Resumo: A Emenda Constitucional nº 66/2010 consiste num importante marco na disciplina do divórcio no Brasil. A alteração da redação do art. 226, § 6º da Constituição Federal de 1988 ensejou várias interpretações e algumas críticas. Grande parte dos doutrinadores e juristas sustenta a posição de que não mais persiste no ordenamento jurídico pátrio o instituto da separação judicial, por ser essa a interpretação que mais assegura os efeitos da norma. Todavia, a minoria mais conservadora não reconhece a eficácia imediata da reforma, vislumbrando na simplificação do divórcio a fragilização da família e banalização do casamento. O assunto é de grande relevância, e vem sendo bastante discutido no âmbito jurídico. Nesse sentido, o presente artigo apresenta os principais aspectos processuais da alteração constitucional na sistemática do divórcio, analisando as questões intertemporais e os reflexos da mudança nas ações judiciais em andamento.
Palavras-chave: divórcio; emenda constitucional; aspectos processuais.
Sumário: 1. Introdução. 2. Evolução histórica do divórcio no Brasil. 3. A Emenda Constitucional nº 66, de 13 de julho de 2010 e a nova sistemática do divórcio no Brasil. 4. Aspectos processuais da Emenda Constitucional nº 66/2010. 5. Questões intertemporais. 6. Conclusão. 7. Referências bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO
A história do divórcio no Brasil foi marcada não só pela forte influência da Igreja Católica, que queria manter a indissolubilidade do matrimônio, de acordo com os preceitos do Direito Canônico, mas também sofreu interferência do Estado que buscava a preservação da família e, para isso, impunha limites ao desfazimento do casamento, mesmo quando já não existia afeto entre os cônjuges.
Após um grande movimento da sociedade para acabar com a indissolubilidade do casamento, a Lei do Divórcio (Lei 6.515/77) instituiu o sistema dualista no ordenamento jurídico brasileiro, passando a coexistir a separação judicial (antigo “desquite”) e o divórcio. No entanto, para dissolver o vínculo matrimonial era necessário que a pessoa, primeiramente, se separasse judicialmente para só então, após transcorrido o lapso temporal exigido por lei, pudesse obter o divórcio.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, que deu grande importância à dignidade da pessoa humana, institucionalizou-se o divórcio direto, desde que transcorridos dois anos da separação de fato do casal, contudo subsistiu o instituto da separação judicial, evidenciando uma sociedade ainda impregnada pelo conservadorismo histórico-religioso com reflexos na vida dos cônjuges.
A grande conquista foi implementada pela Emenda Constitucional nº 66, de 13 de julho de 2010, que alterou o art. 226, § 6º da Constituição Federal de 1988, consagrando o divórcio como única modalidade de dissolução do casamento, eliminando a exigência de prazos ou identificação de culpados para sua concessão, abolindo, em conseqüência, o instituto da separação judicial.
As mudanças trazidas pela Emenda Constitucional 66/2010 não foram acolhidas com bons olhos por uma pequena minoria conservadora por entender que a facilitação do divórcio leva à fragilização da família e à banalização do casamento, insistindo em afirmar que a alteração não é autoaplicável, necessitando ser regulamentada por lei infraconstitucional e, portanto, a separação judicial persiste no ordenamento jurídico pátrio.
No entanto, grande parte da doutrina e jurisprudência posiciona-se quanto à eficácia plena e aplicabilidade imediata da alteração constitucional, por ser essa a interpretação que mais atende à nova realidade social, pois a manutenção da separação judicial como requisito prévio e obrigatório para obtenção do divórcio fere o princípio da dignidade da pessoa humana.
Apesar do singelo texto da Emenda do Divórcio, a modificação é de grande alcance, pois além de eliminar prazos para a concessão divórcio, afasta a possibilidade de discussão da culpa pelo desfazimento da união do âmbito do Direito de Família, refletindo diretamente no fundamento do pedido de pensão alimentícia pelo cônjuge, que só se justifica, agora, na presença do binômio necessidade/possibilidade econômica.
Outro aspecto relevante da mudança é o fim da injustificável intervenção estatal na vida privada e intimidade dos cônjuges, ao assegurar o princípio da liberdade e a autonomia da vontade dos cônjuges em desfazer o vínculo matrimonial quando ausente os laços de afetividade, permitindo a todos a busca da felicidade.
A par dessa nova realidade imposta pela Emenda Constitucional nº 66/2010, necessário se faz o esclarecimento das dúvidas de ordem prática quanto à situação jurídica daqueles que se encontravam separados judicialmente/administrativamente quando da promulgação da Emenda, bem como em relação aos reflexos da alteração nas ações em andamento.
2 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIVÓRCIO NO BRASIL
Durante o Brasil Império, quando o catolicismo era religião oficial, o casamento era regulado exclusivamente pela Igreja Católica, não sofrendo nenhuma interferência do Estado, utilizando-se como fonte de direito os princípios do Direito Canônico. Desta forma, tinha-se o casamento como indissolúvel e, portanto, não existia a possibilidade de divórcio, admitindo-se apenas a separação pessoal, o divórcio quod thorum et cohabitationem do Direito Canônico.
O Decreto de 03.11.1827 impunha a obrigatoriedade da aplicação das disposições do Concílio de Trento (1563) e da Constituição do Acerbispado da Bahia às questões matrimoniais, ou seja, o poder civil não intervinha de qualquer forma na origem, formação e constituição do casamento, apenas lhe marcando os efeitos jurídicos na sociedade.
Com o Decreto 1.144, de 11.09.1861, regulamentado em 17.04.1863 através do Regulamento 3.069, que regulou o casamento dos não católicos, tivemos um grande avanço no sentido da desvinculação entre o Estado e a Igreja.
Apesar das várias tentativas em manter a secularização do matrimônio, com a Proclamação da República ocorreu a laicização do Estado, através do Decreto 119-A, de 17 de janeiro de 1890, o que implicou na sua definitiva ruptura com a Igreja, e o instituto do casamento perdeu o seu caráter confessional, passando a ser reconhecido perante o Estado apenas o casamento civil, instituído pelo Decreto 181, de 24.01.1890, que admitia em seu artigo 88 [1] o “divórcio de cama e mesa”, tal qual como previsto no direito canônico (divortium quoad thorum et mensam), que consistia na separação de corpos do casal, sem a dissolução do vínculo conjugal.
Segundo ressalta Yussef Said Cahali, na oportunidade o Ministro Campos Sales havia apresentado a Deodoro proposta referente à adoção do divórcio no Brasil, mas diante da resistência a nova lei acabou por limitar-se à instituição do casamento civil. [2]
O advento da Constituição Federal de 1890 só veio confirmar a separação entre o Estado e a Igreja, vez que em seu artigo 72, § 4º [3] reconhecia a validade somente do casamento civil. No entanto, o projeto de divórcio vincular apresentado no Parlamento por diversas vezes não logrou êxito, sendo combatido, inclusive, por Ruy Barbosa.
Na discussão do Código Civil de 1916, foi amplamente debatida a preferência entre o desquite e o divórcio, vindo a prevalecer a orientação quanto à manutenção da indissolubilidade do vínculo matrimonial, revelando a influência de uma sociedade conservadora e regida pelos princípios cristãos. E tal como no direito anterior, dispunha acerca da possibilidade de por fim à sociedade conjugal por meio do desquite, amigável ou judicial, conforme as causas enumeradas pelo art. 315 [4].
Através da Carta Constitucional de 1934, a indissolubilidade do vínculo matrimonial foi erigida à condição de preceito constitucional em seu art. 144 [5], sendo esta a primeira vez que a extinção da sociedade conjugal foi incluída no texto da Constituição, remetendo, todavia, para a lei ordinária a regulamentação dos casos de desquite.
A mesma orientação foi repetida pelas Constituições de 1937, 1946 e 1967, até que através da Emenda Constitucional nº 09, de 28.06.1977, que deu nova redação ao § 1º do artigo 175 [6] da Constituição Federal de 1967, foi introduzido no Brasil o divórcio vincular.
A reforma vitoriosa só foi obtida após a redução do quorum para aprovação de emenda constitucional sobre matéria de divórcio, previsto pelo art. 48 da Carta Constitucional de 1967, que antes era de dois terços de senadores e de deputados e, com a Emenda Constitucional nº 8, de 14.04.1977, passou a exigir-se a maioria absoluta dos votos do total de membros do Congresso Nacional.
Para regulamentar o novo instituto foi editada a Lei nº 6.515, de 26.12.1977 que, dentre as inovações, trouxe a substituição da palavra “desquite” por “separação judicial”, mantendo, contudo, as mesmas características. Estabeleceu a prévia separação judicial como requisito para o divórcio (divórcio indireto), permitido uma única vez, desde que decorrido o lapso temporal de três anos. O divórcio direto era admitido em caráter excepcional, nos termos do art. 40, ou seja, desde que o casal se encontrasse separado de fato há mais de cinco anos no dia 28 de junho de 1977.
Segundo leciona Maria Berenice Dias,
“Com o advento do divórcio, surgiram duas modalidades de ‘descasamento’. Primeiro, as pessoas precisavam se separar. Só depois é que podiam converter a separação em divórcio. A dissolução do vínculo conjugal era autorizada uma única vez (LD 38). O divórcio direto era possível exclusivamente em caráter emergencial, tanto que previsto nas disposições finais e transitórias (LD 40). Nitidamente, a intenção era admiti-lo somente para quem já se encontrava separado de fato, quando da emenda da Constituição. Era necessário o atendimento cumulativo de três pressupostos: (a) estarem as partes separadas de fato há cinco anos; (b) ter esse prazo sido implementado antes da alteração constitucional (28.06.1977); e (c) comprovar a causa da separação.” [….]. [7]
A Constituição Federal de 1988 foi responsável pela institucionalização do divórcio direto no direito brasileiro, através do art. 226, § 6º [8], mantendo a indissolubilidade do vínculo como matéria constitucional.
A Lei nº 7.841, de 17.10.1989 adaptou a Lei nº 6.515/77 quanto ao lapso temporal exigido para o divórcio-conversão e para o divórcio direto, bem como revogou o art. 38 da Lei do Divórcio, trazendo a possibilidade de divórcios sucessivos.
Por meio da Lei 11.441, de 04.02.2010, foi instituída a possibilidade da dissolução amigável do casamento sem a intervenção do Poder Judiciário, o que não mais se justificava diante de um contexto social em que as relações se tornaram mais complexas, além da numerosa quantidade de processos em trâmite na justiça. A desjudicialização significou um importante passo no Direito de Família, vez que a separação judicial e o divórcio consensuais passaram a ser possíveis mediante a lavratura de escritura pública, sujeitando-se aos mesmos requisitos legais para as ações judiciais, contudo com única exigência de não possuírem os cônjuges filhos menores ou incapazes. Tal medida importou na limitação do intervencionismo do Estado na vida privada dos cônjuges.
Revolucionando a disciplina do divórcio no Brasil, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 66, de 13 de julho de 2010, que trouxe alteração na redação do § 6º do art. 226 da Carta Magna de 1988, passando a dispor que o “casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”, consagrando o divórcio como única forma possível de dissolução do casamento no sistema jurídico brasileiro, sem a exigência de prazos e causas para sua concessão, expurgando do ordenamento a separação judicial.
Trata-se, como bem escreveram Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, de completa mudança de paradigma sobre o tema, onde o Estado afasta-se da esfera de intimidade do casal, reconhecendo a autonomia da vontade dos cônjuges para extinguir o vínculo conjugal, sem a necessidade de requisitos temporais ou de motivação vinculante. [9]
3 A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 66, DE 13 DE JULHO DE 2010 E A NOVA SISTEMÁTICA DO DIVÓRCIO NO BRASIL
Por força da Emenda Constitucional nº 66/2010, o art. 226, § 6º da Constituição Federal de 1988 passou a vigorar com a seguinte redação: “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”.
A nova regra constitucional representou um significativo avanço em matéria de Direito de Família na medida em que trouxe duas importantes inovações. A primeira, de consenso geral, foi a extinção da exigência de prazos e causas para a dissolução do vínculo matrimonial. A segunda, não aceita de forma uníssona, foi o fim da separação judicial.
Para a grande maioria dos doutrinadores em Direito de Família, a Emenda Constitucional nº 66/2010 acabou com a dicotomia da existência da dissolução da sociedade conjugal (separação judicial) e do vínculo matrimonial (divórcio), abolindo do ordenamento jurídico de forma definitiva o instituto da separação judicial.
Os divorcistas, que sempre criticaram essa dualidade, fundamentam tal assertiva nos próprios motivos que ensejaram a apresentação do Projeto de Emenda Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. Ou seja, a mudança tinha como objetivo a imposição do divórcio como única forma de dissolução do casamento, por ser esse o meio que mais atende à nova realidade social, além de evitar a submissão dos cônjuges a dois processos judiciais, conforme justificativa apresentada pelo Deputado Federal Sérgio Barradas Carneiro:
“[….] Não mais se justifica a sobrevivência da separação judicial, em que se converteu o antigo desquite. Criou-se, desde 1977, com o advento da legislação do divórcio, uma duplicidade artificial entre a dissolução da sociedade conjugal e dissolução do casamento, como solução de compromisso entre divorcistas e antidivorcistas, o que não mais se sustenta.
Impõe-se a unificação no divórcio de todas as hipóteses de separação dos cônjuges, sejam litigiosos ou consensuais. A submissão a dois processos judiciais (separação e divórcio por conversão) resulta em acréscimos de despesas para o casal, além de prolongar sofrimentos evitáveis.
Por outro lado, essa providência salutar, de acordo com valores da sociedade brasileira atual, evitará que a intimidade e a vida privada dos cônjuges e de suas famílias sejam revelados e trazidos ao espaço público dos tribunais […]”. [10]
Nessa linha de entendimento Zeno Veloso argumenta que, se a separação de direito consistia num meio de viabilizar o divórcio, e se o divórcio, agora, pode ser obtido pura e simplesmente, a todo tempo e sem qualquer restrição, não existe qualquer utilidade em manter-se a figura da separação judicial. [11]
Na realidade, não existe razão lógica e prática para a manutenção da separação judicial no ordenamento jurídico se não é possível mais convertê-la em divórcio, sendo patente a sua inocuidade, motivo pelo qual sustenta Paulo Lôbo haver ocorrido a extinção da obsoleta separação jurídica, bem como das normas infraconstitucionais que a regulavam:
“[….] a Constituição deixou de tutelar a separação judicial. A conseqüência da extinção da separação judicial é que concomitantemente desapareceu a dissolução da sociedade conjugal, que era a única possível, sem dissolução do vínculo conjugal, até 1977. Com o advento do divórcio, a partir dessa data e até 2009, a dissolução da sociedade conjugal passou a conviver com a dissolução do vínculo conjugal, porque ambas recebiam tutela constitucional explícita. Portanto, não sobrevive qualquer norma infraconstitucional que trate da dissolução da sociedade conjugal isoladamente, por absoluta incompatibilidade com a Constituição, de acordo com a redação atribuída pela PEC do Divórcio. A nova redação do § 6º do art. 226 da Constituição apenas admite a dissolução do vínculo conjugal.” [12]
A norma constitucional alterada pela Emenda Constitucional nº 66/2010, teve a evidente intenção de facilitar o divórcio vez que aboliu os requisitos para a dissolução do vínculo conjugal e, portanto, tem eficácia imediata e plena, não mais subsistindo a normatização infraconstitucional que regula a separação judicial diante da sua não recepção.
Em julgamento da Apelação Cível nº 0616652-46.299.8.13.0210, o Desembargador Vieira de Brito, da 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, afirmou que a Emenda Constitucional nº 66/2010 é norma de eficácia plena e de aplicabilidade direta, imediata e integral, devendo regulamentar, inclusive, os processos em curso. [13]
Trilhando a mesma linha de entendimento, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em julgamento de Recurso de Apelação Cível, asseverou que a alteração introduzida pela Emenda trata-se de norma constitucional de eficácia plena e aplicabilidade imediata, aplicando-se às ações em curso, e com ela foi abolido o instituto da separação judicial. [14]
Por outro lado, em direção diametralmente oposta, há aqueles que sustentam que a alteração do art. 226, § 6º da Constituição Federal não eliminou o instituto da separação judicial, bem como os requisitos para a obtenção do divórcio, haja vista que, não obstante a supressão do termo do texto constitucional, foi mantido o verbo “pode”, persistindo a possibilidade dos cônjuges pleitearem a separação, estando plenamente em vigor os dispositivos do Código Civil Brasileiro acerca da matéria.
Para Elpidio Donizetti, o fato de a Carta Constitucional não mais fazer menção à separação de direito não implica na invalidade das disposições constantes da legislação ordinária, mesmo que tal instituto tenha deixado de ser obrigatório como procedimento prévio ao divórcio. Argumenta, ainda, que em uma sociedade pluralista como a brasileira, não existem razões para suprimir do ordenamento o instituto da separação jurídica, que pode ser utilizado como instrumento facultativo quando o desejo seja apenas a dissolução da sociedade conjugal, sem a extinção do casamento. [15]
A resistência dessa minoria mais conservadora reside, também, no fato de que a facilitação do divórcio importaria na fragilização da família e banalização do casamento, sendo a manutenção da separação jurídica uma forma de possibilitar aos cônjuges um prazo de reflexão para decidirem se realmente querem dissolver a união e, em caso de arrependimento, a possibilidade de restabelecerem a sociedade conjugal.
Todavia, esses argumentos não justificam a manutenção da anacrônica separação judicial no mundo jurídico, notadamente porque estatisticamente poucas são as notícias de reconciliação judicial de cônjuges separados.
Quanto ao prazo para reflexão do casal, a solução mais arrazoada seria a opção pela separação de corpos, regularizando a saída de um dos cônjuges do lar, ou até mesmo pela simples separação de fato que, conforme reconhecido pela jurisprudência, possui os mesmos efeitos da separação de corpos quanto ao fim dos deveres do casamento, bem como põe termo ao regime de bens.
Além do mais, os cônjuges já divorciados que desejarem reatar a união poderão fazê-lo através de um segundo casamento.
Rolf Madaleno assevera que, com o advento da Carta Política de 1988, o Direito de Família passou por profundas mudanças, estando mais preocupado em priorizar a dignidade da pessoa humana, e explica, citando Cristiano Chaves de Farias, que atualmente, à luz do texto constitucional, a entidade familiar deve ser entendida como um grupo social fundado, essencialmente, em laços de afetividade. [16]
Dessa forma, diante da nova realidade constitucional, não mais subsistem razões para a imposição de um sistema dualístico de procedimentos, pois a ausência de afeto entre os cônjuges faz desaparecer qualquer sentido lógico para insistir na preservação do casamento.
Discorrendo sobre o assunto, Rodrigo Pereira da Cunha salienta que o sistema dualista não mais se justifica em um Estado laico, indo totalmente de encontro à tendência da evolução dos ordenamentos jurídicos ocidentais em que há cada vez menos a interferência estatal na vida privada e na intimidade dos cidadãos. [17]
Dessa forma, atualmente é o divórcio o único meio possível para por fim ao casamento, além de ser, do ponto de vista prático, um procedimento bem mais vantajoso, pois conforme expõem Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho:
“Sob o prisma jurídico, com o divórcio, não apenas a sociedade conjugal é desfeita, mas também o próprio vínculo matrimonial, permitindo-se novo casamento; sob o viés psicológico, evita-se a duplicidade de processos – e o strepitus fori – porquanto pode o casal partir direta e imediatamente para o divórcio; e, finalmente, até sob a ótica econômica, o fim da separação é salutar, já que, com isso, evitam-se gastos judiciais desnecessários por conta da duplicidade de procedimentos.” [18]
4 ASPECTOS PROCESSUAIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 66/2010
Como delineado anteriormente, a alteração constitucional promovida pela Emenda Constitucional nº 66/2010 instituiu o divórcio como único modo de dissolver o casamento, seja ele de forma consensual ou litigiosa, abolindo do mundo jurídico o instituto da separação judicial.
Consequência principal dessa mudança é o afastamento da possibilidade de discussão da culpa, vez que no divórcio não cabe questionamentos acerca das causas que motivaram o fim da união. Aliás, esse entendimento já vinha sendo prestigiado pela jurisprudência pátria, que reconhecia ser desnecessária a identificação do culpado pela separação, em razão da dificuldade em atribuir a apenas um dos cônjuges a responsabilidade pelo fim do vínculo afetivo.
No entanto, a exclusão da análise da culpa do âmbito do Direito de Família, não impede que o cônjuge que tenha sofrido danos morais, materiais ou estéticos possa demandar o ex-consorte para debater a culpa em ação indenizatória. A matéria, todavia, deverá ser discutida através de ação autônoma perante o juízo Cível, onde será apurado o nexo de causalidade.
Outra questão relevante é a impossibilidade de reconciliação. Ou seja, se antes, com a separação jurídica, era possível o restabelecimento do casamento, vez que tal instituto não tinha o condão de dissolver o vínculo matrimonial, agora, com o divórcio, havendo reconciliação, o casal só poderá restabelecer a união através de novo casamento.
No que diz respeito à partilha, após a Emenda do Divórcio, permanece a regra já consagrada pelo Código Civil de 2002, que estabelece que o divórcio pode ser levado a efeito sem a prévia partilha dos bens, o que deve ser feito através de ação própria.
Merece destaque, ainda, o impacto da modificação do texto constitucional na seara do direito aos alimentos, vez que a pretensão alimentar do cônjuge não poderá se fundar na conduta desonrosa do outro consorte ou em qualquer ato culposo que implique violação dos deveres conjugais, conforme preceituam os arts. 1.702 e 1.704 do Código Civil Brasileiro. Pois, se não mais subsiste, diante da nova norma constitucional, a aferição do elemento subjetivo da culpa, o pedido de pensão alimentícia deve ser pautado simplesmente no binômio necessidade (credor) e possibilidade econômica (devedor).
Ressalte-se, a título de arremate, que as questões relacionadas à guarda dos filhos, exercício do direito de visitas e verba alimentar deverão ser discutidas na ação de divórcio, pois segundo ensinamento de Maria Berenice Dias:
“Ainda que nada diga a lei, indispensável que na ação de divórcio – seja consensual, seja litigiosa – reste decidida a guarda dos filhos menores ou incapazes, o valor dos alimentos e o regime de visitas, por aplicação analógica ao que é determinado quanto à separação (CPC 1.121). Mesmo não mais existindo a separação, o procedimento persiste para o divórcio.” [19]
5 QUESTÕES INTERTEMPORAIS
Com a promulgação da Emenda Constitucional nº 66/2010, eliminou-se todo e qualquer prazo para a concessão do divórcio, fazendo surgir uma nova concepção sobre o sistema de dissolução do casamento, com a supressão do ordenamento jurídico do instituto da separação judicial e dos dispositivos que a regiam, por sua total incompatibilidade com a nova ordem constitucional.
Diante dessa realidade, vieram à tona muitas dúvidas práticas a respeito da situação jurídica daqueles que já se encontravam separados judicialmente (ou administrativamente) ao tempo da entrada em vigor da Emenda, bem como em relação às ações de separação judicial em andamento.
No que diz respeito aos separados judicialmente/administrativamente, não houve transformação automática para o estado civil de divorciado, pois, conforme explicitam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, a modificação de uma situação jurídica que já estava consolidada segundo as regras vigentes ao tempo de sua constituição poderia gerar uma grave insegurança jurídica [20], devendo, portanto, serem respeitados o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
Desse modo, persistindo o vínculo matrimonial daqueles que, hoje, possuem o estado civil de separado judicialmente, nada obsta o restabelecimento da sociedade conjugal, nos termos do disposto no art. 1.577 do Código Civil vigente. Contudo, para o pedido de decretação do divórcio, não se sujeitam à exigência de qualquer lapso temporal.
Em relação às ações de separação judicial em curso, sem prolação de sentença, considerando que a medida buscada não é mais contemplada no nosso ordenamento, e em razão da economia processual, nos parece plausível a intimação da parte autora (separação litigiosa) ou dos interessados (separação consensual) para, dentro de um prazo estabelecido, readequarem o seu pedido ao novo sistema constitucional, sem que com isto se caracterize alteração de pedido ou causa de pedir, mas simples adaptação de caráter material em razão da mudança no texto constitucional.
Caso seja realizada a devida readequação, o processo seguirá seu curso regular, com vistas à decretação do divórcio. Se, por outro lado, houver recusa da parte autora ou dos interessados, ou ainda se os mesmos deixarem transcorrer o prazo sem qualquer manifestação, o magistrado deve extinguir o processo, sem resolução do mérito, por impossibilidade jurídica do pedido (art. 267, VI do CPC).
Aquelas ações de separação de direito cujo ingresso se deu em momento posterior à alteração constitucional, devem ser indeferidas de plano pelo mesmo motivo, qual seja, pedido juridicamente impossível.
Vale salientar que, como não se trata de questão pacífica na doutrina e jurisprudência, há entendimento, embora minoritário, no sentido de que deve ser dada às partes a faculdade de optar pela continuidade da demanda de separação, visto que tal instituto não foi extinto do ordenamento, ou pela conversão do procedimento em divórcio.
Na esfera dos divórcios e separações consensuais disciplinados pela Lei nº 11.441/2007, com o advento da Emenda Constitucional nº 66/2010, os tabeliães não deverão mais lavrar escrituras públicas de separação, sob pena de nulidade absoluta do ato, facultando-se, outrossim, lavrarem atos de conversão de separação em divórcio, nos termos do art. 52 da Resolução nº 35 do Conselho Nacional de Justiça. [21]
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Emenda Constitucional nº 66/2010 representou um significativo avanço na disciplina do divórcio no Brasil, na medida em quem facilitou a dissolução do casamento sem a exigência de prazos ou a discussão de causas.
Agora, com a nova redação do art. 226, § 6º da Constituição Federal para a obtenção do divórcio, seja pela forma consensual ou litigiosa, basta a comprovação de um único requisito: o estado civil de casado.
A mudança veio ao encontro dos anseios da sociedade moderna, matura o suficiente para decidir sobre a manutenção ou rompimento do casamento, vez que afastou a interferência do Estado na vida privada e intimidade do casal, banindo definitivamente a identificação dos motivos que ensejaram a falência do matrimônio.
Em que pese as opiniões divergentes, forçoso concluir que, com a alteração constitucional, a separação judicial foi abolida do ordenamento jurídico pátrio, passando o divórcio a ser o único meio possível de dissolução do casamento.
Não se justifica a permanência do obsoleto instituto da separação jurídica, obrigando pessoas que não mais se amam a preservar um vínculo inexistente, quando a entidade familiar deve ser vista como um grupo social unido por laços de afetividade, devendo priorizar-se a dignidade da pessoa humana.
O fim do casamento funda-se tão somente na ausência do amor que unia o casal, não sendo justo impor aos cônjuges a submissão a um longo e desgastante processo prévio de separação, o que só serviria para adiar a solução definitiva de um casamento malsucedido.
Portanto, imperioso reconhecer que a mudança operada pela referida Emenda pôs fim ao sistema dualista, ao instituir o divórcio como único modo de dissolução do casamento, evitando-se uma inútil duplicidade de processos, o que permite maior agilidade na solução das demandas judiciais, além de descongestionar a máquina judiciária.
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