de determinado ato.
§3º Para o efeito do disposto no inciso II do § 1°, considera-se abuso de forma jurídica a prática de ato ou negócio jurídico indireto que produza o mesmo resultado econômico do ato ou negócio jurídico dissimulado”.
No entanto, tal MP 66/2002 foi convertida na Lei Federal número 10.637, de 30 de dezembro de 2002, a qual acabou não regulamentando a parte atinente à desconsideração de atos ou negócios jurídicos, para fins tributários, optando o Poder Legislativo por tratar a matéria em comando normativo específico, possibilitando maior discussão sobre tema tão espinhoso.
Assim, restou a regulamentação da norma antielisiva incluída no Projeto de Lei 536/2007, não vindo a permanecer no sistema legal brasileiro os dispositivos carreados pela MP 66/2002.
2.2 Projeto de Lei da Câmara Número 536/2007
Por meio da Mensagem nº 141, de 16 de março de 2007 foi encaminhado pelo Poder Executivo à Câmara dos Deputados Projeto de Lei que recebeu o número de protocolo 536/2007, cuja função é a regulamentação do artigo 116, parágrafo único do Código Tributário Nacional. O projeto ainda está em tramitação, versando em moldes muito parecidos aos tratados na MP 66/2002, em seus artigos específicos sobre o assunto, os quais não foram convertidos em lei, como acima referido.
Por seu turno, a finalidade do projeto é criar um processo administrativo de desconsideração dos atos e negócios tidos por dissimulatórios a fatos supostamente geradores de tributos.
O projeto visa conciliar as garantias constitucionais e legais dos contribuintes por meio do estabelecimento de um procedimento adequado de desconsideração, com o cumprimento do mandamento exarado do CTN, art. 116, parágrafo único. Atualmente, entretanto, a norma do CTN vem sendo aplicada, mesmo ante a inexistência de lei regulamentadora.
A despeito de qualquer indagação acerca da constitucionalidade ou não da “norma antielisiva”, um regulamento que pretenda dar efetividade ao artigo 116, parágrafo único do Código Tributário Nacional deve levar em conta todas as garantias que a lei outorga aos contribuintes, a começar pelo devido processo administrativo, com ampla possibilidade de defesa pelo interessado no resultado de eventual ato da autoridade fiscal no sentido de desconstituir ato ou negócio que ele haja realizado, o que o projeto ora em comento procura fazer.
O projeto de lei 536/2007 prevê um procedimento que se inicia com a fiscalização pelo auditor fazendário. Encontrado indício de negócio simulado, expede-se intimação fiscal direcionada ao agente supostamente infrator, em que constará a descrição dos fatos e elementos que entenda o fiscal como caracterizadores da possibilidade de desconsideração do ato ou negócio jurídico que veja como potencialmente simulado.
Do recebimento da intimação abre-se prazo de 30 (trinta) dias para apresentação de defesa. Caso não se convença, o auditor fiscal deve encaminhar representação à autoridade administrativa que instaurou o processo de fiscalização, que conterá os seguintes elementos, conforme os termos originais do projeto de lei:
“Art 2° – Na hipótese de atos ou negócios jurídicos passíveis de desconsideração, nos termos do § 1º do art. 1º, o Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil expedirá notificação fiscal ao sujeito passivo, na qual relatará os fatos e fundamentos que justifiquem a desconsideração. […]
§ 3º – […]
I – […] relatório circunstanciado dos atos ou negocias praticados e a descrição dos atos ou negócios equivalentes aos praticados, bem assim os fundamentos que justifiquem a desconsideração;
II – discriminar os elementos ou fatos caracterizadores de que os atos
Ou negócios jurídicos foram praticados com a finalidade de ocultar os reais elementos constitutivos do fato gerador;
III – ser instruída com os elementos de prova colhidos no curso do Procedimento de fiscalização e os esclarecimentos e provas apresentadas pelo sujeito passivo; e
IV – conter o resultado tributário produzido pela adoção dos atos ou negócios praticados em relação aos equivalentes referidos no inciso I com especificação da base de cálculo da alíquota incidente e do montante do tributo apurado;”
Apresentada a representação, a autoridade administrativa terá 120 (cento e vinte) dias para decidir sobre a mesma. O projeto de lei prevê em caso de acatamento pela autoridade administrativa dos fundamentos que levaram o auditor fiscal a representar, impugnação da decisão, na Delegacia de Julgamento e Recurso Voluntário ao Conselho de Contribuintes (Decreto número 70.235, de 6 de maio de 1972).
Além dessas etapas, ainda há a possibilidade de, na esfera administrativa, caso reste o negócio atacado desconsiderado para fins tributários, impugnação do crédito tributário advindo da desconsideração, quando se der o lançamento.
Pela análise do procedimento administrativo de desconsideração que propõe o projeto de lei 536/2007, há uma ampla possibilidade de defesa ao cidadão objeto da persecução fiscal, garantindo-se o devido processo administrativo, o duplo grau de jurisdição administrativa, além de, restando descontentamento por parte do agente passivo da fiscalização, a via judicial.
2.3 – Aplicação do Artigo 116, Parágrafo Único, do CTN, pela União e Decisões dos Conselhos de Contribuintes
A despeito da ausência de regulamentação em lei ordinária do procedimento de desconsideração de negócios simulados, como já evidenciado, a União Federal já vem aplicando a norma antielisiva.
Conforme reportagem da revista Valor Econômico[14], publicada em 22 de novembro de 2004:
“O Conselho de Contribuintes está derrubando as autuações fiscais em que a Receita Federal apontou supostos planejamentos tributários. Os conselheiros entendem que, se as operações são legais e existiram de fato, elas não podem ser alvo de autuação fiscal. A interpretação vale mesmo que a empresa tenha implementado uma série de operações para reduzir a carga tributária de um determinado negócio.
O entendimento do Conselho tem sido aplicado tanto em casos em que a fiscalização alegou simulação como em autuações em que se tentou aplicar a chamada lei antielisão, norma que teve como principal alvo o planejamento tributário.
Uma das primeiras manifestações do Conselho sobre a aplicação da chamada lei antielisão aconteceu num processo originado de autuação fiscal contra a Cooperativa Mista Itaquiense Ltda (Camil). [ … ] No caso da Cooperativa, a polêmica com o fisco envolve o valor sobre o qual a empresa deveria recolher IR e CSLL numa operação de venda. Mais especificamente, sobre a venda dos 50% de participação que a cooperativa tinha na empresa Camil Alimentos. A cooperativa pagou os tributos sobre R$ 1,2 milhão. Para a Receita, ela deveria ter calculado o IR e a CSLL sobre R$ 12,697 milhões.
O investimento original da cooperativa na Camil Alimentos era de R$ 12,608 milhões. Segundo a Receita, a participação societária foi vendida para a empresa Rice S/A por R$ 25,305 milhões. A fiscalização considerou que o lucro deveria ser a diferença entre o valor de venda – R$ 25,305 milhões – e o investimento inicial – R$ 12,608 milhões.
O Fisco alegou que, em vez de fazer uma simples venda direta à Rice, a cooperativa teria implementado em 1997 e 1998 um conjunto de operações com o objetivo de reduzir o lucro apurado. Segundo a Receita, a Rice fez um aporte de capital na Camil Alimentos. O efeito prático da integralização foi a alteração de participações societárias na Camil Alimentos. O valor do investimento da cooperativa na Camil Alimentos, atualizado por meio de equivalência patrimonial, aumentou de R$ 12,608 milhões para R$ 24,106 milhões. Por isso, quando houve a venda da participação acionária à Rice, a cooperativa apresentou um lucro de apenas R$ 1,199 milhão (a diferença entre os R$ 25,305 milhões da venda e os R$ 24,106 milhões de investimento).
Em decisão relatada pela conselheira Sandra Maria Faroni, a Primeira Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes considerou que “não há dúvida de que as operações, tal como praticadas, tiveram por objetivo diminuir o ônus tributário.” A Câmara entendeu, porém, que todos os cálculos estavam de acordo com a legislação, as operações realizadas eram lícitas e estavam perfeitamente documentadas.”
Inobstante, o Conselho de Contribuintes tem analisado a questão da aplicação da norma antielisiva com cuidado. No caso mencionado na notícia acima trasncrita, da decisão do Primeiro Conselho fica claro que apesar de se verificar que as operações realizadas pelas sociedades empresárias recorrentes tiveram por objetivo diminuir o ônus tributário, se fixou o entendimento de que, uma vez que todos os cálculos estavam de acordo com a legislação, as operações realizadas eram lícitas e estavam perfeitamente documentadas, não sendo caso, portanto, de desconsideração.
Além disso, em decisão recente, a Segunda Câmara do Conselho de Contribuintes decidiu que a norma antielisiva não é passível de aplicação até se crie norma integradora a dar-lhe efetividade, conforme ementa da decisão[15] que segue.
“Número do Recurso: 124369 Câmara: SEGUNDA CÂMARA
Número do Processo: 10074.000471/2002-88 Tipo do Recurso: DE OFÍCIO
Matéria: IPI
Recorrente: DRJ-JUIZ DE FORAlMG
Recorrida/Interessado: BELFAM INDÚSTRIA COSMÉTICA S/A Data da Sessão: 28/03/200609:00:00
Relator: Maria Cristina Roza da Costa
Decisão: ACÓRDÃO 202-16959
Resultado: NPU – NEGADO PROVIMENTO POR UNANIMIDADE Texto da Decisão:
Por unanimidade de votos, negou-se provimento ao recurso de ofício. Fez sustentação oral o Dr. Sérgio Augusto Malta, OAB/RJ nº 10.715, advogado da interessada. Ausente ocasionalmente o Conselheiro Gustavo Kelly Alencar.
Ementa:
IPI. DESCONSIDERAÇÃO DE ATOS E NEGÓCIOS JURÍDICOS. O dispositivo previsto no parágrafo único do art.116 do CTN, com a redação dada pela LC nº 104/2001, reveste-se de eficácia limitada, ou seja, dependia, à época da ocorrência dos fatos geradores alcançados pelo lançamento de ofício, da existência de norma integradora que lhe garantisse eficácia plena. Inexistente esta à época dos fatos, o lançamento padece da falta de suporte legal para sua validade e eficácia.
Recurso de ofício negado. D.O.U. de 10/01/2008, Seção 1, pág. 328”
Tanto do trecho da reportagem citada, quanto da decisão cuja ementa consta acima, percebe-se que a aplicação da norma antielisiva tem sido feita com bastante cautela pelos órgãos fazendários.
No entanto, ante a falta de legislação regulamentadora da norma antielisiva, em confronto com o que o próprio artigo 116, § único, do CTN determina, não é cabível a utilização do instituto, mesmo quando se estiver diante de clara demonstração de simulação, restando equivocado o Fisco quando pretende, de forma açodada, como são exemplos os casos acima informados, implementar a regra da desconsideração.
Ressalta inequívoco que apenas quando lei regulamentadora do artigo 116, parágrafo único, do CTN, vier à tona, traçando um procedimento claro e seguro de desconsideração, em que todas as garantias do contribuinte sejam respeitadas, é que será possível a aplicação do instituto antielisivo.
III PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E TEORIAS JURÍDICAS RELACIONADOS À VALIDADE DO ARTIGO 116, § ÚN. DO CTN
É sabido e consabido que a base legal do sistema jurídico pátrio é a Constituição Federal, o que significa que qualquer prescrição legislativa encontra limite, expressa ou tacitamente, na Constituição.
Isso não quer dizer, entretanto, que apenas o texto constitucional ipsis literis contém os mandamentos sociais superiores aos quais se deve observância.
Na interpretação de vários dispositivos, singularmente ou em conjunto, extraem-se comandos normativos que excedem o conteúdo do texto que os retém, valores sociais que se inferem da observação dos atos, sejam jurídicos, políticos ou culturais em uma sociedade.
Os princípios constitucionais traduzem garantias e direitos fundamentais inerentes a todas as pessoas albergadas pela ordem jurídica que os contemple.
A convivência dos princípios é posta à prova quando dois ou mais deles entram em confronto para regular uma mesma relação jurídica, situação em que, em vez de optar-se apenas por um, se deve fazer um cotejo entre eles e procurar uma acomodação razoável dos princípios em questão.
Além disso, todos os atos do cidadão devem ser pautados na lei, pois imperativo de vontade emanado da sociedade, que visa, em última análise, garantir a observância dos princípios básicos de organização e convivência da coletividade (princípios constitucionais).
O Direito, muito mais do que a busca pela justiça, visa outorgar segurança às relações sociais, uma convivência em sociedade sem a desconfiança de que os indivíduos se comportem de forma que violem a esfera de liberdade básica, vida ou patrimônio uns dos outros.
Essa é a razão da importância do Princípio da Segurança Jurídica, um dos mais importantes princípios constitucionais em matéria tributária, pois reafirma a função do Direito, que é a proteção das relações sociais.
Bandeira de Mello[16] define:
“Segurança jurídica coincide com uma das mais profundas aspirações do Homem: a da segurança em si mesma, a da certeza possível em relação ao que o cerca, sendo esta uma busca permanente do ser humano.”
Prossegue dizendo que “é a insopitável necessidade de poder assentar-se sobre algo reconhecido como estável ou relativamente estável o que permite vislumbrar com alguma previsibilidade o futuro”.
O princípio da segurança jurídica é importante na questão envolvendo o artigo 116, parágrafo único do CTN, visto que a norma antielisiva ataca atos lícitos em que houve abuso da forma utilizada com vista a evitar a incidência tributária.
Quando a lei estabelece a possibilidade de ataque a atos lícitos, porém com vício moral na utilização abusiva, cria-se como problema o fato de que o cidadão ao realizar negócios jurídicos não poderá contar com a estabilidade do negócio, caso paire dúvida quanto a adequação da escolha da formatação da relação jurídica; ou seja, se por traz da opção do individuo não há a intenção dissimulatória, mas adveio economia de tributos, podendo o ato ser posto sob suspeita.
A segurança jurídica é importante, portanto, como imperativo de sobrevivência do Estado Democrático de Direito, governado por leis e voltado para a justiça social, com forte aplicação igualmente nas relações tributárias.
No que diz respeito especificamente ao artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, há, ainda, outras questões em matéria de princípios e teorias, algumas relativas à própria razão da tributação.
Por seu turno, outro importante princípio constitucional em matéria tributária é o da capacidade contributiva. Quanto a esse princípio, está no pensamento comum dos povos civilizados e democráticos que cada qual deve contribuir à sociedade na medida da extensão de seu patrimônio, em nome da manutenção do Estado e do bem comum do povo.
O princípio da capacidade contributiva determina que o Estado arrecade dos cidadãos apenas o que eles tem condições de contribuir sem desfalcar-lhes as finanças de modo a inviabilizar-lhes a sobrevivência digna e o pleno exercício de suas potencialidades.
É por esse fundamento, por exemplo, que é admitida pelos tribunais pátrios a progressividade da alíquota de tributos, enquanto instrumento garantidor da função social da propriedade e de justiça social.
O princípio da capacidade contributiva, de certo modo, justifica a preocupação do Estado em evitar que cidadão se utilize do corpo normativo na escolha das regras que mais o favorecem, mesmo que a aplicação fuja a um proceder lógico em termos de opção negocial comum, para evitar o dever tributário.
Neste passo, a Teoria do Abuso do Direito, um dos fundamentos para o ataque a negócios simulados, busca a desconsideração da realidade jurídica para focar-se na realidade econômica, que é o que importaria em última analise.
Alfredo Augusto Becker menciona quatro grupos de teorias de abuso de direito: (i) as teorias que fundamentam o abuso de direito no “prejuízo”; (ii) as que fundam o abuso na falta; (iii) as que se baseiam na finalidade dos direitos e no motivo ilegítimo e (iv) as que tomam o critério moral.
A base da primeira teoria é que a busca pela economia de tributos traria ao Estado e, conseqüentemente à sociedade, um prejuízo com o não recolhimento de tributos. Essa teoria é refutada por Becker[17] com os seguintes argumentos.
“Como sustentar que a evasão (elusão) teria causado prejuízo ao Estado? Tal prova ou demonstração é impossível, porquanto só tem prejuízo aquêle que sofre um dano em seu patrimônio, Ora, o Estado com a evasão não sofreu nenhum dano em seu patrimônio, pela simples razão de que nunca chegou a ter o direito a receber aquêle tributo que deixou de ser pago; e isto porque não chegou a se realizar a hipótese de incidência [ … ] da regra jurídica tributária.”
Quanto à teoria do abuso de direito que se funda na falta, esta se relaciona com o fato de que o cidadão que exerce um direito desejando causar prejuízo, caso da evasão, comete uma falta delituosa. Tal teoria se caracteriza como absurda para o referido autor, vez que, segundo ele, “não é possível se atuar ilicitamente em conformidade com a lei; há uma incompatibilidade lógica nisso”[18].
Outro critério a definir a teoria do abuso de direito em matéria tributária é o critério da finalidade, em que a liberdade de escolha do indivíduo é substituída por um direito dirigido, que deve ser exercido na direção ditada por um ideal coletivo. Se de determinada ação ou omissão resultasse uma utilização repreensível, seja do ponto de vista moral, social ou econômico, haveria abuso de direito, ação que poderia ser condenada em razão dessa utilização repreensível.
Quanto a esse pensamento, Becker[19] faz a seguinte indagação:
“Que liberdade restaria ao titular do seu direito, dentro deste sistema rígido? Que segurança teriam, o titular do direito e os terceiros que com ele tratassem, contra as apreciações arbitrárias do valor de seus atos, segundo o ‘ideal coletivo do momento’?”
A quarta teoria, a do abuso de direito pelo uso imoral do direito, diz que eventual prejuízo advindo de negócio jurídico abusivo está no mau uso econômico do direito, num uso imoral do direito. Para essa teoria, o importante para determinar-se o abuso não é o mau rendimento econômico ou social na utilização do direito e sim a má qualidade moral da utilização.
De outra banda, a chamada “interpretação econômica” é outro elemento intimamente ligado à norma antielisiva.
Coelho[20], ao falar sobre a interpretação econômica, diz que:
“A Constituição brasileira, bem como o Código Tributário Nacional, expulsaram a ‘interpretação econômica’ do Direito Tributário, ao contrário da Alemanha e Argentina ( … ). As luzes do art. 109 do CTN, entre nós, para evitar o uso lícito das formas de direito privado, deu-se ao legislador, e somente a ele, o poder de atribuir efeitos fiscais a atos e negócios jurídicos, não tributáveis, equivalentes aos previstos para atos e negócios tributados.”
Para que se contextualize o surgimento da interpretação econômica, cabe mencionar que, conforme exposto no primeiro capítulo, a interpretação econômica, enquanto ensejadora da desconsideração de ato ou negócio jurídico realizado com finalidade tributária, surgiu na Ordenação Tributária Alemã em 1919.
A função desse instituto na legislação alemã era, conforme Blumenstein, apud Fossati[21],
“Prever hipóteses de incidência para o surgimento da obrigação tributária e hipóteses de incidência suplementares. ( … ) O Princípio da Segurança Jurídica no Direito Tributário poderia ser garantido pelas definições dadas pelo Direito Civil para os fatos, desde que tal definição não fosse desvirtuada com fins de elisão tributária.”
A idéia da legislação tributária alemã de 1919 era que, caso o agente econômico criasse manobras a evitar a incidência tributária, implementar-se-iam as hipóteses de incidência suplementares, para alcançar a verdadeira finalidade do agente ao realizar determinado ato jurídico.
Esse é o cerne da Interpretação Econômica: identificar um ato jurídico pelas suas intenções e consequências e não pela forma. A interpretação econômica é, portanto, um meio de o Fisco evitar que o cidadão realize negócios jurídicos optando por dar-lhes forma que não dê ensejo ao surgimento de obrigação tributária, com a finalidade de encobrir outro negócio, este sim passível de fazer surgir a obrigação tributária.
A interpretação econômica é vista, também, como uma garantia do princípio constitucional da livre concorrência, que não poderia ser contornado através de artifícios que distingam contribuintes por motivos formais, se prestando a garantir o princípio da isonomia e capacidade contributiva.
O grande problema da Interpretação Econômica é que o Fisco ao se utilizá-la para desconsiderar negócios jurídicos adentra num campo delicado, que é o dá intenção íntima do agente ao realizar negócios.
A dificuldade de distinguir-se entre forma e conteúdo de negócios jurídicos e, principalmente, entre opção e finalidade é o que torna arriscada a interpretação econômica, principalmente porque determinado negócio pode objetivamente trazer benefícios do ponto de vista tributário aos agentes, porém não foram realizados objetivando dissimulação.
Por exemplo, digamos que numa situação esdrúxula, certo Estado resolva impor tributo a todos os automóveis fabricados com o porta-malas na parte traseira do veículo, e que certa montadora resolve fabricar veículo com o porta-malas na parte da frente. Esse não é um caso de simulação de negócio jurídico para fins tributários, mas se presta ao desenvolvimento do seguinte raciocínio.
A fábrica do exemplo pode ter realizado a modificação ou por uma questão de design ou por uma questão de planejamento tributário.
A prática de planejamento tributário fere um senso de moral, pois se cria a sensação de que a lei favorece alguns indivíduos, que se usam dos meandros da lei para evitar a incidência tributária, em detrimento de outros. Do contrário, a não incidência de tributo em razão de uma opção estética é uma conseqüência de uma escolha livre e desinteressada.
Quando as razões do ato encontram justificativa apenas na esfera íntima do indivíduo, alegar que houve a dissimulação dos elementos constitutivos da obrigação tributaria é, no mínimo, temerário.
Adentrando na análise da constitucionalidade do artigo 116, parágrafo único, do CTN, de referir que esta se apresenta intimamente ligada à lógica de todo o Sistema Tributário Nacional e seus elementos chave. É uma questão de opção constitucional, ou seja, a interpretação econômica é justa se pensada do ponto de vista da coletividade, que perde quando determinado indivíduo subverte a intenção do sistema para favorecer-se.
No entanto, também é justo rechaçá-la em nome da segurança jurídica, posto que na relação Estado-indivíduo, o cidadão é a parte mais fraca e evitar-se que sua esfera privada de vida e, principalmente, de vontade (intenção econômica do ato) seja violada é essencial para uma vivência harmônica em sociedade.
Como afirmado anteriormente, a busca por desconsiderar negócios jurídicos realizados com a finalidade de economia de tributos, veiculada pelo artigo 116, parágrafo único do CTN, ignora a vontade dos indivíduos envolvidos e foca-se na natureza da negociação e suas conseqüências econômicas.
Qualquer regra jurídica que busque a supressão da vontade dos cidadãos deve ser analisada com parcimônia. Admite-se em muitos países a supressão de garantias dos cidadãos em nome de valores tidos por de maior importância, enquanto de titularidade da sociedade, como a segurança nacional, por exemplo.
Entretanto, não é o caso da norma objeto do presente estudo. O artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, interfere na vontade do cidadão, uma vez que a escolha dentre as opções dadas pelo ordenamento jurídico por formas de negócios jurídicos menos onerosas do ponto de vista tributário é lícita, porém, podendo ser utilizada de forma abusiva.
A reação da norma antielisiva é contra uma opção lícita (que pode ser apenas do ponto de vista da legalidade estrita, desconsiderando-se eventual abuso) do agente, escolhida visando à economia tributária.
Conforme Becker[22],
“Nada altera a circunstância de estes efeitos econômicos serem análogos ou idênticos aos efeitos econômicos que seriam irradiados pelo outro negócio jurídico que foi evitado a fim de se evadir (eludir) o tributo. A evasão é perfeitamente ‘lícita’, pois não foi violada nenhuma regra jurídica ou eficácia jurídica e, por conseguinte, a estrutura jurídica dos atos e contratos deve ser respeitada pelo interprete da lei tributária.”
E se a intenção não foi evitar o fato gerador do tributo? Seria legítima a busca por fulminar a forma escolhida pelo cidadão ao realizar um negócio jurídico, simplesmente porque há outra forma em que se chega ao mesmo resultado, mas há a incidência de tributos?
O artigo 5º, II, da Constituição da Republica Federativa do Brasil é claro ao dizer que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude da lei. Se o cidadão faz escolhas dentro de parâmetros legais é de se indagar se a integridade de seus atos deve ser respeitada.
Malerbi[23] declara que “é lícita a escolha do negócio menos oneroso, visto que o princípio da legalidade criaria um limite para o poder do Estado, originando um direito constitucional de liberdade para o contribuinte”.
A economia tributária gerada pela elisão, a que a norma antielisiva busca combater, não encontra obstáculo no campo da licitude, porém no campo da moralidade, pois ao evitar-se a realização de fatos geradores de tributos através de estratégias e manipulação dos instrumentos legais, cria-se um desconforto, ante a inobservância de deveres de cidadania.
O pagamento de tributos é um dever social que encontra amparo na lei. Porém quando a própria lei fornece mecanismos hábeis a reduzir ou evitar o surgimento desse dever, a escolha de se utilizar ou não desses mecanismos para evitar fatos geradores de tributos deve ser analisada do ponto de vista do sentimento moral de dever para com a sociedade e não da lei.
Quanto aos deveres morais, embora o dever de contribuir cada qual com suas capacidades seja um ideal do senso comum no Brasil, não se pode negar que a lei é o parâmetro primeiro a definir deveres, e se alguns cidadãos conseguem maximizar o volume de negócios com o mínimo de incidência tributária, isso se deve ao fato de que as regras do sistema assim o permitem.
Um dos papéis da sociedade, seja por meio do Estado, seja no seio da família, é certificar-se de transmitir valores morais, como o é o sentimento de dever para com a manutenção financeira do Estado.
A solução, porém, não pode ser a supressão da vontade individual com a desconsideração de negócios realizados, pelo mero fato de a forma pela qual esses negócios se exteriorizaram implicar em economia de tributos.
A intenção do agente é a peça fundamental na verificação da conveniência ou não da desconsideração, ou seja, ou o Fisco prova a intenção e o abuso do ponto de vista da vontade do agente, ou a desconsideração não é possível.
A perquirição do que é simulação e do que é mera opção esbarra, pois, na indecifrável razão de certas ações humanas. Corre-se o risco de, em cada ação, a livre vontade do cidadão ser substituída pela vontade do Estado. O fato de se avaliar as intenções do agente para desconsideração, íntimas, dado que a dissimulação da natureza deve ser comissiva, é, de certo modo, incompatível com a atividade fiscal, que deve se pautar pela objetividade.
Além disso, a cláusula do artigo 116, parágrafo único do Código Tributário Nacional, se usada de modo indiscriminado, pode vir a impossibilitar uma série de modalidades negociais que nada tem de simulados, como é o caso do leasing, v.g.
A limitação pelo Fisco das complexas relações sociais expressadas nas relações jurídicas pode vir a trazer mais prejuízos à sociedade do que ganhos.
Segundo Bilac Pinto[24], apud Coelho:
“A admissão da tese de que as autoridades fiscais podem opor uma apreciação econômica à definição legal do fato gerador ou que lhes é facultado eleger, por meio de critérios econômicos subjetivos, um devedor do imposto diverso daquele a quem a lei atribui a obrigação de pagar o tributo, equivale a esvaziar o princípio da legalidade do seu conteúdo.
A substituição do critério jurídico, que é objetivo e seguro pelo do conteúdo econômico do fato gerador implica trocar o princípio da legalidade por cânones de insegurança e de arbítrio, incompatíveis com o sistema constitucional brasileiro”.
Por outro lado, Rui Barbosa Nogueira[25], apud Cassone, ao falar sobre a interpretação econômica, pondera se a “interpretação econômica” e a “interpretação jurídica” são, de fato, assim tão incompatíveis, o que coloca nos seguintes termos:
“A consideração econômica, dentro da interpretação teleológica, deve ser correlacionada com o princípio da uniformidade da tributação, segundo a qual fatos iguais devem, em princípio, ser igualmente tributados.
A consideração econômica dentro da teoria da interpretação do Direito não significa uma intromissão livre da ciência econômica dentro do Direito. Esta tem de ser e somente pode ser uma interpretação de conteúdo econômico e válida quando jurisdicizada ou admitida pelas disposições isoladas ou correlacionadas do Direito. Constitui um erro distinguir-se consideração “econômica” e “jurídica”, pois a consideração econômica só é vinculante até onde tenha sido admitida pelas normas jurídicas; do contrário, constituiria um elemento de insegurança, em vez de instrumento de normatividade do Direito.”
Ao serem perfectibilizados negócios, partes e terceiros interessados agem de acordo com aquela expressão de vontade; a possibilidade de desconsideração gera inquietude, insegurança.
O princípio da legalidade oferece resistência a qualquer tipo de atitude por parte do operador do direito tributário que vise ir além do estrito conteúdo da lei, como, v.g., interpretação extensiva e analogia, esta expressamente proibida pelo Código Tributário Nacional.
No entanto, a consideração econômica é útil para demonstrar o uso legítimo de estruturações que permitem a economia de imposto, isto é, a faculdade que tem o contribuinte, dentro da ordem jurídica, de estruturar legitimamente suas atividades.
Em suma, a viabilidade quanto à existência e aplicação da norma antielisiva encontra respaldo na forma como ela for operacionalizada, ou seja, a conduta do Fisco quando da realização da atividade de desconsideração é determinante a definir se o uso da norma antielisiva vai de encontro ao próprio artigo 116, parágrafo único do CTN e da Constituição Federal.
CONCLUSÃO
A norma antielisiva do artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, é uma realidade que não pode e não deve ser ignorada.
Embora a desconsideração de negócios tidos por simulados para fins tributários seja uma prática já amplamente realizada em outros países, é de se questionar se a ordem constitucional brasileira está apta a ver em plena operação tal mecanismo, cujo funcionamento pode, por um lado, culminar em benefícios em termos de arrecadação e garantir certa justiça social, ou, por outro, implicar em injustiças e discricionariedade além das balizas legais.
Muito mais do que uma fórmula supostamente garantidora dos princípios da isonomia e da capacidade contributiva, a norma do artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, é uma prática com finalidade arrecadatória.
Como mencionado, há negócios que pela forma podem parecer simulados, mas em verdade não o são, caso de certos contratos de leasing, em que o referido conteúdo pode ser caracterizado em uns casos como arrendamento mercantil, em outros como uma compra e venda. Como se verifica a simulação em um caso desses, considerando que a lei determina para desconsideração o cometimento de um ato comissivo de simulação?
Entende-se que o grande problema da norma do artigo 116, parágrafo único, do CTN, é que o seu uso pela administração fiscal possa se prestar a abusos, como a desconsideração de atos cuja finalidade não era simulação, embora haja gerado para o cidadão economia de tributos. Isso porque se faz necessária incursão pelos anseios íntimos do contribuinte para poder-se aferir qual a razão determinante do negócio sob suspeitas de elisão, sendo tal empreitada deveras dificultosa dentro do sistema normativo vigente.
Não custa lembrar que o auge da utilização da norma antielisiva no país onde foi criada, Alemanha, se deu no governo do Terceiro Reich alemão, sob a batuta do Partido Nazista, em que a vontade do Estado estava acima de qualquer interesse individual.
Se o Estado apenas deseja manter ou incrementar arrecadação, evitar a falta de lealdade do cidadão para com o Fisco, deve atuar em outros campos, na questão da obediência tributária e dos deveres de cidadania. Porém, se almeja usar o instrumento da desconsideração com finalidade de garantir princípios constitucionais como da Capacidade Contributiva e Isonomia, suas intenções serão válidas.
O que não pode ocorrer com o instituto do artigo 116, parágrafo único, do CTN, é o que diz Piero Villani[26], apud Cassone , ao analisar o art. 51 da Lei 7.450/1985:
“O único problema é: é provável que a Administração Fazendária tente fazer do artigo um princípio geral, aplicável além dos próprios limites fisiológicos, com o fim de, nos casos de dificuldades, atingir os efeitos econômicos dos negócios jurídicos, para além do que permite o ordenamento.”
A violação da autonomia da vontade do indivíduo exercida licitamente dentro das regras do sistema jurídico, por mais que exercida de forma moralmente reprovável, não pode ocorrer automaticamente.
De outra banda, se a tendência de aplicação futura da norma antielisiva, pendente de lei regulamentadora, seguir a linha de pensamento atual dos órgãos fazendários, será aplicada em clara ofensa ao disposto no próprio texto da norma complementar, além de infringir o Princípio (regra, como preferem alguns) da Legalidade, consagrado pelo artigo 5° da Constituição Federal, possibilitando desprezível margem de atuação extremamente subjetiva e carecedora de regras limitadoras ao Fisco.
Soa evidente que embora de fato haja casos de efetivo abuso do planejamento tributário, a lei deve antes pensar nos diversos negócios que não foram realizados com finalidade dissimulatória, mas deixam dúvida quanto a isto.
Portanto, deve ser produzida norma regulamentadora que garanta o respeito aos ditames constitucionais, fazendo com que a aplicação do artigo 116, parágrafo único, do CTN, se torne viável dentro do sistema jurídico brasileiro, criando-se procedimento administrativo garantidor do devido processo legal, com todos os meios inerentes a este postos em favor do contribuinte.
Advogado corporativo, Especialista em direito tributário pelo instituto brasileiro de estudos tributários, Estudante regular do doutorado em direito da universidad de buenos aires – UBA, Professor de direito empresarial na Faculdade Anhanguera de Pelotas/RS
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