As conexões entre poder e processo: uma análise do pensamento de Calmon de Passos

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Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar as conexões entre poder e processo à luz do pensamento crítico do jurista baiano J.J Calmon de Passos.

Quando se pensa em uma representação icônica do Direito, imediatamente vem à mente a imagem da divindade grega Thêmis, com seus olhos vendados e balança em  punho, simbolizando a imparcialidade e o equilíbrio da justiça. Tal imagem transmite a ideia de que o juiz apreciará os processos de forma equilibrada e isenta, sem se deixar influenciar por aspectos externos.

De forma semelhante, quando se estuda o processo civil, percebe-se certa tendência dos autores em analisá-lo sob uma perspectiva hermética. Nos dizeres de BARBOSA MOREIRA[1], "o  processo  foi  durante  largo  tempo  (e  em  boa  medida  continua  a  ser)  estudado  em  perspectiva  predominantemente,  senão  exclusivamente,  técnico-jurídica".

Somos levados a pensar, desde o início da faculdade, que as questões submetidas ao Direito serão examinadas com isenção, dentro de uma ótica puramente teórica e conceitual, que assegurará a correta aplicação das leis ao caso concreto.         

Como bem pontuado por Henrique Araújo Costa e Alexandre Araújo Costa, "esse enfoque, trazido ao direito brasileiro pela notável influência de Liebman, tem como resultado uma perspectiva interna e formalista, que tende a conferir primazia à análise conceitual e à coerência teórica"[2]. Com isso, asseveram os autores, "os processualistas perderam de vista as conexões externas dos problemas que enfrentam, olvidando-se que a função primordial do processo não consiste em determinar os parâmetros pretensamente racionais que deveria guiar a realidade social, mas sim trazer segurança para a convivência social"[3].

Calmon de Passos, com sua visão crítica, nos leva a perceber que o Direito Processual não deve ser examinado apenas sob uma perspectiva interna, mas também levando em consideração suas conexões externas. Noutros termos, o Direito e, mais especificamente, a teoria processual devem estar abertos à estrutura social circundante, de modo que se possa compreender reflexivamente as influências ideológicas e políticas existentes na prática judicial[4].

Isso porque não existem formas processuais a-históricas, categorias processuais a priori nem conceitos corretos em si. Nas precisas palavras de Araújo Costa, "só existe o processo produzido historicamente, e as categorias teóricas são construídas indutivamente sobre essa prática, e não dedutivamente a partir de uma atividade idealizada"[5].

Como bem anotado pelo processualista baiano, embora os homens dependam uns dos outros, sua convivência nem sempre se revela harmoniosa, devendo haver um sistema de organização que permita a coexistência em sociedade[6]. É que, diante da escassez de bens para satisfação de todas as necessidades e desejos dos homens, "torna-se imperioso definir quem ficará com o quê, na planilha de quanto socialmente  produzido  e  está  disponível"[7].

Se, por um lado, pondera o autor, essa organização permite o melhor atendimento das necessidades individuais, ela traz consigo a necessária hierarquização dos homens, institucionalizando-se a desigualdade. Surge, então, a necessidade de se estabelecer um centro de poder, que será responsável pela coordenação e submissão de vontades dos membros da sociedade.

Esse centro de poder interage com o Direito e pode ser exercido em três facetas: política, econômica e ideológica[8]. No primeiro caso, é ele que organiza a coerção e que assegura, em última instância, a efetividade da ordem social instituída. O segundo, por sua vez, é responsável por institucionalizar determinado modelo de divisão do trabalho social e de apropriação do produto desse trabalho. Por fim, o poder ideológico promove o consenso, procurando legitimar-se aos olhos dos dominados. A integração dos três é necessária para a existência da ordem social, operando o  Direito  como  instrumento  que  lhe empresta  segurança  em  face  dos possíveis  riscos  de  desconfirmação  individual  ou  social  do  modelo institucionalizado.

O que o autor pretende dizer com isso é que "a ordenação da convivência  humana  não  tem  sua  matriz  no  Direito, sim  na  dinâmica  dos  confrontos políticos  em  sua  interação  com  os  fatos  econômicos"[9]. Dito de outro modo, o Direito não é um agente conformador ou transformador da convivência social, mas sim um instrumento assegurador dessa convivência.

Sob esse enfoque, o Direito só alcança o seu mister em razão da impositividade que lhe é inerente. Impositividade esta que decorre diretamente do poder político institucionalizado, que, como vimos, é um produto direto da convivência social.

Na precisa síntese do autor[10],

“Pensar a sociedade sem considerar a organização, um despropósito. Refletir sobre a  organização  abstraindo  o  poder,  um  despautério.  Pensar  o  poder dissociado de sua principal consequência – a desigualdade na divisão do trabalho social e na apropriação dos bens produzidos, alienação injustificável.  Consequência  necessária  – não  há  um  Direito  ideal,  modelo, arquétipo,  em  cuja  realização  estamos  empenhados.  Há  um  sistema jurídico dentro do qual atuamos e em sintonia com o qual atuamos”.

Nesse contexto, não se pode pretender analisar o Direito fora do contexto ideológico e político que o circunda. Aliás, conforme bem ponderado por Calmon de Passos, "todo Direito é socialmente construído, historicamente formulado, atende ao contingente e conjuntural do o tempo e do espaço em que o poder político atua e à  correlação  de  forças  efetivamente  contrapostas na sociedade em que ele, poder, se institucionalizou"[11].

Dessa forma, o sistema processual deve ser encarado sob uma duplicidade de perspectivas, isto é, a partir de ângulos externos, sem prejuízo da introspecção do sistema[12].

Diante dessas considerações, pode-se concluir que, na visão de Calmon de Passos, a deusa Thêmis dos dias atuais deve retirar a venda dos olhos, para poder observar com clareza as circunstâncias políticas e sociais que envolvem o processo e o Direito.

 

Referências
COSTA, Henrique Araújo. COSTA, Alexandre Araújo. Os testamentos ignorados de Ovídio Batista e Calmon de Passos. In RBDPro 192.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual – 4ª série. São Paulo: Saraiva, 1989.
PASSOS, J.J. Calmon de. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.  45.
Notas:
[1] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual – 4ª série. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 11.
[2] COSTA, Henrique Araújo. COSTA, Alexandre Araújo. Os testamentos ignorados de Ovídio Batista e Calmon de Passos. In RBDPro 192, pp. 1-2.
[3]  COSTA, Henrique Araújo. COSTA, Alexandre Araújo. Os testamentos ignorados de Ovídio Batista e Calmon de Passos. In RBDPro 192, pp. 1-2.
[4] COSTA, Henrique Araújo. COSTA, Alexandre Araújo. Os testamentos ignorados de Ovídio Batista e Calmon de Passos. In RBDPro 192, p. 2.
[5] COSTA, Henrique Araújo. COSTA, Alexandre Araújo. Os testamentos ignorados de Ovídio Batista e Calmon de Passos. In RBDPro 192, p. 2.
[6] PASSOS, J.J. Calmon de. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.  45.
[7] PASSOS, J.J. Calmon de. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 50.
[8]  PASSOS, J.J. Calmon de. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 46.
[9] PASSOS, J.J. Calmon de. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 51.
[10] PASSOS, J.J. Calmon de. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 51.
[11] PASSOS, J.J. Calmon de. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 52.
[12] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p.379.

Informações Sobre o Autor

Beatriz Monzillo de Almeida

Procuradora Federal. Pós-graduação em Direito Administrativo pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Graduação em Direito pela Universidade de Brasília – UnB.


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Equipe Âmbito Jurídico

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