Resumo: A crise de consciência ética evidenciada nesse auspicioso período de transição, chamado de pós-modernidade, tem gerado diversas contradições quanto ao fundamento mesmo de existência do Direito e da Economia. Em especial, o trabalho como apropriação da ciência jurídica e econômica, móvel de uma ideologia há tempos imóvel: o capitalismo. A subversão de dois aspectos nucleares da liberdade, em si e para si, criou uma situação de imprevisibilidade social quanto ao destino da humanidade, já que, as relações intersubjetivas e entre o Estado, dependem da utilização racional da liberdade que, infelizmente, cresce, a cada dia, como mera e audaciosa utopia. Com isso, o trabalho virou vítima inequívoca de uma relação contemporânea de escravatura: a do Direito pelo sistema capitalista, e pior, da consciência do “ser” pela popularização do “ter”. Com isso, mudou-se a dinâmica da sociedade, especialmente, a do trabalhador, que além de vitimizado pela hodierna legislação, como hipossuficiente, tornou-se, também, alvo do mais deturpado uso do conhecimento sobre os bens da vida, em cuja base, reside a prática de unificar o discurso das massas em idêntico som: o da submissão aos ditames de uma neotecnocracia e de uma moderna aristocracia político-intelectual. [1]
Palavras-chave: Crise – ética – Direito – trabalho.
O ensejo concedido aos temas notadamente relevantes num período de pós-modernidade, como o pensamento hodierno nos compele a adentrar, deve vir precedido de uma análise conjuntural de fatores que, cada um contribuindo com sua parcela, significam a formação de uma inteligência social apta a indagar acerca dos problemas mesmos apostos à seara da existência humana. Sem alargar o caráter propedêutico destas linhas inaugurais, cumpre destacar a proeminência do tema colocado à nossa modesta dissertação, qual seja a relação causal existente no fenômeno do trabalho como produto de um sistema político-econômico dotado de valor e sua importância social como aspecto da dignidade humana.
O capitalismo enquanto paradigma de um nefasto sucesso material está presente em demasia no atual contexto, dito pós-moderno. Analisar, no entanto, tal pós-modernidade implica na justa apreciação do processo histórico até então operado que, nos dias atuais, permite argumentar sobre uma possível transitoriedade entre uma ordem precedente, um meio-termo e, finalmente, o ponto aonde desejamos alcançar.
Cada vez mais fica evidente que a introdução do modus vivendi capitalista, à maneira do consumo, tem separado o “ser” no palco das nossas preocupações primeiras. Isto quer dizer, sob outro prisma, que o avanço tecnológico e a inquietação pelo crescimento econômico têm subvertido a função genética dos meios de desenvolvimento da vida, deixando de lado o que realmente importa e o que fundamentalmente é necessário para se viver em equilíbrio. Parece, outrossim, que a crise não se constata apenas no sentido exterior, ou seja, não se trata exclusivamente de uma influência perpetrada pelos detentores do capital, mas, especialmente, o problema ganha conotação interna e isso significa (re) pensar os padrões de nossa racionalidade, logo, é problema competente à consciência humana.
Sobremaneira, esta inversão da ordem natural que seria a utilização dos modelos político-econômicos a favor da vida e do bem estar acaba por reduzir todos os fatores operantes numa sociedade à manipulação pela ciência capitalista, ou seja, vemos aqui a atualidade da teoria marxista sobre a superestrutura. No caso em espeque, pretendemos demonstrar que o Direito ainda está contido nesta dinâmica, de tal sorte que o empreendimento de humanização do Direito, principalmente a partir da Declaração dos Direitos do Homem de 1948 até os dias de hoje e com o moderno Estado Humanista, vem de encontro com toda uma edificação legislativa, sobretudo no Brasil, cuja preocupação é a proteção irremediável do patrimônio em diversos campos como no cível, trabalhista, empresarial, tributário, previdenciário, ambiental e mesmo em alguns casos no penal, quanto aos crimes contra ordem financeira e econômica. Não que a proteção do patrimônio seja inidônea de ser observada numa certa ordem jurídica, porém, extrapolar os limites da razoabilidade submete o Direito, responsável pelo estabelecimento de princípios que satisfaçam as necessidades concernentes à dignidade da pessoa humana, à mediocridade, à insuficiência. Assim, nota-se que a grande maioria dos temas jurídicos quando não presos às discussões acadêmicas destoadas do aspecto prático que lhes seria oportuno, restringem-se às questões, direta ou indiretamente, relativas ao patrimônio público e particular, mas não à reestruturação ética com que suas premissas deveriam a priori trabalhar.
Hoje, o paradigma jurídico da propriedade privada (aqui entendida como todos os bens materiais apropriáveis e disponíveis no mercado) está em conflito direto com o paradigma ontológico trazido pela revolução humanista, contraposta ao aspecto técnico-formal do Direito. Como tentativa de solução deste aparente conflito o Estado providente tem tomado medidas legislativas que, de certa forma, mitigam o desejoso ímpeto daqueles cuja preocupação central é a proteção do patrimônio e do locupletamento ad infinitum. Exemplo satisfatório é a função social dos contratos, princípio de dimensão pública, cogente, que é aplicado à seara dos negócios, também sob a égide da boa-fé objetiva e da prudência.
Se, pois, um dia Kelsen quis trazer à baila uma teoria pura do Direito, desprovida de elementos metajurídicos (na sua visão) como a Sociologia, a Psicologia, a Política e a Axiologia, ao ponto de, em virtude de tanto rigor e formalismo acentuado, submeter a existência do Estado à existência primeira do Direito, na atualidade talvez, estejamos submetendo, em similares moldes, o Direito à existência primeira do capitalismo. A grande diferença, entretanto, é que a intenção de Kelsen estava fundada em premissas, do ponto de vista filosófico, compatíveis com o uso da razão em relação ao processo de construção científica. Já para nós, no caso de submeter o Direito ao capitalismo, não nos baseamos em premissas científicas formadoras da nossa própria consciência, pelo contrário, somos usurpados no nosso livre pensar, na medida em que temos nossa vivência cotidiana balizada por ideais que alocam o Estado neoliberal à utilização do Direito como método prático de intervenção moderada na economia; moderação esta alheia à percepção concreta dos temas coerentes aos princípios de ordem ôntica cujo objetivo é a constituição de uma sociedade que distribua melhor suas riquezas através do fornecimento de melhores oportunidades por meio de investimentos nos setores ligados ao progresso social como: educação, planejamento urbano, saúde, trabalho, saneamento etc.
Não quer dizer, inobstante, que o Estado não deva intervir na vida do cidadão, porém esta intervenção precisa estar lastreada na garantia de direitos e no estabelecimento de deveres de civilidade, sobretudo difundidos numa ética da outridade [2] (LEFF, 2006), ou seja, da convivência com o outro, no ato de respeito das diferenças étnicas, raciais, culturais, ideológicas, políticas etc., mas que, por entendimento lógico, não podem ser postas no campo do dever-ser normativo, do imperativo legal, mas intermediadas por políticas públicas direcionadas à educação básica e superior, contínua e assiduamente perpetradas.
Tais constatações servem de preparo para a discussão que intencionamos neste trabalho, logo considerar que a apropriação capitalista do Direito tem influenciado, em muito, a sistemática trabalhista brasileira, mormente quanto à sua apreciação sob a ótica jurídica e econômica.
Quando falamos em prostituição do trabalho, nos referimos a uma conceituação própria do campo da filosofia da Economia, da filosofia do Direito e, sobretudo, da filosofia do Trabalho.
As interações produzidas na sociedade contemporânea são produto de uma cristalização cometida pelo domínio sagaz da classe burguesa. Desde quando a França passou pela grande revolução, inclusive iluminando e dando substância para diversos outros movimentos ao redor do mundo, saindo de uma aristocracia agrícola para uma burguesia capitalista e, após, quando a Europa passa pela primeira revolução industrial, rompendo de vez com a terra como o principal fator de produção de riquezas para a indústria e a mecanização do trabalho, podemos perceber uma grande época de transição da humanidade. De todo o certo os cidadãos que vivenciaram tal período de transição (rural para o industrial) mal conseguiram se dar conta da relevância e da magnitude das transformações que rapidamente tomavam forma especialmente no cenário econômico e social.
As evoluções jurídicas, no sentido de proteção ao trabalhador e ao trabalho de um modo geral, sempre foram posteriores aos avanços da economia – dado histórico que corrobora para a tese da apropriação capitalista, ou melhor, econômica, do Direito. Talvez se fosse possível à ciência jurídica antever os fatos molestadores praticados pela economia desenfreada e alienante teríamos consolidado um ordenamento em cuja preocupação nuclear estivesse a formação de consciências cidadãs voltadas à utilização racional das liberdades individuais. Contudo, ao alocar ao campo da importância residual a ética e a moralidade pública, sustentáculos efetivos de uma ordem jurídica proporcional com a evolução do pensamento humano, corroboramos para a tese de que cada vez mais o Direito é invadido pelas forças sorrateiras do mercado, ludibriando a técnica legislativo-parlamentar em prol do cometimento de erros grosseiros visivelmente tendenciosos à colocação da lei em posição superestrutural, outorgando a uns poucos o gozo arbitrário do poder falsamente fundamentado num ideal já desgastado de democracia.
Já quanto aos períodos de evolução, hoje em dia nitidamente nos encontramos na era da comercialização do conhecimento. O conceito marxista de mais-valia toma, aqui, proporções diferenciadas, que merecem destaque. Sua formulação originária estava na teorização de um dado empírico observado pelo ilustre filósofo da sociedade, onde a relação entre o trabalho despendido na produção de determinado bem e sua efetiva comercialização pelo detentor do capital (o capitalista) gerava um lucro excedente não percebido pelo trabalhador (proletário), tornando ainda mais desigual essa relação já marcada pela exploração. Quer dizer, o operário produzia mais do que era socialmente necessário, colocando no mercado produção excessiva, posteriormente capitalizada pelos processos de reificação das mercadorias, as verdadeiras ideologias no “ter” conotadas como “ideais de felicidade” ou “satisfação”. Tal desequilíbrio entre a oferta e a demanda, aliado aos processos de reificação das mercadorias, gerava um lucro exorbitante para os detentores dos meios de produção, logo, a força de trabalho empregada pelo proletariado era desproporcional à remuneração até então percebida.[3] Comprova tais fatos a violenta mecanização e intensa divisão do trabalho, fazendo com que a utilização reiterada da força de trabalho, em virtude de um processo industrial contínuo e ininterrupto de produção massificada, através da tecnologia disponível, também gerasse uma desproporção, visto que Marx utilizava para o trabalho, o conceito de tempo despendido ou coagulado na produção. A partir disto temos em mente que a evolução da tecnologia voltada às grandes produções industriais, e ousaríamos dizer às pequenas produções e cooperativas, v.g., está diretamente ligada à afirmação do novel conceito de mais-valia. Ou seja, o ritmo acelerado operado na evolução da tecnologia da produção aumenta, ainda mais, o lucro não percebido pelo proletariado (em sentido amplo, agora) em favorecimento do capitalista. Senão vejamos: se uma indústria consegue, utilizando a máquina X, produzir 1000 mercadorias por hora, sendo que a demanda efetiva seria de apenas 500 mercadorias, e sendo esta máquina operada por apenas 2 operários, teremos uma demanda putativa colocada no mercado. Por outro lado, se uma indústria, pela maior tecnologia, conseguir, utilizando a máquina Y, produzir 2000 mercadorias por hora, apenas com 1 operário, com uma demanda efetiva inicial de 500 mercadorias, teríamos um excedente de produção e lucro ainda maiores, visto que, no caso, o aumento da oferta acabaria por reduzir o preço, quando a demanda em baixa estivesse, contudo, importará a quantidade vendida e o lucro total percebido, resultando, inequivocamente, na usurpação do trabalhador na apreciação proporcional do uso do seu trabalho naquilo que é socialmente necessário. Ainda, mesmo a demanda em baixa, barateando o valor dos produtos, restaria o lucro, devido ao fato de que as novas tecnologias não somente atendem ao requisito da grande produção em menor tempo possível, como à maior produção na mais alta qualidade, no menor tempo possível. Sem falar que, como uma máquina exige apenas a operação por parte de um único trabalhador, há a economia, por parte do detentor do capital, quanto às despesas com recursos humanos e gastos anexos quanto à segurança do trabalho, bem como verbas trabalhistas legalmente devidas. Afinal, às máquinas não são devidas férias remuneradas, FGTS, descanso semanal remunerado, 13º salário, adicional de periculosidade, insalubridade, aviso-prévio, anotação na CTPS, dentre outros… Fica fácil entender a dinâmica, donde a própria economia agora se apropria da tecnologia para o uso desenfreado de suas potencialidades produtivas que, havendo exacerbação, gera forte desemprego e estagnação da sociedade. Ou seja: um empregado exercendo seu labor tem à sua disposição crédito correspondente à sua remuneração, ou muitas vezes acima dela, fornecido por bancos ou financiadoras, para o consumo de bens duráveis ou não; este mesmo empregado, se demitido, porque agora uma máquina faz o mesmo trabalho que ele, porém em menor tempo e com maior destreza técnica e perfeição qualitativa, e não conseguir se recolocar no mercado, pois sua capacidade laboral fora suprimida pela propagação destas máquinas de alto rendimento, não mais terá, à sua disposição, o crédito para consumo, ou pior, se estiver arcando com prestações baseadas em juros, não suportará o adimplemento de tais obrigações. Agora imaginem a mesma situação, todavia para uma máquina que substitui o trabalho de 100, 200 ou mais trabalhadores. É uma situação com a qual não podemos nos coadunar.
Este é um processo que em longo prazo geraria a quebra da própria indústria, haja vista que ninguém teria condições para pagar o preço das mercadorias postas à venda, ou, pagar-se-iam preços muito menores em relação ao preço pago pelo capitalista para produzir sua mercadoria. Isso, num cenário onde mais da metade da classe trabalhadora fosse operária ou que pudesse ter sua capacidade laboral substituída pela de uma máquina.
No entanto, no decorrer destes fatos, começa a surgir na sociedade uma maior preocupação para com a técnica, para com a especialização. No campo industrial podemos citar a necessidade de que os operários tenham conhecimentos específicos para gerenciar as máquinas, o que mesmo assim gera um número excedente de desemprego, mas os que anteriormente haviam sido excluídos, agora retornam como operadores das máquinas. Cabe ressaltar que esta onda de preparo técnico em nada reduz a maior apropriação do capitalista pelo capital excedente, pelo motivo de que ao mesmo tempo em que o progresso tecnológico entrou no lugar da força direta do homem na produção, trouxe a preocupação relativa a quem poderia operá-las da melhor maneira possível. A emergência das escolas técnicas tem, nesse sentido, importante papel de prova para tal transição: do trabalho manual reiterado à manipulação da máquina. Claro que a previsão descrita nas linhas acima não poderia ter sido afirmada, posto que existe proteção legal à substituição do trabalhador pelas máquinas (automação)[4], mas não existe vedação quanto à especialização que a indústria pode, e de fato vai, exigir de seus empregados.
Por ser o Brasil um país de enorme planta industrial e, tendo em vista a posição de grande exportador, especialmente de no setor agrícola e petrolífero (ainda mais com a descoberta do pré-sal), existe uma maior necessidade de mecanização da produção, até por que permite uma maior exploração da capacidade produtiva e, consequentemente, do potencial de venda e agregação de mais valor às mercadorias, circunstâncias que caminham lado a lado com a noção de alta produção aliada à qualidade e quantidade no menor tempo possível. Daí que, em virtude de tais fatores, começamos a evidenciar as falhas, ou apropriações capitalistas do Direito, que beneficiam a movimentação cíclica de oferta e demanda, agora em nível internacional, subvertendo a função autêntica do Direito como sendo para o uso consciente da liberdade e manutenção e no ensinamento de como utilizá-la, haja vista que precisamos lidar com o dado de que a população brasileira, em sua maioria, não está constituída em bases culturais suficientes para lograrem interpretar os caminhos de suas próprias vidas, tornando-se alvos fáceis para as compulsórias diligências legislativas e estatais no sentido de direcionarem a liberdade de ir e vir do sujeito de direitos de acordo com a vontade de uma pequena oligarquia industrial e de uma crescente e histórica burguesia capitalista. Quer dizer, diante deste panorama sociológico, há maior indulgência pela educação fornecida pelo Estado, na forma de provedor mínimo de condições que permitam aos cidadãos proverem a subsistência mesma de sua dignidade com base no uso racional da liberdade detida.
Por isso, apontamos na educação a primeira grande falha e mostra flagrante da mais profunda apropriação capitalista do Direito a exemplo simbólico do artigo 205 da Constituição da República que prescreve a qualificação para o trabalho como requisito intrínseco à educação pública. Ainda, a possibilidade do maior de 14 anos poder estar na condição de aprendiz, sendo defeso o trabalho abaixo desta idade, e mesmo para o menor de 18 anos, em local insalubre, perigoso ou em horário noturno, acaba por contribuir à manutenção de uma população que tem sua vida destinada apenas à valorização do trabalho como dignificante da alma humana, ao invés de perceberem que o conhecimento e o uso da razão no discurso ético voltado ao desenvolvimento universal, é o único meio pelo qual se, verdadeiramente, pode elevar o espírito do homem, direcionada à sabedoria, à eterna construção. Somente após ter conhecido um ensino de qualidade e sabendo utilizar racionalmente de sua liberdade é que o homem poderia optar pela sua qualificação para um trabalho específico ou pela dedicação à outra tarefa em cuja essência não fosse necessária a especialização, mas a apreensão de uma sabedoria mais universalista, social, capaz de, aí sim, dignificar sua existência e fazer valer a pena sua vida material.
Quando o Estado impõe a qualificação para o trabalho como aspecto, função, ou objetivo da educação, notadamente não está preocupado com a valorização do cidadão no sentido ligado à possibilidade deste em fazer livre uso de suas aptidões laborais; pelo contrário, certifica uma sociedade ignóbil do ponto de vista filosófico da moralidade e da efetiva e perpétua garantia dos direitos individuais, fazendo, sobretudo, que seja gerada uma população adstrita à vida mediada do trabalho cotidiano, especuladora da política, logrando perceber maiores benefícios, do que uma população esclarecida, posta à maioridade, no sentido da filosofia kantiana, apta a questionar da validade mesma dos atos ditos como democráticos, assim como mobilizar-se a favor de um sistema de governo garantidor da total liberdade, da efetiva liberdade, especialmente de pensar, de criar, de falar e, sobretudo, de mover a própria vida com base nos próprios desígnios.
O Estado deve garantir a coexistência pacífica através da difusão de uma ideologia de convívio ético e respeitoso. É dizer: ao invés de ensinarmos nas escolas a importância do trabalho para a vida do homem, deveríamos ensinar o modo de se viver em plenitude, ou seja, construindo seres eticamente sólidos, politicamente coerentes com o uso e eventual abstenção das suas liberdades em prol do outro necessitado ou cuja esfera de direitos possa ser afetada pelo mau uso desta.
Tal proposição obedece, nitidamente, à noção de moralidade subjetiva – numa sociedade civil, o Estado deve fornecer os proventos para a vida digna das pessoas, enquanto conceito abstrato, ou seja, na presunção de todas pertencentes ao mesmo grupo enquanto ainda não “individualizadas pelas determinações que as particularizam” [5] perante um conceito de igualdade dinâmica. Assim, diante de uma moralidade objetiva – “o que, de fato, todos, em consenso, pensam do Estado e do seu ônus de fornecedor de proventos?” –, é que podemos chegar à definição, in concreto, da apropriação capitalista do Direito. É, pois, uma questão cultural, atinente à cultura média. Aí, inclui-se, mormente, a cultura mais evidente na sociedade, quer dizer, a cultura do “ter”, donde partimos para um conceito subvertido de moralidade objetiva, justamente o ponto de intervenção ideológica de um dado da sociologia empírica, ou seja, que nos diz essa própria cultura do “ter” que projetou à satisfação das vontades individuais uma determinação material (física) do pleno uso da liberdade, por conseguinte, na exultação de uma vida, só assim alegre e feliz, pela propriedade adquirida e pela efetiva posse e disponibilidade como valor próprio de troca. Assim, mede-se a personalidade da pessoa, para fins de igualdade, não pela sua capacidade, mas pela quantidade e qualidade da propriedade detida em seu poder. “Aqui, a igualdade consistiria apenas na igualdade das pessoas abstratas como tais; fora dessa igualdade fica tudo que se refere à posse, que é domínio da desigualdade, permanecendo à margem da pessoa abstrata.” [6]
A propriedade, e a posse obviamente, é a extensão fática de um ato próprio da vontade como pertencente à liberdade para si e não em si. A liberdade em si é existência substancial, é conceito de afirmação; mas a liberdade para si, é a satisfação no plano da experiência, de uma vontade guiada pela razão prática obediente a uma moral. A moral do “ter”, na sociedade hodierna, não é subjetiva (pois não visa a positivação do ser para sua própria harmonia), porque não se logrou o pensamento do “ter” como algo refletido pela razão enquanto pureza especulativa e livre, pelo contrário, é objetiva, na medida em que o dado da vontade não almeja o pensamento próprio da vontade do indivíduo, mas no querer de certa coletividade, em cuja essência reside, como visto, uma cultura subvertedora da natureza humana, que, ontologicamente, é ser em si e para si, como experiência e vida substancial harmonicamente composta na natureza, no entanto, numa apropriação irracional promovida pelo arbítrio dos que hoje, além de detentores do capital, dominam o conhecimento, tão-logo, a consciência de agir, ao passo que os demais, não detentores do capital ou do mínimo de conhecimento (do ser primeiramente e depois da política do agir) se coadunam, como marionetes, no círculo vicioso da razão corrompida.
Esta constatação justifica a crise de consciência que vivemos. Em especificidade, o trabalhador, é prostituído[7] para trabalhar para algo cujo proveito não se compatibiliza com o seu esforço despendido. O trabalho, para o Direito, tem conotação de proteção ao economicamente hipossuficiente e não como instrumento de busca da dignidade enquanto valor social a despeito do que indica o art. 1º, IV da Carta da República de 1988 [8]. Vale dizer, o Direito afirma o valor social do trabalho como equiparação segundo um critério de igualdade econômica e, portanto, um critério de equiparação patrimonial – de propriedade, em sentido amplo. Em primeiro lugar, o trabalho é direito social, pela dicção do artigo 7º do mesmo diploma citado, em relação ao fato de pertença à esfera de garantias de todos – aí, pode-se inferir algo de dignidade, e ainda, o art. 170 (“Da Ordem Econômica e Financeira” – no capítulo I: “dos princípios gerais da atividade econômica”), que diz que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano, e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social e mediante alguns princípios norteadores, dentre os quais, optamos por realçar o da propriedade privada.
Quanto ao princípio da propriedade privada (em sentido estrito), o trabalhador a detém, enquanto força de trabalho físico ou intelectual, na medida em que, ao produto da sua atividade essencial, pode ser agregado valor de troca. Se inexistente uma proporcionalidade na prestação, ao trabalhador, pelo seu esforço, o princípio da propriedade privada, que se lhe é íntimo, é mitigado, tornando lícita a intervenção do Estado, pela jurisdição, a fim de restabelecer tal ordem.
O simples fato de existir um Direito do Trabalho infraconstitucional (CLT) no ordenamento jurídico é sólido indicativo de que, no concreto, o trabalho não é aspecto da dignidade, tampouco meio de obtê-la, mas sim, meio de conquista de algo não essencialmente presente à idéia de dignidade, visto que esta é condição para o uso pleno e racional da liberdade em si, logo, de algo exógeno: a economia capitalista, instrumento a priori de satisfação da liberdade para si, contudo, de modo irracional e insuficientemente ético. Quer dizer, em outras palavras, o Direito do Trabalho existe para o equilíbrio das relações trabalhistas, pois nelas subsistem grandes disparidades, e ainda, como correção prática de um mandamento constitucional, de lastro humanista, que não logrou êxito quanto à eficácia. É, portanto, prova fundamental da tão citada crise de consciência ética da sociedade pós-moderna. O Estado nunca conseguirá conquistar seus fins de garante da vida digna se não puder questionar as causas primeiras dos flagelos sociais, que não podem ser discutidos em sede de jurisdição infraconstitucional, ou melhor, dizendo, em sede da incidência de legislações cujo objetivo é o equilíbrio das relações negociais referentes ao trabalho, no nosso caso. Pelo contrário, conquistar-se-á a real garantia da vida digna, pela (re) construção do sistema ético vigente, ou seja, uma completa (re) formulação das instituições de poder para que, então, se fortaleça a autoestima do cidadão frente ao Estado. Desta maneira, a opinião pública será refeita em relação à função do poder na vida e, sobretudo, quanto à formação das próprias instituições de poder que, até então, têm perdido o prestígio, prova de mudança, pela inversão de valores, e do próprio conceito de valor, da opinião pública enquanto voz legítima do povo para o comando da aristocracia do capital e do conhecimento. Quanto a isso, vale o apontamento de Paulo Bonavides, in verbis:
“Talvez o cerne da mudança resida nisso: a opinião pública “despersonalizou-se”: de criadora e financiadora de instituições se transfez ela mesma numa instituição “criada” e “afiançada” pelo Estado para manter outras instituições. Na sociedade de massas, o indivíduo, as idéias, os juízos críticos, a autonomia do raciocínio contam pouco, cedendo lugar à ação coletiva, aos juízos de grupo, aos interesses de classe e profissão, às ideologias. Abre-se assim caminho àquela opinião pública, marcada pela funesta imperfeição de haver abdicado nos órgãos estatais e nas minorias tecnocráticas a palavra de comando político, que as massas passivamente acatam.” [9]
A apropriação capitalista do Direito é um problema flagrante em nosso ordenamento jurídico. Tal fato deve-se em função de longa construção histórica onde a usurpação das liberdades individuais é produto da pregação da ideologia do uso da liberdade para si, subvertendo-a, em sua origem natural de inclinação à vida harmônica, à satisfação de interesses meramente materiais. O trabalho torna-se, enfim, alvo do desejo impetuoso dessa cisma capitalista de busca pelo lucro e poder, malgrado o Estado não tenha conseguido obter sucesso com sua política de evidência dos direitos fundamentais, através da Constituição da República, consequenciando na reitera promulgação de leis, aqui, sobretudo, apostas à proteção do trabalho e do trabalhador. Em grande verdade, não se poder, com tanta propriedade, arraigar um argumento deveras imponente sobre a democracia de hoje, pois que, mesmo uma democracia pode ser injusta, e isso ocorre quanto a opinião pública não foi edificada na razão e sim na emoção. No entanto, o Brasil é um jovem país democrático, se compararmos a outras democracias mais antigas e, pois, mais amadurecidas. Talvez a pós-modernidade seja de fato um período de transição, ou melhor, mais um período de transição. Mas, como toda grande transformação da sociedade e do pensamento, é preciso que se opere revolução mais íntima antes da tomada de efeitos universais, quer dizer, o problema de uma transição, logo de uma mudança, se objetiva um fim melhor em relação ao que se sobrepõe no tempo, está contido na capacidade de cada indivíduo pensar sua existência e, por conseguinte, os limites objetivos de suas liberdades. É condição prejudicial para uma nova Era, caso contrário, é o retrocesso iminente resultado de um processo falho de amadurecimento cidadão no sentido do pensamento social e do respeito à diferença presente em cada modo de viver e de sobreviver. Se um Direito do Trabalho, posto na CLT, ainda resiste à força devastadora do tempo e da evolução do homem, significa que chegou a hora de (re) discutirmos as bases de uma suposta proteção ao trabalhador e ao trabalho, isso se de fato almejarmos engajar o texto constitucional, que apregoa pela funcionalidade social deste, e sua importância para a dignidade, no campo da experiência.
Para existir uma razão prática no Direito do Trabalho também precisamos compreender como a dinâmica do trabalho funciona no século XXI. Isso porque, além de manual, ou maquinário, o trabalho tornou-se, antes de tudo, intelectual e não somente em virtude daqueles que pensam na produção industrial ou agrícola, como naqueles que se ocupam de pensar as nuances do conceito mesmo de trabalho que foi injustamente apropriado como fator da economia, e do seu crescimento, movendo o Direito com seus próprios moinhos que, a despeito do outrora dito pelo poeta, feitos de vento, ou, como para o tradicional liberalismo, pelas mãos invisíveis do mercado, agora são movimentados pela bússola absolutista de uma classe pobre de espírito e de riqueza, já que a verdadeira riqueza é o próprio trabalho quando vontade da consciência de liberdade para sua existência mesma. Hoje, mais se vive para o trabalho, do que se trabalha para viver – a liberdade, em sua dimensão externa, quando sobrepõe a posse sobre algo como razão suficiente de alacridade nesse mesmo algo, inunda de ignobilidade sua premissa mais fundamental e, verdadeiramente, a mais condizente com a liberdade em si: o puro ser.
Boas ou más as previsões, como tais, estão postas à reflexão. Transigindo entre um tempo passado e um futuro, estão as razões da presença do homem no complexo equilíbrio natural. O que importa é pensar no agora. Onde estamos é o que vale. De onde viemos ou para onde vamos, talvez não seja possível precisar, mas, de fato, para algum lugar já estamos indo, e se, não quisermos cair em nenhum abismo, devemos pensar. Com toda a razão, pensemos… Assim, quem sabe atingiremos a tão sonhada, e idealizada, sabedoria – privilégio dos poucos espíritos, desta humanidade, que se ocuparam com a absorção e construção do conhecimento para o outro, isto é, livre e disponível a quem quer que seja; ainda, o último trabalho que preserva absoluta e virtuosa dignidade.
“Bem aventurado o homem que encontra sabedoria, e o homem que adquire conhecimento, pois ela é mais proveitosa do que a prata e dá mais lucro do que o ouro.” Provérbios 3 – 13/14
Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Advogado especialista em Direito Público. Autor dos livros: Direito Existencial das Famílias da dogmática à principiologia Ed. Lumen Juris 2014; Metapoesia Ed. Protexto 2013; Educar Viver e Sonhar dimensões jurídicas sociais e psicopedagógicas da educação pós-moderna Ed. Publit 2009. Professor da Pós-graduação em Direito da Faculdade Pitágoras em Poços de Caldas
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