Sumário: 1. Introdução. 2. Características. 3. História e desenvolvimento.
1. Introdução.
Para J. Cretella Jr. desvio de poder consiste no afastamento do espírito da lei.[1]
O presente estudo visa a penetrar na concepção deste instituto do direito administrativo que, mesmo sendo de difícil prova, pois é manifesto na intenção de natureza mais íntima do agente, apresenta-se no cotidiano da Administração Pública brasileira e mundial e que tantos danos pode causar a todos.
A utilização do pensamento de Cretella Jr. expresso linhas acima quer demonstrar a natureza mesmo do desvio de poder e sua dificuldade de prova, afinal, nada se configura mais dificultoso do que se identificar o espírito de alguma coisa, principalmente o espírito da lei.
O estudo também leva em conta os indícios de desvio de poder sedimentados na doutrina e jurisprudência nacional e estrangeira, haja vista a semelhança das realidades em ambos os contextos.
2. Características.
Fundamento para que atos administrativos sejam anulados, o desvio de poder exige uma investigação a respeito da legalidade do ato e dos móveis[2] que inspiraram o seu autor para saber se são os que “segundo a inspiração do legislador, deveriam, realmente, inspira-lo”.[3]
Tema atual e de grande importância no mundo jurídico, é freqüentemente reconhecido pelos tribunais.
A própria expressão desvio de poder não é reconhecida como sendo a única que concerne ao assunto. Outras como excesso de poder, abuso de poder ou desvio de finalidade também são conhecidas.
Desvio significa afastamento, mudança de direção ou distorção; poder é faculdade, competência a respeito de um assunto específico.
A expressão desvio de poder significaria, assim, afastamento na prática de determinado ato; “poder exercido em sentido diferente daquele em vista do qual fora estabelecido”[4]
A autoridade que pratica determinado ato tem competência para tal, mas, sobretudo, ao fazê-lo, comete erro ao afastar-se do fim legal para buscar finalidade distinta da visada, comete desvio de poder.
Dotado de conteúdo e noção de difícil precisão, o desvio de poder tem tido, na maioria das vezes, uma conotação na qual o elemento fim é colocado em relevo, destacando-se, assim, a natureza do instituto que se caracteriza pelo afastamento da finalidade. Aqui se destaca o caráter teleológico do instituto pela realidade de que o fim perseguido pela autoridade administrativa é básico para julgar seu autor.[5]
No ato administrativo com desvio de poder, a autoridade administrativa “usa de sua competência, de acordo com as formas prescritas em lei”, (…) “para exercer o poder que lhe é posto nas mãos”, não, entretanto, “para perseguir” o fim previsto, mas para “fim diverso daquele que a lei lhe conferira”.[6]
O autor paulista considera o desvio de poder como defeito do fim. Lembra que fim ou finalidade é o alvo que deve ser atingido pelo ato administrativo. O fim será perfeito ou viciado. O administrador público só deve editar atos administrativos fundados em fins de interesse coletivo, fins de interesse público.[7]
Desvio de poder seria, então, a denominação recebida pelo instituto do direito administrativo, dada ao ato administrativo marcado por defeito relativo à finalidade ou fim.[8]
Celso Ribeiro Bastos esclarece que finalidade é o objetivo a ser alcançado pelo ato. No direito administrativo, a finalidade está ligada à realização de um interesse público ou social. Entretanto, a finalidade do ato administrativo deve corresponder ao conteúdo indicado, explícita ou implicitamente, pela lei.[9]
São suas palavras: “O uso de um ato para alcançar uma finalidade que não lhe é própria caracteriza o desvio de poder ou desvio de finalidade”.
A ocorrência do desvio de poder ou finalidade se dá quando o agente, mesmo que na sua competência, utiliza-se do ato para lograr finalidade alheia à sua natureza. Em outras palavras, há desvio de poder quando o agente utiliza sua competência de maneira errônea, ou seja, não faz bom uso de sua competência para a prática de atos administrativos.
O falecido autor paulista já dizia que o desvio de poder ou de finalidade poderia ser manifestado pela busca de fim distinto ao interesse público, quando o agente procurasse, ao realizar o ato, beneficiar a si próprio ou a terceiros. Também se caracterizaria desvio de poder a busca de finalidade de interesse social mas de natureza alheia à do ato. São exemplos de ato com desvio de poder ou de finalidade que devem ser anulados, respectivamente, a seguir:
I – a outorga de uma permissão sem interesse coletivo;
II – o agente público remove um funcionário com o objetivo de puni-lo. O ato de natureza punitiva é a demissão, não a remoção.
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello explica que não é lícito à Administração Pública se desviar dos fins do ato administrativo. O desvio dos fins do ato administrativo ocorreria quando pratica ato de sua competência objetivando-se fim distinto do legalmente considerado como próprio da sua atribuição. Caberia aqui perscrutar a intenção do agente público, com vistas a se verificar se houve conformidade com o interesse geral ou, inversamente, se se prendeu a razões menores, pessoais e, ainda, “se, em praticando o ato no interesse geral, o realiza em atenção a razões estranhas à finalidade por que lhe foi outorgada a competência para praticá-lo.[10]
O desvio de poder ocorre quando o agente público, por exemplo, anula concorrência pública para impedir a sua adjudicação a favor de quem quer prejudicar, por animosidade política, ou então, quando, no exercício do poder de polícia de construção, que, basicamente objetiva a segurança e a proteção à saúde dos que nela vão habitar, se nega a aprovar a planta por razões puramente estéticas.
O desvio de poder é restrito aos casos de exercício por órgão da Administração da sua competência em desrespeito ao fim que essa competência está sujeita, como uma conseqüência do direito objetivo.
O agente que pratica desvio de poder excede a sua competência para a prática de determinado ato. Pratica tendo em vista fins diferentes dos pensados pela ordem jurídica. O exame que deve ser feito aqui é concernente à intenção do agente.
Castro Nunes explica: “Vai até o “détournement”, isto é, ao desvio de poder, a aplicação da lei em contrário à razão de ser da disposição ou aos fins visados pelo legislador”.[11]
Onofre Mendes Júnior ensina: “Se o administrador se desvia dos resultados visados pela lei com a prática de ato, pratica ato ilegal, consistente em desvio de poder. Se o interesse, cuja regulamentação pertence à Administração em seu sentido genérico, é dessa natureza, isto é, público, não será possível tolerar que o poder administrativo se deturpe, ou se desvie, transformando em pessoais, ou particulares, os resultados da ação administrativa. Tal finalidade, de caráter privado, de forma alguma pode ser visada pelas leis que orientam a ação administrativa”.[12]
Caio Tácito diz o seguinte: “Os poderes concedidos pressupõem fim explícito ou implícito a que se dirige a norma legal. Se o agente não observa esse caminho normal de competência, desviando-a de seu objetivo, praticará ilegalidade a ser declarada pelo órgão judicial. Haverá desvio de poder, ou seja, a aplicação da competência para fim estranho àquele estabelecido em lei”.[13]
Vitor Nunes Leal menciona o desvio de poder como espécie do “excès de pouvoir”.[14]
Observações finais.
Toda sociedade politicamente organizada conta com um conjunto de leis que regem o seu dia a dia. Parte da sua estrutura, os agentes públicos estão sujeitos à lei e aos demais princípios que regem a mesma. Princípio fundamental ao Estado de Direito, o princípio da legalidade traz em si a exigência da impessoalidade ou finalidade, conhecidas como sinônimos de aplicação da lei para o fim público, afastados os fins e interesses individuais.
O desvio de poder ou de finalidade é justamente a utilização de uma competência legalmente atribuída a um servidor para fins particulares ou distintos dos legalmente consagrados.
3. História e desenvolvimento.
Marcel Walline indica um início excessivamente tímido do Conselho de Estado Francês. Certa vez, ainda, o mesmo Conselho declarou que não lhe competia investigar os motivos das decisões tomadas pelos maires.
A primeira vez que anula uma decisão municipal por desvio de poder só ocorreu em virtude de uma carta expressa do Maire notificando a suspensão, da qual concluía-se que agira com finalidade diversa da qual reclamavam os interesses que lhe foram confiados.[15]
Gaston Jèze já advertia, antes talvez de 1949, ano em que publicou os seus Princípios generales del derecho administrativo, que as medidas administrativas careciam de resguardo contra abusos que poderiam verificar-se por qualquer pretexto por parte dos particulares. De forma contrária, qualquer ato administrativo correria o risco de ser impugnado por motivos escusos, de chicana política e outros. “A pretexto de assegurar o bom funcionamento dos serviços públicos, correr-se-ia o perigo de perturba-los”.[16]
Vittorio Emanuele Orlando indica as origens e o desenvolvimento do desvio de poder, no campo do direito administrativo, ao direito francês, e, mais especificamente, ao seu Conselho de Estado.[17]
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello fala da teoria do desvio do poder, criada pela jurisprudência do Conselho de Estado de França, por volta de 1840, e acolhida pelo direito administrativo de outros países”.[18]
Segundo a jurisprudência do Conselho de Estado Francês, há desvio de poder por ato estranho ao interesse geral, na medida de polícia de segurança, que proíbe procissões nas ruas, se por objetivos anticlericais; e, ainda, por ato diverso do fim que a lei atribuíra ao ato, na medida da polícia de costumes, que veta os banhistas de trocarem de roupa senão nas cabines municipais ali colocadas, com objetivo de receita, em vez de decência pública.[19]
O conceito de desvio de poder elaborado há muito tempo na França, pelo Conselho de Estado, mediante lenta e progressiva evolução, reflete notável conquista em razão de permitir profunda penetração na raiz do pensamento do agente da Administração, disfarçado sob o manto da legalidade.[20]
Medauar lembra a origem francesa da teoria do desvio de poder pela grande importância que a mesma representou para se direcionar o exercício do poder discricionário aos fins do interesse público, sejam estes implícitos ou explícitos, em razão dos quais esse poder foi conferido ao agente administrativo. Para a autora, os poderes atribuídos aos agentes visam ao atendimento do interesse público pertinente à matéria em que esses agentes atuam. Ditos poderes não são destinados à realização de interesses particulares e nem são instrumentos de represália, vingança ou favorecimento próprio ou alheio. Um exemplo seria o da utilização do poder de expropriar em represália a declarações na imprensa por alguém.[21]
José Cretella Jr. destaca que o desvio de poder é resultante de construção pretoriana do Conselho de Estado Francês, mas que já é aplicado no Brasil.[22]
Os mais antigos casos de desvio de poder, no Brasil seriam de 1940. Eis os exemplos trazidos pelo autor:
I – “Certa autoridade municipal decretara desapropriação de cemitério particular, abrangendo no mesmo ato administrativo templo evangélico anexo. Na aparência, o ato era legal, preenchendo os requisitos de fundo e forma indispensáveis para ser válido, mas a prova demonstrou que o fim alcançado era diverso. A autoridade municipal, embora competente, usara os poderes que a lei lhe conferia para objetivos inconfessáveis, disfarçados sob a capa da legalidade. Eram, no fundo, duas facções religiosas que estavam em choque. Demonstrou o exame da prova que o cemitério particular já estava interditado por lei estadual, porque distava menos de 18 quilômetros do cemitério público mais próximo e, por isso, não podia ser desapropriado”;
II – “Caso interessante ocorreu, também, num município, cujo prefeito, a pretexto de que as finanças municipais periclitavam pelo excessivo número de servidores, demitiu funcionário público nomeado em caráter efetivo. Caracterizou-se a figura em questão quando, alguns dias depois, dezenas de nomeações foram feitas, sendo que algumas para cargos exatamente da mesma natureza daquele de que fora afastado o servidor demitido. Descobriu-se que o prefeito era inimigo pessoal desse funcionário. Houve, nesse caso, portanto, desvio de poder[23].[24]
A doutrina e a jurisprudência brasileira tem anulado muitos atos administrativos com desvio de poder.[25]
Doutor em direito administrativo pela UFMG, advogado, consultor jurídico, palestrante e professor universitário. Autor de centenas de publicações jurídicas na Internet e do livro “O Servidor Público e a Reforma Administrativa”, Rio de Janeiro: Forense, no prelo.
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