No início do século XVII, muitos dos escravos que conseguiam fugir das fazendas e engenhos passaram a viver em lugares isolados, chamados quilombos, que ficavam em montanhas ou em terras afastadas dos centros urbanos, de difícil acesso. Seus habitantes (e hoje seus descendentes) ficaram conhecidos como quilombolas. Quilombo é uma palavra de origem africana que significa “lugar de pouso” ou “acampamento” de caravanas. No Brasil, o termo passou a designar comunidades de escravos fugitivos.
O tempo passou, a escravidão deixou de existir em 1888 e as terras usadas como esconderijos dos escravos foram vendidas como se nunca antes tivessem sido habitadas. Foi o que aconteceu também durante o período republicano, quando o termo “quilombos” desapareceu da base legal brasileira.
Em uma operação de inversão de valores – em relação à legislação colonial -, os quilombos ressurgiram na Constituição Federal de 1988 (artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), na categoria de acesso a direitos, dando aos quilombos o caráter de “remanescentes”. Essa inversão de valores também serviu para estabelecer e a organizar o movimento quilombola, que a partir da construção de identidade étnica reivindica o direito a sua terra.
O que antes foi classificado como crime passou a ser considerado como categoria de autodefinição, para reparar danos e dar acesso aos direitos. Vale lembrar que os direitos aos territórios das comunidades, uma vez tituladas, se tornam inalienáveis e coletivos.
Com o artigo 68 da Constituição Federal e as legislações correlatas [artigos 215 e 216 da CF; Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT); Decreto 4.887, de 2003; e Decreto 6.040, de 2007], as comunidades quilombolas superaram as identificações de grupos sociais com características morfológicas. Portanto, não podem ser identificadas pela permanência no tempo de seus signos culturais ou por resquícios que venham a comprovar sua ligação com formas anteriores à existência.
Nesse processo, é necessário, acima de tudo, que haja bom senso e embasamento jurídico para a tomada de decisões. O bom senso sugere que não podem ser tolerados “abusos” na demarcação. Em lugares onde nunca existiram quilombos, estão aparecendo afrodescendentes reivindicando áreas quilombolas. Para evitar qualquer tipo de prejuízo às partes, é preciso que o governo e seus funcionários sejam mais ágeis. Os órgãos públicos precisam ter condições para determinar onde estão os verdadeiros quilombos e condições para conduzir e fiscalizar o processo de desapropriação.
É óbvio que, pela Constituição, os quilombolas têm direitos a reaver suas terras. Mas também é preciso deixar claro que as pessoas que compraram essas terras e as registraram nos órgãos públicos têm direito à indenização justa pela desapropriação e por danos morais em razão de muitas vezes terem construído ali a casa ou negócio dos seus sonhos.
De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), até o ano de 2006 cerca de 100 das 3.554 comunidades quilombolas foram identificadas pelo Governo Federal, na Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, e possuem o título.
Advogada, do escritório Ribeiro do Valle Associados e autora do livro “Terras de Marinha – Taxa de Ocupação. Devidas ou indevidas, como saber?”
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