Resumo: O presente trabalho tem como foco a caracterização da obsolescência programada como crime contra as relações de consumo. Trata-se de uma prática mercadológica em que os fornecedores, propositalmente, encurtam a vida útil de um determinado produto que simplesmente deixa de funcionar mesmo estando em boas condições. O mercado é movido pela insatisfação do consumidor, o qual sempre está em busca do produto mais moderno ou mais funcional. O Estado confere ao consumidor uma proteção especial através da Lei 8.078 de 1990, ao elencar em seu texto algumas infrações contra as relações consumeristas. Muito embora a prática da obsolescência fomente a economia ao gerar mais empregos, devido à produção ininterrupta por parte dos fornecedores, trata-se de um ilícito cometido pelos produtores. Concluímos que, não obstante não seja considerada crime pela lei, a obsolescência é uma prática nociva ao consumidor.
Palavras-chaves: Obsolescência Programada; Crimes; Relações de consumo
Abstract: The present work focuses on the characterization of programmed obsolescence as a crime against consumer relations. It's about a marketing practice that the suppliers purposely shorten the useful life of a product that simply stops working despite being in good condition. The market is moved by the consumers dissatisfaction which are always looking for the most modern products or more functional. The government provides special protection to the consumer through Law 8078 of 1990, which lists in its text some infractions against consumer relations. Although the obsolescence practice encourage the economy to create more employments, due to continuous production from suppliers, it's about an unlawful act committed by producers. We conclude that, although it is not considered a crime by law, obsolescence is a practice harmful to the consumer.
Keywords: Programmed Obsolescence; Crimes; Consumer Relations
1 INTRODUÇÃO
Consumir está no cerne do ser humano. Durante a antiguidade humana, não existia a figura do consumo através da compra. Todavia, significava usar os bens naturais disponíveis como forma de sobrevivência. Da Era antiga para a contemporânea, o mundo mudou bastante, ficou globalizado, integrado e, com isso, ficou muito mais fácil e cômodo consumir.
Desde a Revolução Industrial iniciada no Reino Unido em meados do século XVIII, o mundo passou a consumir cada vez mais. O advento da internet auxiliou ainda mais nesse crescimento ao permitir a conclusão de negócios entre pessoas de qualquer lugar no mundo. Tal consumo desenfreado incide diretamente na qualidade dos produtos.
Entretanto, o bônus sempre traz o ônus. E foi devido a essa explosão consumerista ao redor do globo que muitos fabricantes passaram a se aproveitar da vulnerabilidade e da hipossuficiência do consumidor, praticando atividades ilícitas.
O direito privado clássico, juntamente com o direito público, como se sabe, por não estar preparado para regular relações de produção e consumo de massa, dava ao consumidor um mero esboço de proteção contra os abusos praticados no mercado. Em decorrência dessa inadequação, particularmente do direito civil, ao consumidor que almejasse se proteger das condutas dos fornecedores restava, normalmente, apenas o recurso ao direito penal tradicional, igualmente moldado para reger relações pessoais e não relações de massa.
O Código de Defesa do Consumidor, instituído pela Lei nº 8.078/90, criou um sistema de responsabilidade de natureza civil, administrativa e penal. Nos seus artigos 61 a 80 criminaliza condutas, catalogando-as como infrações penais contra o consumidor.
Algumas dessas condutas são facilmente perceptíveis, como é o caso da infração prevista no artigo 67 do Código, que trata da publicidade enganosa ou abusiva. Outras, por sua vez, não estão explicitamente catalogadas no diploma legal, são consideradas, de igual maneira, práticas ilícitas às relações de consumo. Uma delas é a obsolescência programada, que será objeto de nosso estudo.
Quando se fala em obsolescência programada, fala-se no fato de os bens de consumo serem projetados para funcionar somente durante um curto espaço de tempo. Trata-se de uma estratégia do mercado que visa garantir a continuidade do consumo através da insatisfação, de modo que os produtos adquiridos parem de funcionar ou tornem-se obsoletos em um curto espaço de tempo, devendo ser obrigatoriamente substituídos, de tempos em tempos, por mais modernos que satisfaçam o desejo do consumidor.
A curto prazo, os produtos, antes projetados e feitos para durarem por bastante tempo, hoje, propositalmente, já são criados para terem uma vida útil bem escassa. A longo prazo, a prática da obsolescência gera milhares de toneladas de lixo tóxico altamente nocivos ao planeta.
Nesses estudo, buscaremos mostrar os malefícios dessa atividade que, muito embora não esteja no rol dos crimes contra do consumidor previsto na Lei 8.078/90, também trata-se de uma prática ilícita que deve ser combatida.
2 DOS CRIMES DE CONSUMO
O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990) estabelece, em seu Título II, do art. 61 ao 80, um rol de crimes contra os consumidores. Cabe salientar que este rol não é taxativo, pois o art. 61 é claro ao dizer que constituem crimes contra as relações de consumo prevista no código, sem prejuízo do disposto no Código Penal e leis extravagantes. Para evitar qualquer tipo de confusão, temos:
“O Código Penal e a lei extravagante continuam em vigor, com efeito subsidiário. Vale dizer: se determinada hipótese fática for simultaneamente regida por um dispositivo do CP e por um outro deste Título II, prevalecerá este sobre aquele.” (PAULO JOSÉ DA COSTA JR. E FERNANDO JOSÉ DA COSTA, Crimes contra o consumidor, 2. ed., Atlas, p. 3-4)
Em especial, o art. 66 nos indica que a prática da obsolescência programada é ilícita quando nos afirma que constitui crime contra as relações de consumo "fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos e serviços".
Levando-se em consideração que, na prática da obsolescência, o fornecedor não informa que o produto já tem um período de funcionamento previamente determinado independente de estar em perfeito estado de conservação ou não, temos:
“O silêncio do fornecedor, sobre aspecto relevante do produto ou serviço, que para alguns foi equiparado a uma alegação, também pode fazer com que se incida no verbo "omitir". Em outras palavras: o fornecedor não pode silenciar quando da informação ao consumidor, porque isso equivale a omitir”. (ANTONIO CEZAR LIMA DA FONSECA, Direito penal do consumidor, 2. ed. Livraria do Advogado, p. 162)
Vale ressaltar que não se deve confundir o artigo supracitado com a prática da publicidade enganosa, prevista no artigo 67 do mesmo diploma legal.
Os crimes de consumo têm uma característica bem peculiar, qual seja, não necessitar que ocorra o dano efetivo para que seja caracterizada a conduta criminosa. Para melhor explicar, Leonardo de Medeiros nos ensina com bastante propriedade:
“O direito penal do consumidor busca não somente reprimir condutas indesejáveis e causadoras de danos, mas, sobretudo, prevenir a ocorrência de tais condutas de forma a evitar o dano, amparando com mais eficiência os consumidores (princípio da precaução). As condutas tipificadas no sistema consumerista constituem “crimes de perigo”, uma vez que não constitui elemento constitutivo do delito a ocorrência do efetivo dano ao consumidor. Basta a simples manifestação da conduta para caracterizar a ilicitude” (LEONARDO DE MEDEIRO GARCIA, Direito do consumidor, 4. Ed., Impetus, p. 317).
3 A OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA
Como já dito anteriormente, a obsolescência programada é um fenômeno mercadológico de diminuição da vida útil de alguns produtos. Esta medida foi tomada para promover a movimentação da economia mundial durante a década de 1930, que saía da crise dos anos 1920. Em um ato desesperado dos fabricantes da época, principalmente os do ramo de automóveis e eletroeletrônicos, decidiram, estrategicamente, diminuir o ciclo de vida útil dos produtos, de modo a garantir um consumo contínuo através da insatisfação dos consumidores.
Essa prática basicamente se aplica toda vez que os fabricantes produzem mercadorias que, artificialmente, tenham, de alguma forma, sua durabilidade diminuída do que originalmente se espera. Como efeito, os consumidores são obrigados a descartar os produtos adquiridos em um prazo muito menor e a substituí-los por novos, que muito provavelmente também tiveram sua durabilidade alterada. O objetivo é bastante claro, fomentar a economia através das produções e consumos contínuos.
Muitas vezes, os produtores introduzem a obsolescência em sua estratégia de marketing, com o objetivo de gerar um volume de vendas duradouro, reduzindo o tempo entre compras sucessivas. Um exemplo poderia ser o de uma impressora, que é deliberadamente projetada para deixar de funcionar após uma certa quantidade de impressões, independente de estar bem conservada ou não. A prática de obsolescência planejada é também considerada por muitos consumidores como um sinal de comportamento antiético.
Seguindo os mesmos moldes da programada, a obsolescência perceptiva é uma forma de reduzir a vida útil dos produtos que ainda são perfeitamente funcionais e úteis. Os fabricantes lançam produtos com aparência inovadora e mais agradável, além de pequenas mudanças funcionais, dando aos produtos antigos um aspecto de ultrapassados. Dessa forma, induzem o consumidor à troca. Um bom exemplo são os aparelhos celulares e os automóveis.
Até poderia ser dito que essa estratégia seria arriscada devido a enorme concorrência no mercado, o que levaria os consumidores a procurar fabricantes concorrentes. Contudo, se levarmos em consideração o mundo atual globalizado, infelizmente essa afirmação não pode ser dita, visto que, em quase todos os setores de fabricação, a prática da obsolescência programada é realizada.
Devido a esse consumo em massa, o que obviamente advém de um processo de produção de proporções grandiosas, muitos produtos em um bom estado de conservação são descartados pelos consumidores como se não fossem mais utilizáveis. Esses produtos acumulados contém substâncias danosas ao meio ambiente e, mesmo assim, quase não é feito trabalho de reaproveitamento dos mesmos, ficando expostos a todas as condições climáticas possíveis sem o devido cuidado.
Não obstante esse sério problema ambiental, o aumento produtivo também traz benefícios no que tange ao fomento econômico. Não se pode negar o fato de que, devido ao crescimento da demanda, toda a cadeia produtiva teve de ser expandida. Com isso, mais empregos são gerados, causando impacto direto na economia como um todo. Para isso, basta se tomar como exemplo o grande número de shopping centers que foram criados desde a década de 1950 até atualmente.
4 CONCLUSÃO
Há alguns anos, quando uma família comprava geladeira, TV, celular etc, existia a confiança de que o bem duraria muitos anos, às vezes, a vida toda, apenas precisando de pequenos reparos ao longo do tempo.
Atualmente, o consumidor deve ficar mais que satisfeito se o "bem durável" ultrapassar, em média, três anos de uso. É difícil entender como essa moderna tecnologia funciona, pois os aparelhos são cheios de funcionalidades surpreendentes, design elaborado, mas simplesmente deixam de funcionar em um curto prazo e o preço do seu conserto é tão alto que não convém repará-lo, mas sim jogar fora e comprar um novo.
Existe um desgaste natural dos produtos e todos sabemos que isso é normal. Porém, se este produto é propositalmente planejado para parar de funcionar ou se tornar obsoleto em um curto período de tempo, estamos diante de um prática industrial que deve ser fortemente combatida.
Conforme o produto é usado, normalmente ele sofrerá desgastes que o tornarão antigo com o passar do tempo. O que não é natural é que o próprio fabricante planeje o envelhecimento de um produto, ou seja, programar quando determinado objeto vai deixar de ser útil e parar de funcionar, apenas para aumentar o consumo.
Apesar de todo o avanço tecnológico que resultou na criação de uma diversidade de materiais disponíveis para produção e consumo, hoje os produtos, especialmente os eletrodomésticos, são os piores no quesito durabilidade do que há 50 anos. Os produtos já são fabricados para não durar. Por esta razão, o consumidor sofre para dar a eles uma destinação final adequada, e muitas vezes não consegue, além de se ver obrigado a comprar outro produto.
Advogado. Bacharel em direito pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Aluno do curso de Pós-graduação em Direito do Consumidor e Responsabilidade Civil pelo Sentido Único Cursos
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