Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar, a partir da teoria do discurso de Habermas, se a realização de audiências públicas pela Anvisa teria o condão de atribuir legitimidade democrática aos seus atos normativos.
Palavras-chave: Anvisa; poder normativo; legitimidade democrática; audiências públicas
Sumário: Introdução; 1. Do poder normativo da Anvisa; 2. Da legitimidade democrática das normas editadas pela Anvisa; 3. As audiências públicas como instrumento de legitimação democrática das normas editadas pela Anvisa sob a perspectiva da teoria do discurso de Habermas. Conclusão.
Introdução
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa foi instituída pela Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, com a finalidade de promover a saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras[1].
Sua criação ocorreu no contexto das reformas promovidas na década de 1990, pelo Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado – PDRAE, que tinham por objetivo implantar um modelo gerencial de Administração Pública e, assim, reduzir os entraves burocráticos da atuação estatal em setores estratégicos da economia.
Para além de modernizar a gestão em matéria de saúde, a Anvisa surgiu com a finalidade de imprimir um caráter técnico e independente às ações de vigilância sanitária, de modo a assegurar sua desvinculação a questões político-eleitorais e proporcionar maior segurança jurídica aos cidadãos e empresas reguladas.
Dentre suas diversas atribuições, a que causa maior controvérsia – e que, por isso mesmo, é o tema do presente artigo – é a edição de normas pela agência reguladora. Há quem defenda que referidos atos violariam os princípios da legalidade e da separação de poderes e, ainda, seriam desprovidos de legitimidade democrática, porquanto não aprovados por representantes do povo.
Considerando-se que a edição de alguns atos normativos é precedida da realização de audiências públicas pela Anvisa, pretende-se investigar, a partir da teoria do discurso de Habermas, se referida prática teria o condão de atribuir legitimidade democrática aos seus atos normativos.
1. Do poder normativo da Anvisa
As agências reguladoras exercem funções de natureza variada. Em uma tentativa de sistematização, inspirada pela clássica divisão de funções no âmbito do Estado, é possível classificar suas atividades em executivas, decisórias e normativas[2]. Para o presente artigo interessa-nos estas últimas.
Conforme mencionado anteriormente, a atribuição de poder normativo a tais entidades decorre da necessidade de se regular alguns setores da economia de forma mais técnica e menos vinculada a questões político-eleitorais.
No caso da Anvisa, seu poder normativo é expressamente assegurado pelo art. 2º, III combinado com o art. 7º, III e IV da Lei nº 9.782/99, verbis:
“Art. 2º Compete à União no âmbito do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária: (…)
III – normatizar, controlar e fiscalizar produtos, substâncias e serviços de interesse para a saúde; (…)
Art. 7º Compete à Agência proceder à implementação e à execução do disposto nos incisos II a VII do art. 2º desta Lei, devendo: (…)
III – estabelecer normas, propor, acompanhar e executar as políticas, as diretrizes e as ações de vigilância sanitária;
IV – estabelecer normas e padrões sobre limites de contaminantes, resíduos tóxicos, desinfetantes, metais pesados e outros que envolvam risco à saúde;”
Em que pese a expressa previsão legal autorizando a edição de normas pela Anvisa, os atos por ela produzidos costumam ser questionados judicialmente[3], sob o argumento de ofensa aos princípios da legalidade e da separação de poderes, questões estas que, em última análise, estão relacionadas à suposta falta de legitimidade democrática das normas da agência.
Nos dizeres de Gustavo Binenbojm, "a despeito do esforço doutrinário em engendrar explicações teóricas para justificar (…) o amplíssimo poder normativo exercido pelas agências reguladoras, é inegável que sua existência cria uma tensão latente com os princípios da legalidade"[4], da separação de poderes e do Estado Democrático de Direito.
Com efeito, a não eletividade de seus dirigentes, a natureza técnica das funções desempenhadas e sua autonomia em relação aos Poderes tradicionais desperta, naturalmente, a discussão acerca da legitimidade política no desempenho de tais competências[5].
Nesse contexto, é possível sintetizar a origem do debate acerca da legitimidade democrática da atuação normativa da Anvisa através da seguinte questão: como justificar a obediência a uma entidade administrativa cujos dirigentes não são eleitos e cujas decisões não estão sujeitas à revisão por parte dos políticos eleitos no processo democrático?[6]
2. Da legitimidade democrática das normas editadas pela Anvisa
A República Federativa do Brasil constitui-se num Estado Democrático de Direito e, como tal, exige a presença de mecanismos de participação na edição de atos normativos e tomada de decisões pelo Poder Público. Certamente, não é possível conceber o fenômeno democrático sem reconhecer a necessidade de criação e de estruturação de instrumentos que, efetivamente, ofereçam à sociedade esses meios para participar dos processos de criação e aplicação das normas[7].
Nesse contexto, costuma-se questionar a legitimidade democrática das normas editadas pela Anvisa, já que editadas por um conselho diretor escolhido pelo Chefe do Poder Executivo, isto é, sem representatividade popular.
Em que pese o fato de as normas e decisões da Anvisa serem proferidas por dirigentes não eleitos, pretende-se demonstrar que o suposto déficit democrático de referidos atos é apenas aparente.
De início, vale lembrar, com Luís Roberto Barroso[8], que
"o Legislativo conserva o poder de criar e extinguir agências, bem como instituir as competências que desempenharão; o Executivo, por sua vez, exerce o poder de nomeação dos dirigentes, bem como o de traçar as políticas públicas para o setor específico; o Judiciário exerce controle sobre a razoabilidade e sobre a observância do devido processo legal, relativamente às decisões das agências".
Diante de tais ponderações, fica claro que "a criação, disciplina e a subsistência de agências reguladoras são legitimadas pela conjunção das prerrogativas legislativas dos titulares dos dois poderes legitimados democrático-eleitoralmente"[9]. Logo, a legitimidade das agências reguladoras, em geral, e da Anvisa, em particular, adviria do equilíbrio entre os influxos sobre elas exercidos pelos três poderes tradicionais do Estado[10].
Mas não é só. A legitimidade dos atos emanados dessas entidades também decorre da viabilização da participação dos interessados nos processos normativos e decisórios. No Brasil, a participação popular nas atividades das agências reguladoras encontra previsão, ainda que de forma incipiente, nos dispositivos legais aplicáveis a determinadas agências. A propósito, a lei nº 9.782/99, que instituiu a Anvisa, previu, em seus artigos 32 e 33, a possibilidade de realização de audiências públicas no decorrer de processos decisórios e de edição de normas, observe-se:
“Art. 32. O processo decisório de registros de novos produtos, bens e serviços, bem como seus procedimentos e de edição de normas poderão ser precedidos de audiência pública, a critério da Diretoria Colegiada, conforme as características e a relevância dos mesmos, sendo obrigatória, no caso de elaboração de anteprojeto de lei a ser proposto pela Agência.
Art. 33. A audiência pública será realizada com os objetivos de:
I – recolher subsídios e informações para o processo decisório da Agência;
II – propiciar aos agentes e consumidores a possibilidade de encaminhamento de seus pleitos, opiniões e sugestões;
III – identificar, da forma mais ampla possível, todos os aspectos relevantes à matéria objeto de audiência pública;
IV – dar publicidade à ação da Agência.”
De fato, se a lei comete às agências reguladoras o poder de disciplinar uma série de assuntos, é legítimo que, no exercício desse poder discricionário, tais entidades busquem tanto quanto possível satisfazerem aos interesses públicos envolvidos.
Como nota Vasco Manuel Pereira da Silva[11],
"a participação dos privados no procedimento, ao permitir a ponderação pelas autoridades administrativas dos interesses de que são portadores, não só se traduz numa melhoria de qualidade das decisões administrativas, possibilitando à Administração uma mais correta configuração dos problemas das diferentes perspectivas possíveis da sua resolução, como torna as decisões administrativas mais facilmente aceites pelos seus destinatários".
A propósito, o Princípio da Participação foi expressamente positivado em nosso Direito com a Emenda Constitucional nº 19/98, que acresceu o § 3º ao art. 37 da Constituição.[12]
Nos dizeres de Binenbojm[13], "o fomento à participação dos cidadãos em procedimentos administrativos e – notadamente, nos processos regulatórios – tem sido uma das tentativas de recuperação do lastro de legitimidade da atuação da Administração Pública". Isso porque, a possibilidade de participação ativa dos movimentos sociais no processo de elaboração das normas é imprescindível para o incremento da credibilidade e da legitimidade da própria democracia representativa[14].
3. As audiências públicas como instrumento de legitimação democrática das normas editadas pela Anvisa, sob a perspectiva da teoria do discurso de Habermas.
Conforme mencionado no tópico anterior, a Lei nº 9.782/99, que criou a Anvisa, estabeleceu que o processo de regulamentação de determinados assuntos pode ser precedido de audiência pública, conforme as características e a relevância do tema.
A audiência pública propicia o debate público e presencial com representantes da sociedade civil e com os atores afetados pela atuação regulatória. Na prática, trata-se de uma modalidade de consulta pública, mas com a particularidade de se materializar por meio de debates orais em sessão previamente designada para esse fim.
Na esteira do pensamento de Habermas, conclui-se que a realização de audiências públicas tem o condão de atribuir validade às normas editadas pela agência, pois permite que todos os possíveis atingidos possam dar seu assentimento na qualidade de participantes de discursos racionais.
Segundo sua visão, o Estado Democrático de Direito possui uma justificação procedimental que torna compreensível a legitimidade do direito a partir de processos e pressupostos comunicativos – que devem ser institucionalizados juridicamente – permitindo que os processos de criação e de aplicação do direito levem a resultados racionais[15]. Ao invés da produção monológica de normas jurídicas, pautada na moral convencional, o filósofo alemão propõe um procedimento dialógico/discursivo.
Para Habermas, o ordenamento jurídico deve institucionalizar um sistema de direitos que assegure participação no processo legislativo em condições de igualdade. Igual participação significa que o processo democrático deve proporcionar o debate público de todos temas e aceitar contribuições, informações e razões[16].
No mesmo sentido advoga Paulo Bonavides[17], para quem já está se formando uma nova teoria constitucional, que nos aparta dos modelos representativos clássicos e acaba com a intermediação representativa, símbolo de tutela, sujeição e menoridade democrática do cidadão. Segundo essa nova teoria constitucional da democracia participativa, o cidadão-povo é a medula da legitimidade de todo o sistema.
Diante dessas considerações, constata-se que a fonte de legitimidade do Direito não está apenas no processo democrático de eleição e legiferação, mas sim na efetiva participação dos interessados no processo de formação da vontade da norma. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a realização de audiências públicas pelas agências reguladoras tem o condão de atribuir legitimidade democrática aos seus autos normativos, na medida em que permite a efetiva participação dos interessados no processo de elaboração das normas.
Conclusão
O direito só é válido quando construído em uma democracia. E. para haver democracia, é necessário que todos os cidadãos participem como co-autores do Direito[18]. Como bem ponderado por Binenbojm[19], a democracia não é um conceito que se confunda com a regra da maioria; democracia é, sobretudo, um projeto de exercício de autogoverno coletivo em que as deliberações sociais se realizam ao longo do tempo.
Diante dessas premissas, há que se concluir que o simples fato de uma lei ter sido editada pelo parlamento não lhe confere legitimidade democrática, no sentido preconizado por Habermas. Por outro lado, a norma editada por uma agência reguladora, na medida em que possibilita a participação direta dos cidadãos interessados, pode ter muito mais aceitação e legitimidade do que uma lei aprovada apenas formalmente pelo parlamento.
Procuradora Federal. Pós-graduação em Direito Administrativo pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Graduação em Direito pela Universidade de Brasília – UnB.
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