Resumo: Trata-se de um estudo acerca da possibilidade de aplicação do Princípio da insignificância nos casos de crime de Pesca Irregular, conduta típica prevista no Art. 34 da Lei 9.605/98. A problematização passa por uma breve análise da expansão do Direito penal, que coincide com a descoberta e ascensão de novos riscos, que passam a ser penalmente tutelados. Dentre os mencionados riscos que emergem na sociedade global têm importância especial os que decorrem da degradação do meio-ambiente. O trabalho objetiva, antes de tudo, estudar a (im)possibilidade de compreender a conduta típica mencionada como crime abstrato, ou de mera conduta – sendo inaplicável, portanto, o princípio que intitula este trabalho –, ou se, em que pese a jurisprudência (ao menos a jurisprudência do nosso Tribunal Regional Federal, 4a Região) assim refira, a conduta poderia admitir a aplicação do princípio da insignificância, esvaziando, portanto, a sua tipicidade material.[1]
Palavras-chave: Pesca irregular. Perigo abstrato. Insignificância.
Abstract: This is a study about the possibility of applying the principle of insignificance in cases of Irregular Fishing, typical conduct set forth in Article 34 of Law 9.605/98. The questioning goes through a brief analysis of the expansion of criminal law, which coincides with the discovery and rise to new risks, which become criminally protected. Among those risks that emerge in global society have particular importance those arising from the degradation of the environment. The study aims, first of all, study the (im) possibility of understanding the typical behavior mentioned as abstract crime, or mere conduct – being inapplicable, so the principle that entitles this work – or if, notwithstanding the jurisprudence (at least in the case of our Federal, 4th Region Regional Court) as well mention, the conduct would admit the principle of insignificance, thus emptying its material typicality.
Keywords: Irregular fishing; Abstract danger; Insignificance
Sumário: Introdução. 1 Notas sobre a expansão do direito penal e a ascenção dos novos riscos: como o meio ambiente se insere na agenda político-criminal?. 1.1 Os perigos da pós(?)-modernidade: ubiqüidade e transcendência. 1.2 A gestão penal dos novos riscos: algumas notas sobre populismo, esquerda punitiva e ultima ratio (ou “por amor às causas perdidas”). 1.3 A tutela penal ambiental. 2 Crimes de perigo abstrato, pesca irregular e o princípio da insignificância. 2.1 Crimes de perigo abstrato. 2.2 O crime de pesca irregular como crime de perigo abstrato. 2.3 O princípio da insignificância. 3. O imperativo do resultado lesivo no caso em análise: uma diferenciação necessária desde a redução de danos. Conclusões. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente ensaio constitui uma tentativa de investigar as possibilidades de aplicação do princípio penal da insignificância à conduta típica descrita no caput do Art. 34 da Lei 9.605/98: “Pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgão competente: […] Pena – detenção de um ano a três anos ou multa, ou ambas as penas cumulativamente”.
Para tanto, em primeiro momento, abordar-se-á a temática da expansão do direito penal, fenômeno observado por muitos criminólogos e penalistas, sendo um dos maiores exemplos a obra homônima do catedrático espanhol Jesús-María Silva Sánchez (2001). Busca-se demonstrar que a referida expansão da tutela penal, coincide com o surgimento de novos riscos e a conseqüente descoberta da ineficácia de se lidar com eles, ao passo que as agências de poder sancionador tomam a frente e buscam a tutela (penal) destes perigos que emergem.
Certo é que há um alargamento, ou seja, uma valoração social e política – especialmente o fenômeno que Maria Lúcia Karam (1996) denominou de “esquerda punitiva” – no sentido de buscar a proteção de novos bens jurídicos, sobretudo os bens advindos do meio ambiente. Inegável, também, que à primeira vista esta opção de tutela penal soe dissonante em relação à um projeto político-criminal orientado na direção da redução de danos e intervenção mínima.
Não se nega a relevância do meio ambiente como bem jurídico de extrema importância para ser tutelado pelo Estado, entretanto este ensaio, partindo de um problema específico – o não reconhecimento do princípio da insignificância para o crime de pesca irregular – pretende demonstrar que o uso da máquina penal sequer pode ser visto como eficiente, no que se refere à tutela do meio ambiente[2].
Em seguida, será abordada a dimensão contemporânea para o princípio da insignificância, expondo sucintamente sua função no Estado de Direito, imprescindível, diga-se de passagem.
Será problematizado, em um terceiro momento a concepção jurisprudencial dominante em nosso Tribunal Regional Federal (TRF-4) para qual o crime descrito no caput do Art. 34 da Lei 9.605 se enquadra na categoria de “crime abstrato”, pouco importando o resultado da conduta e sua lesividade. Após, buscar-se-á a definição adequada acerca do princípio da insignificância e suas dimensões, procurando-se demonstrar a possibilidade de sua aplicação ao tipo penal em comento.
1 NOTAS SOBRE A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL E A ASCENÇÃO DOS NOVOS RISCOS: COMO O MEIO AMBIENTE SE INSERE NA AGENDA POLÍTICO-CRIMINAL?
1.1 Os perigos da pós(?)-modernidade: ubiqüidade e transcendência
A transição para a modernidade recente é marcada, dentre outros aspectos, pela emergência de tecnologias inimagináveis. Com elas, surge também a preocupação para com seus possíveis danos, isto é, seu potencial destrutivo. Especialmente após a explosão das bombas atômicas que dizimaram duas cidades japonesas, passa-se a uma era em que a tecnologia se distancia do seu significado próprio da modernidade. Não necessariamente o progresso; agora ela poderá trazer consigo a ruína.
A ruína, no entanto, traduz uma noção que até então não era seriamente considerada. Os efeitos da destruição não mais se restringem a pequenas regiões com as quais o tempo não foi gentil, pelo contrário, podem se dar de forma global. Passa-se a um novo paradigma, justamente porque, agora as ações individuais podem gerar resultados que não respeitam sequer fronteiras entre Estados[3].
Como sintetiza Bauman, “a humanidade tem agora todas as armas necessárias para cometer o suicídio coletivo […], para aniquilar a si mesma, levando o resto do planeta à perdição” (BAUMAN, 2008, p. 96). Em outras palavras, é possível se dizer que a ameaça de destruição total não encontra raizes nas falhas da humanidade enquanto vetor de transformação da natureza. Pelo contrário: é resultado de seu sucesso[4]. Somente com o advento das novas tecnologias as fronteiras da segurança puderam ser suprimidas, ao que tudo indica de forma irreversível.
O potencial (auto)destrutivo que a humanidade possui marca a transcendência dos perigos que carrega. É preciso notar, no entanto, que este é seu distintivo em relação aos perigos dos tempos anteriores à (pós)modernidade recente, pois “[…] ainda que nessas fases se pudesse falar em riscos conhecidos e relativamente previsíveis com probabilidade calculada, contemporaneamente eles assumem conseqüências transgeracionais, ultrapassando limites espaciais, sociais e temporais, sendo irreversíveis seus efeitos no corpo humano e na natureza. […] O conhecimento científico não dá mais conta dos riscos causados pela sua própria evolução. Acabaram-se as zonas de proteção da modernidade, e Fukushima está ai para demonstrar isso. A previsibilidade e o controle tão característicos do Estado liberal-burguês dão lugar à imprevisibilidade, ao descontrole, em que a única certeza é a incerteza”. (POZZEBON, 2012, p. 183).
Nesse paradigma, a incerteza – que cada vez mais se torna sinônimo de insegurança – ressalta a outra característica marcante dos perigos pós-modernos: sua ubiqüidade. A onipresença dos perigos é verificada no cotidiano do sujeito, a tal ponto que “[…] eles podem vazar de qualquer canto ou fresta de nossos lares ou de nosso planeta. Das ruas escuras ou das telas luminosas dos televisores. De nossos quartos e de nossas cozinhas. De nossos locais de trabalho e do metrô que tomamos para ir e voltar. De pessoas que encontramos e de pessoas que não conseguimos perceber. De algo que ingerimos e de algo com o qual nossos corpos entram em contato. Do que chamamos de ‘natureza’ (pronta, como dificilmente antes em nossa memória, a devastar nossos lares e empregos e ameaçando destruir nossos corpos com a proliferação de terremotos, inundações, furacões, deslizamentos, secas e ondas de calor) ou de outras pessoas (prontas, como dificilmente antes em nossa memória, a devastar nossos lares e empregos e ameaçando destruir nossos corpos com a súbita abundância de atrocidades terroristas, crimes violentos, agressões sexuais, comida envenenada, água ou ar poluídos)”. (BAUMAN, 2009, p. 11).
Somam-se essas premissas e tem-se o que Silva Sánchez chamou de “sociedade da insegurança sentida”[5], onde o medo é o grande protagonista, já que sempre está presente nas nossas ações e reações.
Dessa forma, os perigos contemporâneos se projetam de maneira ubíqua e transcendente, sendo que o Estado não é mais o depositário das esperanças populares. O Estado perde sua eficácia ante a quantidade e força dos novos riscos, mas isso porque a matriz desses riscos não se encontra em elementos e práticas alheias ao Estado, mas correlatas ao funcionamento do próprio, como p. ex. o consumo. Daí que, com Bauman, é possível se dizer que uma terceira característica dos riscos – ou, melhor dizendo, do comportamento ante os perigos – da modernidade líquida é o autismo, que nos impede de visualizar a verdadeira matriz, a causa última desses perigos, e agir conforme. Na verdade, não se busca a resolução dos problemas, e sim seu adiamento. O sujeito pós-moderno, para Bauman parece estar muito mais preocupado com a gestão[6] dos perigos do que propriamente orientado na busca de sua solução/eliminação.
Podemos verificar que as soluções, de modo geral não são fruto de profunda reflexão, mas sim cosméticas e simbólicas; busca-se, assim, a satisfação rasa, ou seja, a fórmula mágica capaz de nos tranqüilizar. Nesse cenário, um dos grandes truques da cartola parece ser o Direito penal.
1.2 A gestão penal dos novos riscos: algumas notas sobre populismo, esquerda punitiva e ultima ratio (ou “por amor às causas perdidas”)
Os novos perigos, ubíquos e transcendentes, da contemporaneidade se fazem sentir e demandam tutela estatal na vã tentativa de anestesiar sua percepção em nosso cotidiano. Assim, emerge o direito penal, uma tutela sancionadora e nada proativa, buscando dar conta da realidade problemática. Podemos, de passagem, listar um dos conflitos mais aparentes no que concerne essa tutela, qual seja, o conflito entre funções manifestas e latentes da atuação punitiva[7].
Nesse caso, percebe-se um componente de fé na prevenção geral, em sua faceta positiva (criação da lei penal, criminalização primária) e negativa (atuação das agências no combate à prática descrita no tipo e a pedagogia da sanção como evidência de eficácia da norma). Não adentrando a antiga discussão acerca da legitimidade da prevenção geral como função do direito penal, notamos, entretanto, que é a – talvez não a única, mas sem dúvida uma das principais – perspectiva que norteia o discurso hegemônico de criminalização. Trata-se, no entanto, de uma função manifesta, que só sobrevive em desatenção à atuação empírica da norma penal e das agências. É preciso se ter em conta, sobretudo a função latente, ou seja, a função de fato exercida, e esta é, acima de tudo simbólica.
A tentativa de gestão penal dos novos riscos é simbólica porque parte de uma premissa há muito rejeitada pela criminologia crítica. Essa tutela busca se ancorar em uma suposta eficácia do direito penal em proteger os bens jurídicos ao seu abrigo, minimizando ou coibindo a prática das condutas típicas. Jamais se verificou o alcance dessa função, mas ela serve para nos distanciar e nos perdermos de vista da verdadeira função do direito penal que é a de contenção do poder punitivo[8].
A atuação simbólica da norma penal carrega em si uma dimensão de populismo, já que tangencia o problema e ao mesmo tempo contenta a população, que, diante da eficácia duvidosa dessa tutela, acaba pedindo uma dose mais elevada do mesmo remédio, em uma espiral ascendente, uma dinâmica que se retroalimenta. Os perigos dessa atitude populista são apontados por Carlos Alberto Elbert para quem “O populismo penal é uma atitude radical pragmática ante os problemas político-criminais, os quais concebe como fáceis de resolver, mediante uma rígida vontade repressiva. Esses ímpetos enfurecidos afastam-se dos princípios constitucionais interpretando as garantias processuais como ‘concessões’, para que os delinqüentes obtenham impunidade. Assim, instalou-se, como dado de senso comum do imaginário social, que os juristas (em especial os teóricos do direito penal e os juízes) são pessoas deslumbradas pela teoria, que ‘não compreendem o sofrimento cotidiano das pessoas simples’. Segundo essa visão, a ética humanista não deveria contar na luta contra um inimigo perverso, que ameaça a tranqüilidade pública. Estes pressupostos levam a identificar o delito como um estado de guerra, no qual os valores de sobrevivência justificam os excessos como os que se infligem ao inimigo em qualquer situação bélica”. (2011, p. 62).
Como se nota, a tutela penal dos novos perigos, populista e simbólica que é, parte de uma noção simplificada de sociedade. Em outras palavras, concebe problemas sociais complexos como se simples fossem. Para “problemas simples” a mesma resposta deve bastar e assim se consagra a atitude político-criminal dessa sociedade de insegurança sentida.
Até mesmo correntes que se auto proclamavam uma outra via discursiva sucumbem aos anseios eleitoreiros e abrem espaço em sua plataforma política para a tutela penal, antes objeto de crítica radical[9]. Trata-se do fenômeno que Maria Lúcia Karam chamou de esquerda punitiva[10]. Para essa autora, “O equivocado discurso sobre a criminalidade, encerrando a entusiasmada crença no sistema penal e as reivindicações repressoras, na linha deste pragmatismo político-eleitoral, sem princípios e sem ideais, favorecedor da ampliação do poder punitivo do Estado, hoje faz de amplos setores da esquerda uma reacionária massa de manobra da ‘direita penal’ e do sistema de dominação vigente, parecendo dar suporte para os que enganadoramente sustentam que a contraposição entre direita e esquerda teria perdido sua razão de ser”. (1996, p. 91).
É desse ponto de partida que se manifesta a tutela penal do meio ambiente, p. ex., já que todos sabemos de sua ineficácia, e ainda assim sua legitimidade parece não ser contestada.
Assim, sabedores da ineficácia preventiva da tutela penal em relação aos novos riscos, cumpre notar a perdição dessa tutela, seu distanciamento dos seus fundamentos básicos, entre eles o Princípio da intervenção mínima. O principio em comento, também conhecido como ultima ratio, impõe que o Direito penal seja a ultima linha de defesa, ou seja, o ultimo mecanismo à disposição de um Estado de Direito na salvaguarda de seus bens jurídicos mais caros[11]. Se a eficácia do direito penal no amparo dos bens jurídicos mais elementares – admitindo que esta seja a sua missão – depende da limitação do inventário de bens jurídicos que irá proteger e, portanto, da atuação concomitante de outros campos do Estado e do Direito para também tutelar esses bens, é razoável presumir que a quebra dessa premissa põe em cheque até mesmo sua função declarada, ou seja, a preventiva.
Em verdade, a fundação do direito penal moderno o concebia como um instrumento de tutela dos bens jurídicos individuais (vida, liberdade, propriedade, integridade física, p. ex.), sendo que o que ora se faz pode ser visto como um distanciamento desse ideal[12]. Se o direito penal, originalmente, não foi concebido para tutelar bens como o meio ambiente a sua atuação como tal se revela problemática.
Indo mais a fundo, até mesmo esta questão passa a ser irrelevante se tivermos em conta que, na realidade marginal até mesmo o discurso do direito pena liberal não se sustenta. A leitura de Eugênio Raul Zaffaroni (2001) demonstra que o discurso jurídico penal nos países periféricos, como é o caso do Brasil, já nasce deslegitimado e esse paradoxo é empírico. A distância entre as funções manifestas e latentes, como já dissemos, é tão acentuada na realidade periférica que o referido penalista, buscando inspiração nos escritos de Tobias Barreto, chega a afirmar que a função do direito penal – a única capaz de obter algum grau de legitimidade – é barrar o avanço do poder punitivo. Desse modo fica fácil identificar que a tutela penal dos novos riscos não se coaduna com a função de dique de contenção (teoria agnóstica), presente no realismo marginal de E. R. Zaffaroni.
Como dito, entretanto, em que pese nosso horizonte compreensivo se coadune com a dimensão agnóstica e a leitura do realismo marginal de Zaffaroni, o objetivo deste trabalho é salientar que a tutela penal ambiental – aqui exemplificada no tipo do Art. 34 da Lei 9.605/98 – sequer atende a uma leitura de radicalidade média como é a do Direito Penal liberal, cuja função mais comumente lembrada é a da tutela de bens jurídicos.
Por fim e retornando a este ponto, é necessário observar que a expansão do direito penal, longe de representar um avanço, não faz mais do que expor a fraqueza, a fragilidade do poder punitivo em cumprir sua missão pós-moderna de tutela dos novos perigos. Como apontam Saavedra e Vasconcellos, “percebe-se a resposta estatal não como sinal de força do poder estatal, mas na verdade, como demonstração de sua fraqueza, pois o aumento da criminalização e suas políticas relacionadas seriam uma tentativa de reforçar o que já é, há muito tempo, ineficaz na prática” (SAAVEDRA e VASCONCELLOS, 2012, p. 289).
1.3 A tutela penal ambiental
O meio ambiente, direito fundamental que recebe status constitucional com o advento da Carta Política de 1988 (dentre os vários dispositivos que o fazem menção, destaca-se o Título VIII, Capítulo VI, em que o Art. 225 lhe insere na Ordem Social prevista nessa Constituição) é indubitavelmente um bem jurídico de importância ímpar.
A quebra do paradigma renovacional que entendia os recursos naturais como infinitos, ou seja, a descoberta cada vez mais evidente da finitude desses recursos é suficiente para salientar a importância de se tutelar este bem, especialmente em face dos anseios por convertê-lo em lucro. Nesse marco, o Estado Social se insere para barrar tais anseios, ou seja, se ergue como um termômetro dos mesmos.
Ocorre que, o Estado se porta de diferentes maneiras e atua em diversas frentes, utilizando-se de uma ação de medidas combinadas para a consecução da tutela ambiental. Nesse sentido a administração pública parece exercer, em teoria, um papel fundamental nessa busca, mas esse ramo jurídico (D. Administrativo) não é o único meio de tutela, e cada vez mais leis penais acabam tipificando condutas que afrontam o bem jurídico ambiental. Os novos tipos penais ambientais possuem em seu semblante, como já dissemos, um claríssimo elemento de fé na função preventiva geral (positiva e negativa), mas criminologicamente pode-se pensar que estão atrelados a movimentos contemporâneos de criminalização, isto é, discursos criminalizantes – populismo penal, esquerda punitiva, ambos refazendo as bases do Direito Penal dentro de uma perspectiva simbólica de alívio coletivo. Apesar da fé genuína que diversos setores e meios de pressão (ONGs, por exemplo) demonstram na tipificação de condutas danosas ao meio ambiente, por parte dos que elaboram as leis é possível afirmar que se busca também demonstrar que algo está sendo feito.
Trata-se de fenômeno global, não uma realidade apenas brasileira. Em recente ensaio, Steven Freeland sustenta, p. ex. a adoção de medidas penais como estratégia de contenção de danos catastróficos que são ensejados por Estados em guerra, como estratégia de combate. Para o autor, esses danos devem ser entendidos como crimes contra a humanidade[13] (transcendência dos riscos) e coibidos pelo Tribunal Penal Internacional (FREELAND, 2005, p. 136).
Ainda assim, advertimos neste estudo que a tutela penal simbólica, grosso modo, não gera eficácia no combate às práticas predatórias, redundando em leis cuja aplicabilidade é duvidosa, para dizer o mínimo, e com mais potencial para produzir danos do que reduzi-los. Em tempos de encarceramento massivo, a tutela penal ambiental soma-se aos outros tantos discursos repressivos que escondem um problema imenso que é a quantidade de vidas que se esvaem nas celas. Como já se disse, não se nega a importância do meio ambiente enquanto bem jurídico; discordamos, entretanto, da metodologia de proteção desse bem. Desde a década de 1960, especialmente com o surgimento do interacionismo simbólico[14] a criminologia passa a atentar aos efeitos colaterais da máquina penal, bem como às razões não declaradas de uma dada política criminal. Além disso, a partir da década de 1970, com o advento da criminologia crítica[15] o enfoque nas funções latentes do sistema penal e a denuncia de sua seletividade ganham relevo. Simplesmente essa herança não pode ser ignorada e posta de lado. O direito penal não pode combater um mal, pois é um mal em si.
Pode-se dizer, novamente com Zaffaroni, que os únicos bens jurídicos que o Direito Penal poderia tutelar, mantendo um mínimo de legitimidade, são a vida e liberdade dos que sofrem sua intervenção, ou seja, criminalizados, descabendo pretensas soluções aos problemas sociais, complexos por excelência[16].
Ainda assim, como já disse Cezar Roberto Bittencourt, há uma predileção pela via da criminalização, sendo prática constantemente adotada pelo poder legislativo, sem considerar as mazelas que o sistema penal é capaz de potencializar. É o que Silva Sanchez (2001) veio chamar de expansão do direito penal. Essa expansão está diretamente ligada á falência do discurso estatal que não consegue realizar suas promessas, nas palavras do autor, “[…] en um mundo en el que las dificultades de orientación cognitiva son cada vez mayores, parece incluzo razonable que la búsqueda de elementos de orientación normativa – y dentro de éstos, el Derecho penal ocupa um lugar significativo – se convierta casi en obsesiva. En efecto, en una sociedad en la que se carece de consenso sobre valores positivos, parece que al Derecho penal le corresponde ‘malgré lui’ la misión fundamental de generar consenso y reforzar a la comunidad ».(2001, p. 41-42).
Como se percebe, se tenta garantir a coesão social e até mesmo uma integração social por meio do consenso punitivo o que culmina na neo-tipificação de que falamos anteriormente.
Um dos exemplos dessa neo-tipificação de condutas é a que origina este trabalho. O crime descrito no Art. 34 da Lei 9.605/98 expõe um projeto sancionador que espera, talvez genuinamente, preservar a fauna marítima gravemente ameaçada por meio de Direito penal. Significa, sobretudo, uma opção político-criminal obsoleta e cuja ineficácia se comprova a cada dia.
A expansão do Direito penal promove assim uma antecipação de sua tutela, um alargamento de sua dogmática, tanto quanto da própria política criminal, que se verifica nos novos tipos penais que buscam gerir o patrimônio ambiental. O perigo da dilatação dogmática – especialmente na tipificação da conduta punível – é apontado por Fábio Roberto D’Avila, nos seguintes termos “Se, em termos ideais, o tipo penal deve descrever, da forma mais fiel e objetiva possível, o conteúdo material do ilícito, é evidente que, quanto mais complexa for a matéria tipificada, mais difícil será o cumprimento de tal tarefa. A dificuldades enfrentadas na descrição de matérias de maior complexidade levam, por sua vez, a preferência por técnicas de tutela de caráter formal, normalmente estabelecidas na violação de um dever de natureza administrativa ou no exclusivo desvalor da ação” (2012, p. 275).
2 CRIMES DE PERIGO ABSTRATO, PESCA IRREGULAR E O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
2.1 Crimes de perigo abstrato
Tendo em vista as situações expostas no capítulo anterior como a expansão dos novos riscos trazidos pela evolução técno-científica da modernidade e a tendência crescente de que o Direito Penal seja a tabua de salvação Estatal na tentativa vã de impedir a concretização de tais temores, ocorre a, cada vez mais comum, positivação dos chamados crimes de perigo abstrato.
Nos crimes de perigo o resultado da conduta é ignorado, pois, para sua configuração basta que a conduta coloque em perigo o bem jurídico para que o tipo seja exaurido (PRADO, 2010, p. 307). Isso acontece porque o legislador entende que a simples produção de perigo para o bem jurídico tutelado é suficiente para a sanção penal, permitindo punir alguém mesmo que não tenha causado nenhum dano.
Tais delitos são divididos em crimes de perigo abstrato e crimes de perigo concreto. Nos crimes de perigo concreto deve ser comprovado o efetivo risco em que foi colocado o bem jurídico tutelado. É exemplar o tipo de explosão, em que para ser preenchida a tipicidade deve-se, efetivamente, colocar em risco a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem. O próprio tipo cita os bens jurídicos protegidos pela norma, e, por isso, para ocorrer a imputação a conduta deve efetivamente expor esses bens a um risco considerável, devendo essa exposição ser comprovada.
Por outro lado, nos crimes de perigo abstrato o risco não precisa ser demonstrado, sendo reconhecido o perigo júris et de jure (BITTENCOURT, 2009, p. 224), assim, a própria conduta é suficiente para se presumir o perigo ao bem jurídico, não importando o possível resultado ou a possibilidade de dano. Porém, como defende Bittencourt “Somente se justifica a intervenção estatal em termos de repressão penal se houver efetivo e concreto ataque a um interesse socialmente relevante, que represente, no mínimo, perigo concreto ao bem jurídico tutelado. Por essa razão, são inconstitucionais todos os chamados crimes de perigo abstrato, pois, no âmbito do Direito Penal de um Estado Democrático de Direito, somente se admite a existência de infração penal quando há efetivo, real e concreto perigo de lesão a um bem jurídico determinado“ (2009, p. 22).
Assim, os crimes de perigo somente respeitam os princípios basilares do Direito Penal quando o perigo é efetivamente demonstrado e relevante, sob pena de que condutas que sejam irrelevantes, sejam punidas por adequarem-se meramente à ação descrita na norma, sem produzir qualquer perigo ao bem jurídico tutelado. Ainda se considerarmos que o resultado nesses crimes é dispensável, chegaríamos à conclusão que, em tais crimes, a norma protege a própria norma, pois o que se leva em conta é o respeito a ela e não o dano que advém do seu desrespeito.
2.2 O crime de pesca irregular como crime de perigo abstrato
Passaremos agora ao exame do crime de pesca irregular que dá razão ao presente trabalho. Previsto na Lei 9.605/98, o crime de pesca irregular apresenta no seu caput o seguinte enunciado (preceito primário): “pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgão competente”.
Podemos notar pela redação que o crime de pesca irregular se constitui crime de perigo abstrato, pois, apresenta somente a ação criminalizada, desconsiderando o resultado ou o efetivo perigo ao bem jurídico tutelado. Não vemos no Artigo qualquer menção ao bem jurídico que deva efetivamente sofrer risco para que o tipo penal seja consumado, o próprio ato de pescar é criminalizado, desconsiderando o potencial de risco ao bem jurídico protegido. Assim, apesar de posições doutrinárias estabelecidas, no sentido de reconhecer a inconstitucionalidade e a impossibilidade de conhecer os crimes de perigo abstrato, é recorrente na jurisprudência do TRF da 4ª Região tal tratamento, ignorando-se o resultado, ou potencial resultado.
Isso ocorre, pela insistente criminalização das condutas que podem gerar danos ambientais e o medo de que esses danos possam ser irreparáveis, porém, “quando a conduta é valorada, a ponto de prescindir seu resultado, colocando o enfoque no ‘desvalor ético’ se está saindo da verdadeira esfera do Direito Penal“ (MORAES, 2004, p.42). Assim, por mais que se defenda a proteção penal do meio ambiente, seu potencial violento se mostra enorme, uma vez que deixa ao arbítrio estatal a sanção de condutas que tem potencial ofensivo nulo.
2.3 O princípio da insignificância
Obedecendo ao já citado pressuposto que o Direito Penal deve ocupar-se das condutas que efetivamente coloquem em risco os bens jurídicos mais importantes, sendo um dique de contenção do poder punitivo e não sua legitimação, é que Claus Roxin criou o princípio da insignificância.
Tal princípio preceitua que para haver a tipicidade penal é necessário que haja uma ofensa relevante ao bem jurídico tutelado para que seja estabelecida a tipicidade material da conduta e não simplesmente o preenchimento formal da ação descrita no tipo penal (BITTENCOURT, 2009, p. 21), em outras palavras, uma lesão irrelevante ao bem jurídico tutelado não deve ser sancionada pelo Direito Penal.
Assim, sendo decorrência lógica dos princípios da fragmentariedade e da intervenção mínima, pautar-se pela insignificância é a forma que melhor exprime a correta aplicação da lei penal, pois, como leciona Carlos Vicos Mañas (apud GRECO, 2012, p. 65) “Ao realizar o trabalho de redação do tipo penal, o legislador apenas tem em mente os prejuízos relevantes que o comportamento incriminado possa causar á ordem jurídica e social. Todavia, não dispõe de meios para evitar que também sejam alcançados os casos leves. O princípio da insignificância surge justamente para evitar situações dessa espécie, atuando como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, com o significado sistemático político-criminal da expressão da regra constitucional do nullum crimen sine lege, que nada mais faz do que revelar a natureza subsidiária e fragmentária do Direito Penal.”.
A insignificância, portanto, afasta a tipicidade da conduta, em casos de “lesões de pouca gravidade ou quando no caso concreto seu grau de injusto seja mínimo” (PRADO, 2010, p. 182). Ainda, de especial importância para o presente trabalho, como salienta Bittencourt, “a insignificância de determinada conduta deve ser aferida não apenas em relação à importância do bem juridicamente atingido, mas especialmente em relação ao grau de sua intensidade, isto é, pela extensão da lesão produzida” (2009, p. 21), sendo assim, mesmo em crimes que tutelem bens jurídicos importantes como o meio ambiente, deve-se considerar a lesão produzida quando se analisar a tipicidade da conduta.
3 O IMPERATIVO DO RESULTADO LESIVO NO CASO EM ANÁLISE: UMA DIFERENCIAÇÃO NECESSÁRIA DESDE A REDUÇÃO DE DANOS
Como vimos a ampliação do Direito Penal para tutelar o meio ambiente é recorrente e um resultado da sociedade contemporânea. O uso de normas simbólicas de cunho populista “serve apenas para produzir uma impressão tranqüilizadora na opinião pública de um legislador atento e decidido e nada tem a ver com a defesa dos bens jurídicos, pois perverte esta função protetora.” (MORAES, 2004, p. 53).
Dessa maneira, a mitigação das garantias individuais frente ao arbítrio estatal em troca de uma tutela ambiental pautada na falaciosa prevenção geral parece-nos inaceitável, assim como é a proliferação dos chamados crimes de mera conduta que ignoram princípios básicos do Direito Penal, como a lesividade, fragmentariedade e insignificância, bem como a reserva legal, por aceitar a presunção da tipicidade material.
Apesar disso, a jurisprudencia quando trata do crime de Pesca Irregular é majoritária ao admití-lo como crime de perigo abstrato, desconsiderando o dano causado pela conduta e entendendo que o simples agir exaure o delito. Através desse argumento, os tribunais vem, reiteradamente, defendendo o descabimento do princípio da insignificância em tal delito, porque o legislador, em tese, desconsiderou o resultado ao criminalizar apenas a conduta, argumento que como vimos não é sustentado pela doutrina, tendo em vista que independente do bem jurídico tutelado, deve-se sempre observar o grau de intensidade da lesão ou perigo. Porém, não é assim que entende o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Regional Federal (4. Região), respectivamente, conforme as ementas que seguem :
“PESCA PREDATÓRIA. PEQUENA QUANTIDADE. PRINCÍPIO. INSIGNIFICÂNCIA. Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de réu denunciado como incurso nas penas do art. 34, parágrafo único, II, da Lei n. 9.605/1998, uma vez que foi flagrado pela Polícia Militar de Proteção Ambiental praticando pesca predatória de camarão, com a utilização de petrechos proibidos em período defeso para a fauna aquática e sem autorização dos órgãos competentes. Postula o paciente a atipicidade da conduta com a aplicação do princípio da insignificância, visto que pescara aproximadamente quatro kg de camarão, que foram devolvidos ao habitatnatural. A Turma denegou a ordem com o entendimento de que a quantidade de pescado apreendido não desnatura o delito descrito no art. 34 da Lei n. 9.605/1998, que pune a atividade durante o período em que a pesca seja proibida, exatamente como no caso, ou seja, em época da reprodução da espécie e com utilização de petrechos não permitidos (parágrafo único, II, do referido artigo). Há interesse estatal na repreensão da conduta em se tratando de delito contra o meio ambiente, dada sua relevância penal, tendo a CF destinado um capítulo inteiro à sua proteção”.
“PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. CRIME AMBIENTAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. ARTIGO 34, CAPUT, E PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO II, DA LEI 9.605/98. PESCA COM UTILIZAÇÃO DE PETRECHOS PROIBIDOS E EM LOCAL NÃO PERMITIDO. DENEGAÇÃO DA ORDEM. […] 2. As infrações penais ambientais, em princípio, não admitem a aplicação do princípio da insignificância, considerando que o bem jurídico agredido é o ecossistema, constitucionalmente tutelado pelo artigo 225 da CF/88, de relevância imensurável, seja porque o meio ambiente é bem jurídico de titularidade difusa, seja porque as condutas que revelam referidos crimes assumem uma potencialidade lesiva que se protrai no tempo e pode afetar as gerações futuras, seja porque as violações ao meio ambiente, por menores que sejam, revelam-se demais preocupantes, à medida em que o aumento da destruição é proporcionalmente maior de acordo com o crescimento da população, tornando-se cada vez mais difícil de controlar, motivo pelo qual não se pode mais admitir transigência e deve-se cobrar de todos a máxima preservação. 3. A pesca de fauna ictiológica mediante utilização de petrecho não permitido e em local proibido possui relevância penal, uma vez que atinge diretamente o ciclo de reprodução e perpetuação da espécie, não se configurando situação excepcional apta a atrair a incidência do princípio despenalizante. 4. Conduta que, em tese, amolda-se ao previsto no artigo 34, caput e parágrafo único, inciso II, da Lei 9.605/98. 5. Ordem denegada”. (TRF4, HC 5016971-69.2013.404.0000, Oitava Turma, Relator p/ Acórdão Victor Luiz dos Santos Laus, D.E. 29/08/2013). (Grifos nossos)“
Percebe-se que os relatores de ambos os casos, ignorando a orientação doutrinária, pautaram suas decisões na ideia de que dada a importância do bem jurídico tutelado, o resultado não é suficiente para desconsiderar a tipicidade da conduta pelo princípio da insignificância. Porém, nesses casos, qual o bem jurídico tutelado? Alguma espécie de peixe? O mar? É necessário que fique claro, pois, a partir daí será analisado o potencial danoso da conduta em relação ao bem.
Outro argumento utilizado, e majoritário no TRF-4, é de que os crimes de mera conduta não necessitam de demonstração do dano. Assim:
“PENAL E PROCESSUAL. CRIME AMBIENTAL. PESCA EM RESERVA BIOLÓGICA. ART. 34, CAPUT, DA LEI 9.605/98. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. DEMONSTRAÇÃO DO DANO. DESNECESSIDADE. INEXISTÊNCIA DE PROVAS DA OCORRÊNCIA DO CRIME EM RELAÇÃO A UM DOS ACUSADOS. IN DUBIO PRO REO.ABSOLVIÇÃO. MATERIALIDADE, AUTORIA E DOLO COMPROVADOS QUANTO AO OUTRO RÉU. CONDENAÇÃO MANTIDA. REPRIMENDA E MULTA. DIMINUIÇÃO. SUBSITUIÇÃO. REINCIDENTE. CABIMENTO EXCEPCIONAL. 1. Diante do alto grau de potencialidade lesiva e de reprovabilidade da conduta, a qual se mostra nociva ao equilíbrio e à harmonia do meio ambiente, em especial à fauna aquática da unidade de conservação, inviável aplicar o princípio da insignificância aos fatos narrados nos autos. 2. Tratando-se de crime de mera conduta e perigo abstrato, o risco de lesão ambiental é ínsito à própria conduta descrita no tipo penal, sendo prescindível a demonstração do efetivo dano causado […]” (TRF4, ACR 5017747-71.2011.404.7200, Sétima Turma, Relatora p/ Acórdão Salise Monteiro Sanchotene, D.E. 28/08/201). (Grifos nossos).“
Porém, na contramão da Jurisprudência dominante, entendemos que o princípio da insignificância deve, sim, ser aplicado aos crimes de Pesca Irregular, pois é o que melhor se adéqua aos princípios basilares do Direito Penal e intrínsecos ao Estado Democrático de Direito; não existindo dano, é insignificante a conduta, não importando ser crime de perigo ou material.
Além disso, o descabimento do princípio por se tratar de crime de mera conduta, ou crime de perigo abstrato, demonstra desconhecimento do princípio da insignificância formulado por Roxin, pois, o penalista defende que a insignificância leva em consideração o resultado da conduta e não a importância do bem jurídico. O dano deve ser suficiente para que a conduta adentre na esfera da criminalidade, isso fica claro no entendimento de ROXIN que alertava que “el llamado principio de la insignificancia, que permite en la mayoría de los tipos excluir desde un principio daños de poca importancia: maltrato no es cualquier tipo de daño de la integridad corporal, sino solamente uno relevante; análogamente deshonesto en el sentido del Código Penal es sólo la acción sexual de una cierta impârtancia, injuriosa en una forma delictiva es sólo la lesión grave a la pretensión social de respeto. Como "fuerza" debe considerarse únicamente un obstáculo de cierta importancia, igualmente también la amenaza debe ser "sensible" para pasar el umbral de la criminalidad” (2002, p. 74).
Dessa maneira, é imperioso concluir que os crimes de perigo também devem respeitar o princípio da insignificância, sendo a conduta considerada típica somente quando efetivamente lesarem um bem jurídico, ou, ao menos, constituírem perigo real aos mesmos, devidamente comprovado. Desse modo, também, deve ser tratado o crime de Pesca Irregular. Apesar de ainda serem minoria, algumas decisões do TRF-4 já se apontam nessa direção, buscando reduzir os danos do poder punitivo, como podemos visualizar no julgado que abaixo está ementado:
“PENAL. CRIME AMBIENTAL. PESCA. ART. 34 DA LEI Nº 9.605/98. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. MÍNIMA OFENSIVIDADE AO BEM JURÍDICO TUTELADO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. EXCEPCIONALIDADE. 1. É cabível a aplicação do princípio da insignificância aos crimes cometidos contra o meio ambiente, em situações excepcionais, quando evidenciada a ausência de ofensividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, a ausência de periculosidade social da ação, o grau ínfimo da reprovabilidade da conduta e a inexpressividade da lesão ao bem jurídico. 2. Hipótese em que a sentença absolveu o réu pela atipicidade em face da ausência de dano, pois ele foi surpreendido no ato da pesca, antes da efetiva captura dos peixes, enquanto a rede ainda estava na água e os peixes vivos, assim como pela insignificância, pois só havia três peixes presos à rede, com peso total estimado em cerca de 200 gramas. 3. Caracterizada a insignificância do ato em razão do bem protegido, impõe-se a absolvição, forte no art. 386, III, do CPP. Precedentes do STF”. (TRF4, ACR 0000682-53.2008.404.7007, Sétima Turma, Relator p/ Acórdão Luiz Carlos Canalli, D.E. 08/09/2011). (grifos nossos). “
CONCLUSÕES
Em síntese, a concepção do crime descrito no Art. 34 da Lei 9.605/98 como crime de perigo abstrato não faz mais do que denunciar a atuação da tutela penal em sua realidade expansiva. Em que pese seja o entendimento da maior parte do TRF-4, não parece ser o entendimento dogmaticamente correto, ainda mais se tivermos o Estado de Direito comprometido com o Direito Penal mínimo.
Deve-se reconhecer, portanto, a necessidade do resultado lesivo a fim de caracterizar a tipicidade material da conduta, permitindo-se a aplicação do princípio da insignificância caso esta não se verifique, pois, em caso contrário, estar-se-ia punindo uma mera possibilidade de lesão ao bem jurídico. A permeação do campo das possibilidades no Direito Penal gera o enorme risco de uma expansão exacerbada do poder punitivo, pois, no intuito de defender o bem jurídico, pode-se punir condutas que são extremamente irrelevantes, cabendo sua imputação ao mero arbítrio do julgador que poderá punir condutas que não tem a mínima possibilidade de colocar em risco o bem jurídico tutelado.
Desconsiderando o resultado dá-se igual tratamento ao pescador individual equipado com uma vara de pesca e à pesqueiros que com suas redes devastam toda a fauna de uma região, pois o que deve ser levado em conta é apenas a conduta pescar, não o resultado da pesca, ou mesmo o risco em que o meio ambiente foi exposto.
Por fim, não nos parece que essa interpretação, reiterada nos tribunais, de que o princípio da insignificância não pode ser aplicado aos crimes de pesca irregular, pela irrelevância do resultado, possa se sustentar, uma vez que seu fundamento se dá na proteção do bem jurídico, porém, esse nem sequer é lesado nos crimes que não tiveram ou foi ínfima a lesão ao bem tutelado. Fica latente a pergunta: Que proteção poderia advir da punição de condutas insignificantes? A resposta penal, por outro lado, é muito significativa.
Bacharel em Direito da Universidade Federal do Rio Grande – FURG
Bacharel em Direito da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Mestrando em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do Rio Grande FURG
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