Resumo: O presente artigo versa sobre a ocorrência das hipóteses de fraude contra credores e fraude à execução, pretendendo explorar a titularidade de sua repressão como matéria de ordem pública, onde o Estado, enquanto ente coordenador do Poder é conjuntamente prejudicado, ao mesmo ponto em que o é o particular afetado pela impossibilidade de sucesso da ação intentada ante à pretensão resistida. Cuida-se, ainda, da aplicabilidade da Súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça e de sua, necessária, relativização em prol da segurança estabilidade jurídica, com a demonstração de que a maioria da jurisprudência brasileira já é assente neste sentido.
Palavras-chave: Fraude; Execução; Súmula 375
Abstract: This article focuses on the occurrence of the hypothesis of fraud against creditors and fraud enforcement, intending to explore the ownership of their repression as a matter of public policy, where the State as being coordinator of Power is jointly affected at the same point where the is particularly affected by the impossibility of a successful action (sue) brought against the claim resisted. Attention is also the applicability of Precedent 375 of the Superior Tribunal de Justiça (superior Court of Justice) and its necessary, for safety’s sake relativization legal stability, and demonstrate that the majority of Brazilian law is already settled this.
Keywords: Fraud; execution sue; Precedent 375
Sumário: I. Introdução. II. A fraude civil. III. A fraude na esfera Penal. IV. A fraude no sistema registral imobiliário. V. Conclusão. Bibliografia
I. Introdução:
O presente estudo pretende cuidar das vítimas no crime de fraude à execução e da relação que se dá, no âmbito processual civil, entre a conduta fraudulenta e a declaração da ineficácia dos atos fraudados em face do credor, mormente com a edição da súmula 375 do STJ.
II. A fraude civil – Fraude contra Credores e Fraude à Execução:
A convivência cultural do ser humano importa na relação que manterá com outros membros da mesma espécie. Esta relação, que se iniciou com a especialização do ser humano no sentido de se lhe facilitarem as tarefas instintivas de sua existência – alimentar-se, reproduzir-se e garantir a sobrevivência da espécie – começou quando o primeiro ser humano percebeu que se associando a outro ser humano, poderia dividir as tarefas necessárias à subsistência e outras atividades, não mais ligadas exclusivamente à existência essencial puderam ser desenvolvidas. Pulamos alguns milhões de anos e no seio da sociedade que conhecemos, o ser humano inserido nesta sociedade participa, a todo momento de novas relações, cada vez mais intrincadas, tanto com outras pessoas naturais como, agora, porque criadas como ficção cultural, com pessoas ficcionais que se simbolizam por instituições e associações.
Diariamente, a existência desta sociedade, agora já jurídica, disciplinada por estritas normas de conduta que puderam pacificar a miríade de relações sociais que se realizam, exige um inúmero refinamento das relações interpessoais que permitem a cada um obter o que deseja em todas as esferas de satisfação da psique humana.
Para que este processo de aquisição se estabelecesse, a sociedade criou a figura do crédito, a princípio, meramente em confiança à palavra e à honra empenhadas, depois garantido por bens ou direitos, quando se criaram ou modificaram normas tendentes à proteção do crédito ofertado. Aqueles que forneciam o crédito, por ele cobravam uma parcela do capital financiado, ou seja, inventaram-se os juros.
Já no Código Hamurabi[1], os juros e, por conseguinte o crédito, são mencionados e se procurava uma disciplina para quando de sua ocorrência. O crédito passou a ser tema de toda e qualquer legislação que a humanidade então criou, onde, mais ou menos, se demonstrava a preocupação com a segurança do crédito oferecido.
Assim, “a concessão de crédito tem como base a expectativa de que o contrato de débito seja honrado, o que dá ao termo crédito a conotação de merecimento de crédito por parte de uma pessoa ou de uma instituição, baseado na sua capacidade e integridade. Nesse contexto, capacidade refere-se ao potencial de auferimento de renda por parte do devedor, e é da renda e não da propriedade que depende o pagamento da dívida”[2].
Nas legislações antigas, não raro, a ofensa do crédito, com a impontualidade ou a ruptura aos pagamentos importava no fim da cidadania, sendo o devedor tomado como objeto de pagamento pelo credor, neste caso, transformado em escravo, ou mesmo sendo mutilado. Neste período a tutela estatal de garantia à pessoa ou não existia ou era insipiente, havendo, isto sim, a tutela ao patrimônio.
Com o passar do tempo as legislações começaram a se construir, notadamente sob influência dos direitos sociais esboçados na revolução Francesa e muito amadurecidos nas duas guerras mundiais do último século, no sentido de conciliar a proteção ao crédito, uma vez que este, em não sendo protegido, causaria o retrocesso de toda a sociedade, com a garantia social da cidadania, não mais, nos regimes ocidentais, sendo permitido que os devedores impontuais fossem escravizados, mortos ou mutilados em punição ao não pagamento pelo crédito auferido.
Contudo, o crédito que é absolutamente fundamental às relações de crescimento patrimonial da humanidade, necessita de proteção, a uma porque se trata de instituição deveras importante e a duas porque baseia-se, como sempre, em absoluta confiança naquele que presta e na honra daquele que toma o valor creditício. Quando não se dá a paga do pactuado não se quebra apenas a relação individual entre credor e devedor singulares, mas, na verdade, dada a importância da relação creditícia, abala-se a totalidade do instituto que, não sem exagero é grande demais para falhar (apropriamo-nos, em sentido aliterado da expressão too big to fail[3]).
Com a inauguração dos direitos sociais, as novas normas editadas sob estes princípios passaram a presumir a suposição dos legisladores baseando-se, intrinsecamente, na existência de boa-fé objetiva nas relações e, a má-fé, agora subjetiva, passou a depender de prova.
Contudo, muitos dos tomadores do crédito, ou por manifesta inabilidade em lidar com os recursos, ou por desvio dos mesmos de seus destinos (de forma intencional ou não), ou por fatalidades, ao perceberem que não poderiam adimplir com o pagamento dos montantes tomados, conceberam ardis ou meios fraudulentos para tentar se ver livres das obrigações sem o comprometimento dos bens que haviam amealhado. Nos casos em que não havia bens as situações se simplificavam, pois, não havendo o que ser tomado, tanto a punição cível, inabilitando o devedor para atos civis e de crédito, ou a penal, condenando-o a penas privativas de liberdade cuidavam da matéria e o prejuízo do credor se computava como risco de sua atividade.
Em nosso país, desde as ordenações reinóis já se previam punições aos maus pagadores e, na esfera do código civil revogado de 1916, consagraram-se as formas principais de garantia de pagamento. Nesta legislação, quando o devedor usando de má-fé subjetiva, frustrava o recebimento do crédito, diluindo ou destruindo seu patrimônio a fim de frustrar a execução do crédito, o legislador habilmente previu as hipóteses de frade a credores e de fraude à execução.
O legislador penal, já com a edição do código de 1940, em seu artigo 179[4] (cuja redação se mantém atualmente, com pouquíssima alteração), tipificou a conduta apenando o fraudador com pena de detenção de seis meses a 2 anos.
Na legislação esparsa, há outras referências as quais, para os fins deste trabalho, não serão, ao menos por ora, estudadas.
A punição consagrada nos dois diplomas é emblemática porque, entre nós, por diversas razões, uma delas, certamente, a dificuldade de punição e o alto índice de impunidade é extremamente comum que, em manifesto espírito de lesar o credor, alguns se valham de institutos de esvaziamento lícito de patrimônio como garantia ao não pagamento das dívidas que durante sua vida acumularam; é um espelho, para os levianos, que aponta para uma certa possibilidade de enriquecimento ilícito à custa do empobrecimento de seus credores, daqueles que com eles transacionaram e, em nosso entender, ao Estado, tanto quanto ao Estado Fazendário, como quanto ao Estado jurisdicional.
Uma das principais conseqüências deste motivado ou não inadimplemento e dos custos de sua cobrança, se reflete no custo do dinheiro tomado à crédito (juros) em que nosso país encabeça a lista dos mais altos pagadores de juros do planeta. Por óbvio, esta insidiosa forma de entender a relação de crédito refere naquilo que se convencionou chamar de custo Brasil, afugentando investidores e minando a possibilidade do custo do crédito diminuir uma vez que a retomada dos valores emprestados engloba nos juros pagos pelos dinheiros tomados, uma boa parcela do custo do risco de o prestador ter de valer-se de sistema caro, lento e parcialmente ineficaz na coação do adimplemento da obrigação pelo devedor.
No Brasil, infelizmente, de há muito, se tornou comum o devedor desafiar seu credor em juízo com a máxima “ganhar, ganha, mas não leva”.
O legislador, contudo, na esfera cível, já no código revogado previu a possibilidade de coibição do ato ilícito processual, taxando de ineficaz a operação de venda de bens, quando tendem a transformar em insolvente o devedor, em havendo contra si demanda ou, mais apropriadamente, crédito exeqüível ante si por parte de outrem que teria, desta forma, satisfação deste crédito tolhida administrativa ou judicialmente.
Fê-lo, na esfera cível, de duas formas, a primeira configurada na instituição da fraude a credores e a segunda na instituição da fraude à execução, remetendo esta, também, ao tipo penal. Ambas tem, como mote, a inexistência de patrimônio do devedor, que existia quando do oferecimento do crédito e, não raro, o garantiu, quando da fase de execução da dívida após o inadimplemento, onde se observa a manifesta insolvência do devedor e a impossibilidade de satisfação da demanda.
A insolvência é a caracterização de estado de pobreza a que chega o devedor por não mais possuir patrimônio capaz de satisfazer os créditos que o mercado possui ante sua pessoa. Em tese a insolvência, imediatamente impediria a execução forçada ou não, da dívida que o título de crédito, um dia, simbolizou. Sua ocorrência nem sempre é fraudulenta e, quando não o é, como exemplificativamente vemos quanto aos pródigos e menos quanto aos incautos, sua ocorrência não necessariamente levaria à conclusão da ocorrência de fraude.
Na instituição da fraude a credores a caracterização demanda, necessariamente, àquele que a alega, a prova da ocorrência da má-fé, aquilo que a doutrina chama de concilium fraudis onde devedor e interposta pessoa atuam unissonamente com o fim especifico de fraudar os credores do alienante.
Para o professor Cândido Rangel Dinamarco, a fraude a credores: “consiste basicamente na diminuição patrimonial provocada pelo devedor, de modo que em virtude dela o seu ativo passe a ser menor que o passivo. A situação econômica de insolvência consiste precisamente nisso, que o patrimônio do devedor, do qual se espera a garantia geral para os seus credores, fica insuficiente e já não garante.”[5]
A lei civil, também exige para sua decretação a vontade de fraudar, verdadeiro dolo de fraudar a satisfação da obrigação de que o patrimônio era garante.
O remédio reservado pela lei é a mera anulação destes atos, tomando-os por ineficazes quanto aos credores que assim o eram ao tempo da alienação, conforme disciplina dos artigos 158 e 159 do vigente código civil (em remissão aos 106 e 107 do Código Civil Revogado).
Aqui, não necessariamente o devedor é pólo passivo de algum processo judicial de excução da dívida, meramente sendo caracterizada sua inadimplência associada a vontade de fraudar e à insolvência, quando cuidaríamos da hipótese legal.
A decretação da fraude contra credores depende, contudo de processo autônomo onde se apurem a ocorrência da insolvência e do concillium fraudis, de exercício de direito de ação por parte daquele que se entende fraudado, o credor deve, nos prazos que a lei lhe assinala, intentar a correspondente ação declaratória (ação pauliana), em que réu serão o devedor e a pessoa que houver, com ele praticado a fraude, ainda que apenas sendo um presta nomes ou interposta pessoa, ou mesmo o, em mãos deste adquirente (art. 161 do Código Civil).
Isto porque, aqui, não se exige a existência de um processo judicial em que haja a fraude; a simples existência do crédito insatisfeito, acrescido da resistência a seu pagamento e à alienação ou gravação dos bens já a caracteriza.
O tema em questão, ou seja o da fraude contra credores, trata-o a lei civil atual nos seus artigos 158 a 165 que prevêem:
“Art. 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos.
§ 1o Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente.
§ 2o Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles.
Art. 159. Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante.
Art. 160. Se o adquirente dos bens do devedor insolvente ainda não tiver pago o preço e este for, aproximadamente, o corrente, desobrigar-se-á depositando-o em juízo, com a citação de todos os interessados.
Parágrafo único. Se inferior, o adquirente, para conservar os bens, poderá depositar o preço que lhes corresponda ao valor real.
Art. 161. A ação, nos casos dos arts. 158 e 159, poderá ser intentada contra o devedor insolvente, a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, ou terceiros adquirentes que hajam procedido de má-fé.
Art. 162. O credor quirografário, que receber do devedor insolvente o pagamento da dívida ainda não vencida, ficará obrigado a repor, em proveito do acervo sobre que se tenha de efetuar o concurso de credores, aquilo que recebeu.
Art. 163. Presumem-se fraudatórias dos direitos dos outros credores as garantias de dívidas que o devedor insolvente tiver dado a algum credor.
Art. 164. Presumem-se, porém, de boa-fé e valem os negócios ordinários indispensáveis à manutenção de estabelecimento mercantil, rural, ou industrial, ou à subsistência do devedor e de sua família.
Art. 165. Anulados os negócios fraudulentos, a vantagem resultante reverterá em proveito do acervo sobre que se tenha de efetuar o concurso de credores.
Parágrafo único. Se esses negócios tinham por único objeto atribuir direitos preferenciais, mediante hipoteca, penhor ou anticrese, sua invalidade importará somente na anulação da preferência ajustada.”
Em que pese a lei tratar o tema mediante anulação do ato jurídico, em verdade se deve compreender os efeitos da ação pauliana como ineficácia do ato gravoso (gravame de direito real ou alienação do bem garante), porque, em regra os efeitos da ação não se aplicam erga omnes, apenas atingindo os fraudadores assim declarados e o credor que volta a ter os bens como garantia da execução da dívida. Assim “ conspícuas lições européias são hauridas por nossos doutores, que corretamente sabem ser válido o ato fraudulento, mostrando-se apenas inoponível a certos credores.”[6] Ou seja o ato jurídico que se traduziu na alienação fraudulenta possui um vício que somente é válido ante aquele credor que visou alijar da possibilidade de recebimento de seu crédito. Para todo o resto do mundo jurídico o ato é perfeito e acabado, não sendo possível a ninguém em face da obediência ao nexo causal e ao princípio do interesse jurídico, questionar o ato alienatório que a si não pertine.
Deveras. Com a declaração da fraus pauliana não há reconhecimento de vício intrínseco ao ato de alienação que materialize-se no mundo jurídico. O que há é, tão somente, uma repulsa pelo credor, da eficácia dos atos praticados pelo devedor que lhe obstou o deslinde da ação executiva. Tanto é assim que se, no curso da ação pauliana o devedor vier a pagar o credor, aqui seu autor, a mesma perde condições de procedibilidade, pois satisfeita a obrigação o credor deixa de ter interesse na decretação da fraude, que não mais lhe causaria benefício, ou mesmo malefício, sendo, então, a ele, absolutamente indiferente.
É importante salientar que a desídia do comprador que não busca acercar-se das cautelas usuais na compra e venda, como procurar inteira-se da situação patrimonial do vendedor antes de efetuar o negócio, obtendo certidões de distribuidores, cartórios de protesto e das diversas justiças, pode ser interpretada como indício da fraude, dando ensejo a suspeição do negócio e a eficácia relativa do mesmo ante o credor da obrigação frustrada.
O mesmo se dá quando o devedor trata de desincumbir-se de seus bens de forma gratuita, ou mesmo renunciando àqueles à que teria direito. A legislação falimentar atual, lei federal 11.101/05, bem percebendo esta possibilidade inviabiliza a renúncia de herança no caso de falência posterior. Com efeito a norma específica inquina de ineficaz o ato praticado nos 2 anos anteriores ao termo de falência conforme seu artigo 129[7].
Para a legislação que caracteriza estes atos de ineficazes e não anuláveis como, imprecisamente o fez a lei civil, seus efeitos perante a massa, já que a fraude aqui é presumida, não se operam. Para o professor Fábio Ulhoa Coelho:
“Os atos reputados ineficazes pela Lei de Falências não produzem qualquer efeito jurídico perante a massa. Não são atos nulos ou anuláveis, mas ineficazes. A sua validade não é comprometida por disposição de lei falimentar, embora de alguns deles se pudesse cogitar de invalidação por vício social, nos termos da lei civil. Por isso, os atos referidos pela Lei de Falências como ineficazes diante da massa falida produzem, amplamente, todos os efeitos para os quais estavam preordenados perante todos os demais sujeitos de direito.
Exemplificativamente: uma das hipóteses, que em seguida será examinada, é a ineficácia de renúncia de herança, em determinadas condições; uma vez arrecadados pela massa, do monte renunciado, os bens suficientes à integral satisfação dos débitos do falido, não poderá este reclamar o saldo do beneficiário da renúncia, posto que entre ambos a renúncia permanece válida e plenamente eficaz; apenas em relação à massa falida, o ato de renúncia não produziu efeitos jurídicos.[8]
Os dois mecanismos de defesa ante a alienação fraudulenta em detrimento do crédito, que o direito brasileiro concebe, a fraude contra credores e a fraude de execução (ou criminalmente fraude à execução), pressupõem a ocorrência da insolvência, uma vez que acaso possua o devedor outros meios identificáveis com os quais possa pagar a dívida, obviamente não há como se reconhecer a fraude. A insolvência pode assim ser conceituada como a redução à condição de miséria do devedor, ou, mais tecnicamente, situação em que o ativo patrimonial é inferior ao passivo patrimonial, o que, empresarialmente, redunda na falência do devedor.
Normalmente é notório o estado de insolvência da parte, quando esta deixa de cumprir as obrigações assumidas, sendo, para os mais ortodoxos, sua ocorrência já no momento em que se deixa de adimplir à obrigação assumida. Em verdade esta posição é extremada pois nem sempre se pode presumir a insolvência todas as vezes em que o devedor não adimple seus pagamentos quando vencida está a dívida. Fato é que, quando o inadimplemento deriva de falta de recursos para que se dê, não há outro entendimento possível.
Neste sentido, em verdade, qualquer ato de alienação de bens neste estado de insolvência, em tese seria ato de fraude, mas a lei não interpreta desta forma, pois ela tutela, em absolutamente normais atos de mercancia a venda de bens ou sua gravação, no sentido de satisfação de obrigação dantes assumidas. O que caracteriza neste sentido a fraude, é, ante a resistência imotivada do credor em adimplir a obrigação assumida, desta dada ciência ao mundo seja através de protesto mercantil, seja através de interposição de medida judicial, a alienação ou gravação dos bens em manifesta tentativa de obstar ao pagamento da obrigação.
A segunda espécie deste gênero que se trata da fraude à execução, onde, na pendência de um processo judicial, o devedor citado ou não trata de desvencilhar-se de seus bens como meio a esvaziar a execução prescinde da ocorrência do consilium fraudis.
Aqui, por manifesta ofensa à dignidade da justiça, haja vista que se espera da parte o comportamento principiológico e, notadamente, a atenção à ética e à moral (conforme bem predispõem os artigos 14, 16 e 17 da lei processual civil), o legislador tratou logo de entender que sua ocorrência além de ensejar a ineficácia do ato jurídico ante o credor, ainda é inquinada de ato atentatório à dignidade da justiça nos exatos termos da lei processual em seu artigo 600. Não obstante o legislador penal também, dada a gravidade do tema, o tipificou como crime descrito no artigo 179 do Código Penal se lhe atribuindo a pena de detenção variável entre 6 meses e 2 anos eventualmente conversível em restritiva de direitos, na modalidade multa quando as circunstâncias assim o autorizem.
Na fraude de execução o devedor, já ciente da existência de processo contra si, portanto já parte, insiste na conduta negativa reduzindo-se à insolvência como forma precípua de objetar tanto o recebimento pelo credor como meio de desdenhar do sistema judicial. Por isso mesmo a lei é, aqui, mais severa não aceitando, simplesmente, que apenas o credor seja o prejudicado, aqui o sistema legal, conseguintemente o Estado é lesado, razão porque, inclusive a conduta é criminosa.
Nesta modalidade, ao praticar o ato, o credor, em manifesta insolvência, ofende ao juízo da causa impedindo sua jurisdição, daí porque o ato agora assume contornos de “rebeldia à autoridade estatal” onde “ alienar bens na pendência deste [processo judicial] e reduzir-se à insolvência significaria tornar inútil o exercício da jurisdição e impossível a imposição do poder sobre o patrimônio do devedor.[9]
Aqui, ocorrente os dois fatores a fraude se torna presumida e o ônus da prova desloca-se inversamente do exeqüente para o executado.
Nesta modalidade, quando o devedor executado fica reduzido a condição em que não possa pagar e adimplir à sua obrigação excutida, por ter alienado os bens que antes lhe poderiam servir à penhora, a lei autoriza a presunção de sua insolvência[10] e, por conseguinte, demonstrada esta ocorrência, o juízo prestador da tutela jurisdicional pode e deve declarar a ocorrência da fraude.
Aspecto peculiar, contudo, trouxe a reforma do estatuto processual civil na matéria, com a inserção da nova disciplina sobre execuções, vigente desde a edição da lei 11.232/05. É que, desde sua edição, é possível, desde logo, ao exeqüente procedimentos no sentido de gravar os bens do executado da ocorrência da existência da demanda, com efeito, o artigo 615-a da legislação emendada prevê a possibilidade de, ao momento da distribuição da demanda, extrair certidão comprobatória de seu ajuizamento e, de posse desta, averbá-la nos registros de imóveis, veículos, valores mobiliários e outros bens que a lei os determine, prevendo, ainda, expressamente, o parágrafo terceiro da texto em comento, estar em fraude de execução, o devedor que, após a averbação venha a alienar ou onerar, gravando, estes bens.
Talvez neste espírito, se possa explicar a edição pelo egrégio Superior Tribunal de Justiça, da súmula 375 em 30/03/2009 que diz “O reconhecimento da fraude de execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”, e que, ignorando, expressamente os dizeres do artigo 593 do CPC, bem como os ditames do artigo 615-A do mesmo diplome que assegura ao exeqüente, caso queira através do verbo poderá, a averbação da suso referida certidão de distribuição.
É de se ressaltar que com a inversão do ônus de provar a fraude, agora deslocado para o exeqüente, com o argumento de que se daria a proteção à “fragilidade do comprador que não verifica impedimento à aquisição na matrícula do imóvel e depois se surpreende com a desconsideração da venda”[11] é realmente frágil, porque é da regra costumeira do negócio imobiliário, exceto, talvez, naqueles de até 30 salários mínimos onde o artigo 108 do Código Civil vigente dispensa de publicidade o ato escritural. Isto porque na ocasião da lavratura da escritura pública a prática notarial costuma arquivar junto à notas, as certidões demonstrativas da solvência do vendedor, inclusive com arquivamento de certidões de distribuidor, cartório de protestos e negativas fiscais, somente sendo as mesmas dispensadas, por expressa declaração das partes.
O entendimento do STJ, contudo, após a edição da súmula, não está, de todo resolvido, conforme vemos nos seguintes acórdãos:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO. FRAUDE. CITAÇÃO. AUSÊNCIA. CPC, ART. 593, II. IMPROVIMENTO. I. Não se configura fraude à execução se a venda do imóvel pertencente à executada ocorreu antes da citação da devedora e do registro de penhora no cartório, não demonstrado, ainda, conluio com o adquirente. II. Agravo regimental improvido.”[12]
Coroa o entendimento de que a súmula 375 merece atenta leitura e adequada correlação com a realidade do caso concreto, o recente acórdão prolatado pela Min. Nancy Andrighi no Recurso espacial Nº 1.092.134 – SP (2008/0220441-3), onde salientou:
“PROCESSO CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FRAUDE PREORDENADA PARA PREJUDICAR FUTUROS CREDORES. ANTERIORIDADE DO CRÉDITO. ART. 106, PARÁGRAFO ÚNICO, CC/16 (ART. 158, § 2º, CC/02). TEMPERAMENTO. 1. Da literalidade do art. 106, parágrafo único, do CC/16 extrai-se que a afirmação da ocorrência de fraude contra credores depende, para além da prova de consilium fraudis e de eventus damni, da anterioridade do crédito em relação ao ato impugnado. 2. Contudo, a interpretação literal do referido dispositivo de lei não se mostra suficiente à frustração da fraude à execução. Não há como negar que a dinâmica da sociedade hodierna, em constante transformação, repercute diretamente no Direito e, por consequência, na vida de todos nós. O intelecto ardiloso, buscando adequar-se a uma sociedade em ebulição, também intenta – criativo como é – inovar nas práticas ilegais e manobras utilizados com o intuito de escusar-se do pagamento ao credor. Um desses expedientes é o desfazimento antecipado de bens, já antevendo, num futuro próximo, o surgimento de dívidas, com vistas a afastar o requisito da anterioridade do crédito, como condição da ação pauliana. 3. Nesse contexto, deve-se aplicar com temperamento a regra do art. 106, parágrafo único, do CC/16. Embora a anterioridade do crédito seja, via de regra, pressuposto de procedência da ação pauliana, ela pode ser excepcionada quando for verificada a fraude predeterminada em detrimento de credores futuros. 4. Dessa forma, tendo restado caracterizado nas instâncias ordinárias o conluio fraudatório e o prejuízo com a prática do ato – ao contrário do que querem fazer crer os recorrentes – e mais, tendo sido comprovado que os atos fraudulentos foram predeterminados para lesarem futuros credores, tenho que se deve reconhecer a fraude contra credores e declarar a ineficácia dos negócios jurídicos (transferências de bens imóveis para as empresas Vespa e Avejota). 5. Recurso especial não provido.”[16]
No corpo do acórdão esclarece a Nobre Ministra:
“Os recorrentes suscitaram ofensa ao art. 106, parágrafo único, do CC/16, alegando que, “para dar ensejo à anulação do ato caracterizado como fraudulento, é fundamental que tenha sido o crédito construído antes da realização do ato que se deseja anular” (fl. 1.571).
Dispõe a norma em debate que:
Art. 106 – Os atos de transmissão gratuita de bens, ou remissão de dívida, quando os pratique o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, poderão ser anulados pelos credores quirografários como lesivos dos seus direitos.
Parágrafo único – Só os credores, que já o eram ao tempo desses atos, podem pleitear-lhes a anulação.
O nosso ordenamento jurídico disciplinou, na regra em comento, o instituto da fraude contra credores, visando a coibir a prática, pelo devedor, de atos fraudulentos que acarretem a diminuição de seu patrimônio com o propósito de prejudicar seus credores. Contra essa artimanha utilizada pelo devedor, surgiu a ação pauliana ou revocatória, que busca, uma vez caracterizada a fraude contra credores, conservar no patrimônio do devedor determinados bens, garantia do cumprimento das obrigações assumidas por este.
É certo que da literalidade do dispositivo em questão extrai-se que a afirmação da ocorrência de fraude contra credores depende, para além da prova de consilium fraudis e de eventus damni, da anterioridade do crédito em relação ao ato impugnado.
No que concerne ao requisito da anterioridade do crédito, entendo, contudo, que a interpretação literal do art. 106, parágrafo único, do CC/16 não deve sempre prevalecer. Há de se realizar uma exegese teleológica, finalística desse dispositivo, perquirindo os reais objetivos vislumbrados pelo legislador.
Assim procedendo, verifica-se que a finalidade da regra contida no art. 106, parágrafo único, do CC/16, cuja essência foi mantida pelo art. 158, §2º, do CC/02, é coibir atos fraudulentos.
Não há como negar que a dinâmica da sociedade hodierna, em constante transformação, repercute diretamente no direito e por consequência na vida de todos nós. O intelecto ardiloso, buscando adequar-se a uma sociedade em ebulição, também intenta – criativo como é – inovar nas práticas ilegais e manobras utilizados com o intuito de escusar-se do pagamento ao credor. Um desses expedientes é a diminuição maliciosa do patrimônio, já antevendo, num futuro próximo, o surgimento de dívidas, com vistas a afastar o requisito da anterioridade do crédito, como condição da ação pauliana. E a esse cenário, criado por aqueles que, de má-fé, buscam alternativas para burlar o sistema legal vigente, não pode o Poder Judiciário ficar alheio.
A ordem jurídica, como fenômeno cultural, deve sofrer constantemente uma releitura, na busca pela eficácia social do Direito positivado.
Assim, aplicando-se com temperamento a regra contida no referido receito legal, entendo que, embora a anterioridade do crédito – relativamente ao ato impugnado – seja, via de regra, pressuposto de procedência da ação pauliana, ela pode ser relativizada quando for verificada a fraude predeterminada para atingir credores futuros, ou seja, o comportamento malicioso dos recorrentes, no sentido de dilapidarem o seu patrimônio na iminência de contraírem débito frente à requerida.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, nesta mesma esteira e em sentido adverso ao imposto pela súmula tem entendido que presentes os requisitos do artigo 593, há a viabilidade da decretação da fraude de execução, vejamos uma pequena amostra da jurisprudência dominante da corte bandeirante:
“Ação de Embargos de Terceiro – Recurso de Apelação – Ação improcedente – Recurso de apelação improvido – Encontram-se presentes os requisitos que, na forma das disposições constantes no artigo 593 do Código de Processo Civil, permitem o reconhecimento da fraude à execução – A constrição é devida podendo ser mantida – Ônus sucumbenciais corretamente distribuídos. “[17]
Onde, do corpo do aresto da Des. Teresa Cristina Cabral Santana Rodrigues dos Santos se extrai:
“Por sua vez, e, ainda que existam posições em sentido contrário, entende-se que, para que haja o reconhecimento da fraude, é necessária além da propositura da ação, a citação válida do devedor ou a presença de qualquer ato
que torne possível conclusão quanto ao conhecimento acerca da sua propositura e o conhecimento do adquirente quanto a sua existência, este última suficiente a elidir a presunção relativa de boa fé que milita a favor do adquirente do bem.
A hipótese vertente tem por norte e fundamento a existência, segundo alegação do apelado, de ação capaz, por ocasião da venda dos bens, de reduzir o devedor à insolvência, sendo complementarmente aduzida a falta de boa fé dos adquirentes por terem conhecimento da existência da ação por ocasião da aquisição.”
Ainda, no acórdão da lavra de José Tarciso Beraldo:
FRAUDE À EXECUÇÃO – Caracterização Hipótese em que a alienação do imóvel se deu após o ajuizamento da ação, com registro posterior à citação – Aplicação do disposto no inciso II do art. 593 do Cód. De Proc. Civil, uma vez não demonstrada a solvência do devedor – Agravo provido.[18]
Onde do corpo se extraem os seguintes ensinamentos:
“Note-se, ainda, que para se reconhecer a existência dessa fraude dois elementos são necessários, conforme estampado no inciso II do art. 593 do Cód. De Proc. Civil.
O primeiro é a existência da ação, porque é este ato que possibilita o conhecimento por terceiros de processos judiciais contra o alienante, em se tratando de informação constante do Serviço de Distribuição forense, registro público portanto, e ao qual devem recorrer aqueles interessados, como de ordinariamente acontece, na aquisição de bens, tanto mais em se tratando de imóvel, como no caso. A esse respeito, observe-se também que “O CPC em vigor não mais exige, para instauração da instância, a citação do réu e, portanto, o art. 593, inciso II, se satisfaz com a existência da demanda em curso. A ação se considera proposta, de acordo com a sistemática do Código, com o simples despacho da petição inicial. Havendo mais de um juízo, no mesmo foro, a distribuição, independentemente do despacho, basta para que a ação se considere proposta (RJTJESP 114/215)” (NEGRÃO, THEOTÔNIO, “Código de Processo
Civil e legislação processual em vigor”, 38a ed., Saraiva, pp. 744/745, nota n°10b ao art. 593).
O segundo, não menos importante, é existência de ação suficiente para reduzir o executado à insolvência, o que se presume, sempre, em favor do credor.
O magistrado cita ainda casos dos STJ:
“Para que se tenha por fraude à execução a alienação de bens de que trata o inciso II do art. 593 do CPC, é necessária a presença concomitante dos seguintes elementos: a) que a ação já tenha sido aforada;
b) que o adquirente saiba da existência da ação, ou por já constar do cartório imobiliário algum registro dando conta de sua existência (presunção ‘jure et de jure’ contra o adquirente), ou porque o exeqüente, por outros meios, provou que do aforamento da ação o adquirente tinha ciência; c) que a alienação ou oneração dos bens seja capaz de reduzir o devedor à insolvência, militando em favor do exeqüente a presunção xjúris tantum’” (RSTJ 111/216 e TJRT- 811/179) , IDEM, ibidem, nota n° 30)
Por fim, da lavra da Des. Zélia Maria Antunes Alves
“Agravo de Instrumento – Ação de execução de título extrajudicial – Instrumento particular de compra de quotas de pessoa jurídica, com confissão de dívida – Notas promissórias – Penhora de veículo de propriedade dos executados – Transmissão do bem posterior ao ajuizamento da ação e à citação dos devedores Redução dos devedores ao estado de insolvência – Fraude à execução configurada – Ineficácia da alienação reconhecida Aplicação do art. 593, II, do CPC – Recurso não provido.”[19]
A posição está longe de ser pacificada pois nem mesmo ante ao tribunal prolator da súmula 375, como pudemos ver acima, há unanimidade quanto á sua aplicação.
Em nosso entendimento parece, realmente que a eficácia da súmula somente pode ser aventada quando haja, no caso concreto, meios para seu emprego, ou seja, quando diante da razoabilidade seu emprego não se transforme na tutela do fraudador. É que a intelecção sumária da mesma, que pretendeu proteger aquele que, sem condições para uma arguta verificação se envolvia na compra de imóvel evicto, em suma generalização poderia dar a entender que quaisquer casos em que ocorra a venda de imóvel na iminência de ação judicial que pudesse conduzir o devedor à insolvência, seria tutelada, dando azo a que o comprador do imóvel não necessitasse de munir-se das cautelas recomendáveis e necessárias no tocante a isentar-se deste revés.
Assim, parece-nos bastante razoável que ante a alienação de um imóvel de pequena monta, do tipo em que os usos e costumes apontam para a desnecessidade de se obter retratos documentais da vida do vendedor, a súmula deva incidir com plena eficácia e nos casos de imóveis de maior vulto a mesma deva sofrer releitura, com sua mitigação diante do caso concreto, pois em razoável similaridade nenhum homem médio inserto na situação, deixaria de requerer as certidões atestatórias da inexistência de demandas que pudessem conduzir o alienante à insolvência, no foro do imóvel e no foro da residência do vendedor, como aliás a boa prática acautelatória sempre recomendou.
III. A fraude à execução no sistema registral público imobiliário
Neste tópico, conforme veio prolatar a Súmula 375 acima copiada, a partir do registramento da penhora ante o cartório de Registro de Imóveis, a ocorrência de alienação de bens no espírito de ação judicial, torna indiscutível a ocorrência da fraude, é o que depreendemos da sumária análise do artigo 240 da Lei 6.015/73, com renumeração pela lei 6016/73, senão vejamos:
“Art. 240 – O registro da penhora faz prova quanto à fraude de qualquer transação posterior.” (Renumerado do art. 245 com nova redação pela Lei nº 6.216, de 1975).
Ora o problema aqui é justamente o registramento da penhora que só se pode dar em fase avançada do processamento da execução, quando, não raro, o devedor, em manifesta má-fé, já procurou alienar todos os seus bens e notadamente os de raiz. Isto à despeito da regra do artigo 615-A, pois a lei sendo absolutamente clara informa o verbo registro (da penhora), não a averbação da existência da lide, como prevê o texto da lei processual.
IV. A fraude à execução na esfera penal:
Consiste em capítulo à parte e deveras interessante a capitulação da conduta fraudatória como tipo penal autônomo, previsto pelo legislador pátrio no artigo 178 do Código Penal Brasileiro, onde estipula no título VI:
“Fraude à execução
Art. 179 – Fraudar execução, alienando, desviando, destruindo ou danificando bens, ou simulando dívidas:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.
Parágrafo único – Somente se procede mediante queixa.”
O legislador aqui entendeu por bem punir criminalmente a conduta daquele que comete a fraude, isto em face do interesse público que assume a matéria, quando, com sua ocorrência, de forma mediata, sofre todo o aparelho judiciário e o sistema legal que, com sua prática, fica sem ação ante a tutela jurisdicional concedida àquele que necessita cobrar em juízo alguma dívida.
A objetividade jurídica é justamente a proteção imediata do patrimônio do credor e de forma mediata a administração da justiça.
Para os professores Fabbrini e Mirabete[20], “pressuposto indeclinável da existência da fraude à execução é uma ação civil em fase de execução ou uma ação executiva. Refere-se Noronha à ‘execução aparelhada’ e Bento de Faria à desnecessidade da execução ajuizada ou à iminência da execução, mas o tipo penal só existe quando houver fraude à execução. Já se tem decidido, porém, que basta haver uma lide civil com a citação do devedor para o processo, quer de conhecimento, quer de execução.”
Para os mesmos autores logo adiante:
“Constitui fraude à execução o ato do executado que, após a penhora de seus bens, os vende à terceiro, quer seja o agente depositário, quer não. Já se decidiu, porém, pela inexistência do crime quando é vendida coisa que fora compromissada anteriormente à penhora. Desnecessário, porém, para a configuração do delito, que haja penhora efetiva, bastando, como já se afirmou, ter sido efetuada a citação válida (art. 219 do CPC).”
O crime em questão, que se consuma com a alienação, desvio, destruição da coisa, dano ou com a simulação de dívida, inclusive de esfera trabalhista, ou seja com qualquer conduta que vise a impedir o exercício da excução da dívida pela alienação judicial do bem do devedor, admite tentativa quando o agente, imbuído neste animus intenta o ato, mas não o consegue realizar por motivo alheio à sua vontade.
A ação penal atribuída pelo legislador à espécie penal é de cunho penal privado, contudo, quando a coisa é alienada em detrimento da administração pública que seria autora da execução que deu margem à ocorrência da fraude, a lei 8.699 de 27/08/93, acrescentando o parágrafo segundo ao artigo 24 do CPC estatui que a ação será penal pública todas as vezes em que o crime for praticado em detrimento do patrimônio ou do interesse da União, Estado e Município, vejamos:
“Art. 24. Nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, mas dependerá, quando a lei o exigir, de requisição do Ministro da Justiça, ou de representação do ofendido ou de quem tiver
§ 1o No caso de morte do ofendido ou quando declarado ausente por decisão judicial, o direito de representação passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão. (Parágrafo único renumerado pela Lei nº 8.699, de 27.8.1993)
§ 2o Seja qual for o crime, quando praticado em detrimento do patrimônio ou interesse da União, Estado e Município, a ação penal será pública.” (Incluído pela Lei nº 8.699, de 27.8.1993)
Em que pese o entendimento da maior parte da doutrina repousar na qualidade privada da ação penal no caso, entendemos que não cabe dúvida de que a ação aqui, sempre será pública, uma vez que, nos exatos termos do parágrafo segundo do artigo 24 do Código de Processo Penal.
É que, invariavelmente, o sujeito passivo da ação penal é, ainda que mediatamente, o Estado na forma da administração da justiça, pois a cada vez que o crime se dá, ocorre inexoravelmente, uma ofensa ao exercício da jurisdição pelo Juízo, que apesar de escorreito se vê inútil pela imprestabilidade da providência concedida judicialmente haja vista não haver mais, por esperteza e vilania do devedor, bem a ser constrito e/ou alienado judicial ou administrativamente nos termos da lei. O que se dá é o esvaziamento da possibilidade de o credor ver sua demanda satisfeita e ao Estado e aqueles funcionários que na prestação jurisdicional empregaram seus esforços, resta se conformar com a inutilidade de seus serviços.
V. Conclusões:
Com as possibilidades que a lei assegura à prestação judiciária, a satisfação da tutela jurisdicional não se pode ver frustrada porque a parte devedora, que litiga em manifesta irresponsabilidade e mesmo com fundada má-fé, não pode ser agraciada pelo leviano ato que é livrar-se do seu patrimônio que, antes foi garantia do crédito, na execução das obrigações oriundas da insatisfação deste.
Para tanto a interpretação jurisprudencial deve caminhar no sentido de oferecer a tutela plena ao credor da obrigação, como mecanismo último de distribuição de justiça, cuja função social reclama do aplicador do direito a avaliação coerente e racional do caso concreto no sentido da releitura da súmula 375 do Colendo Superior Tribunal de Justiça, sob pena de se esvaziar a sensação de justiça que a parte reclama ao ingressar em juízo. Aliás a decisão recente da ministra Nancy Andrighi, ilustra este entendimento.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, cuja dominante interpretação caminha neste sentido, como vimos de ver nos pequenos excertos colacionados a este artigo, parece ter adotado a corrente tecnicamente mais correta, onde se busca, na aplicação concreta, a avaliação da leviandade e sua robusta punição com os instrumentos legais disponíveis.
A esfera penal, que se torna, no caso e efetivamente, um eficaz meio de convencimento ao devedor, que deve se manter em estrita obediência aos deveres de ética processual, insertos nos artigos 14, 15, 16 e 17 do Código de Processo Civil, deve, em nosso entendimento ser utilizada como meio público de se coibir à ocorrência da fraude à execução, eis que a Administração Judiciária, seja ela Estadual ou Federal, se vê aviltada todas as vezes em que a fraude ocorre.
Advogado militante em direito empresarial e tributário
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