Ensaio sobre uma teoria geral dos atos de comunicação no processo penal brasileiro: à luz da teoria da ação comunicativa habermasiana

Sumário: 1.Introdução; 2. Dos pressupostos e dos requisitos dos atos de comunicação; 3. Das finalidades e dos fundamentos dos atos de comunicação; 4. Do destinatário do ato de comunicação; 5. Da Teoria da Ação Comunicativa Habermasina; 6. A Política Criminal, a Criminologia e a Constituição.


Resumo: O presente trabalho busca explicitar os aspectos gerais e mais abrangentes atinentes aos atos de comunicação, procurando oferecer parâmetros para uma teoria geral dos atos de comunicação, fixando características em comum entre as diversas modalidades de atos dessa natureza. Sendo assim, fixa-se os pressupostos e requisitos dos atos de comunicação, bem como os seus fundamentos e finalidades. No momento seguinte, então, é feita uma breve abordagem da Teoria da Ação Comunicativa proposta por Habermas, com o escopo de que esta sirva de espeque para a construção da teoria geral do atos de comunicação no processo penal. Por fim, os atos de comunicação são analisados à luz da Política Criminal, da Criminologia e da Constituição, com o intuito de que sejam estabelecidas algumas conclusões sobre esses.


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Résumé: Firstly, this essay looks forward to indicate general aspects about communication acts and to establish parameters for a general theory of communication acts, through the identification of common characteristics among this kind of act.
After that, there is a brief approach of the Communication Action Theory proposed by Habermas, which were used as a support for the construction of a general theory of the communication acts in penal process. Finally, communication acts were analyzed under de light of Criminal Policy, Criminology and Constitution, what made possible the establishment of some conclusions about the theme.


Palavras-chaves: 1. Ensaio de uma Teoria dos Atos de Comunicação; 2. Teoria da Ação Comunicativa; 3. Aspectos Político-Criminais e Criminológicos.


1. Introdução.


A citação, a intimação e a notificação são atos de comunicação no processo penal[1]. E isso, certamente, não representa para o leitor mais informado acerca do tema qualquer novidade. Pois bem. Sendo assim, para que possamos analisar, ainda que em linhas gerais esses atos de comunicação, impõe-se de imediato o dever de entendê-los como tais, ou seja, de entendê-los como atos de uma comunicação que venha a ocorrer dentro do processo.


Nessa nossa breve introdução em torno dos atos de comunicação, esclarecemos, desde já, ao leitor, que não temos em mira os atos de cientificação que venham a ser realizados antes de se poder afirmar categoricamente que existe processo. Vale dizer, temos em mente apenas os atos de comunicação ocorrentes dentro do processo, dito de outra maneira, já tendo se constituído perfeitamente o processo.


Feita tal observação, pensamos que a citação, a intimação e a notificação, para que sejam entendidas como atos de comunicação precisam obedecer ao que chamamos de núcleo essencial do ato de comunicação. Mas o que seria o núcleo essencial do ato de comunicação? A nosso ver, seria o núcleo em comum que todo ato de comunicação deve possuir. Esse núcleo é constituído pelos seguintes elementos: a) emissor; b) receptor; c) informação; e d) instrumento utilizado para comunicação.


O emissor é sempre, a nosso ver, o Estado-Juiz. O receptor é o réu, o autor, a testemunha, o perito, o intérprete e qualquer outra pessoa que interesse ao processo. A informação é o conteúdo que se quer comunicar por meio da citação, da notificação ou da intimação. Tal informação pode ser alusiva a fato novo, a fato pretérito ou, ainda, a fato futuro do processo. O instrumento utilizado para comunicação pode ser o correio, o mandado a ser cumprido pelo Oficial de Justiça, o telefone, o fax, o e-mail, o edital ou qualquer outro meio hábil, a depender de qual seja o ato de comunicação que esteja sendo considerado.


Ante o exposto, percebe-se que assim como qualquer ato de comunicação, a citação, a intimação e a notificação devem apresentar tais características.


2. Dos pressupostos e requisitos dos atos de comunicação.


Tecidas essas considerações preliminares, cabe agora passarmos ao exame dos pressupostos e requisitos dos atos de comunicação. Diga-se, desde já, que tanto as observações feitas na abordagem introdutória como os esclarecimentos sobre os quais ora iremos discorrer, dizem respeito a uma teoria dos atos de comunicação, que poderemos, por assim chamar, de teoria geral da comunicação ou dos atos de comunicação. Dito de outra forma, os pilares que ora trazemos a público são aplicáveis, consideradas as peculiaridades de cada ato,  à citação, à notificação e à intimação. Portanto, não deve incorrer o operador e o estudioso do direito em tal falha, ou seja, no equívoco de imaginar que essas explicações guardam pertinência apenas à intimação e à notificação, sem se referir à citação. Enfatize-se, por uma vez mais, que tais noções são, por conseguinte, de índole genérica e abrangente.


Nesse momento o leitor, poderia estar se indagando: qual a distinção entre pressuposto e requisito? E somada a tal pergunta, acrescentaríamos duas outras mais: qual a distinção entre pressuposto, requisito e condição? Tomado em consideração o ato de comunicação, quais são os requisitos e os pressupostos deste? Passemos, então, a um esboço de resposta à cada uma dessas perguntas.


No que tange ao pressuposto, ao requisito e à condição, pensamos que a distinção entre tais elementos esteja no momento em que se observa o ato jurídico, isto é, encontre-se no momento de realização do ato jurídico. Se é certo que o ato de comunicação é um ato processual, força é convir que todo ato processual é um ato jurídico e, como tal, submete-se, dadas as devidas proporções, à teoria geral dos atos jurídicos. Sendo assim, pensamos que pressuposto são todos os elementos que devam existir previamente (no pretérito) à realização do ato processual (ato jurídico).


Por outro lado, os requisitos são todos os elementos que devam estar presentes (no momento presente) no instante em que o ato processual está sendo consumado. Por sua vez, a condição, como já antecipa o Código Civil (CC, artigo 121 – “Considera-se condição (…) evento futuro e incerto”) são todas as circunstâncias que possam vir a ocorrer no futuro. Nesse passo, convém assinalar que o direito civil nos ensina que pode haver duas espécies de condição, quais sejam, a resolutiva e a suspensiva.


Desta forma, portanto, nota-se que o ato jurídico pode ser analisado em três momentos distintos, quais sejam, pretérito, presente e futuro. Vale dizer o ato jurídico deve ser percebido no seu antes, no seu durante e no seu depois. Logo, se isso se observa quanto a ele, o mesmo deve ocorrer quanto ao ato processual, como ato jurídico que é.


Cientes de que tal proposta de distinção de tais expressões pode merecer diversas críticas da doutrina, advertimos ao leitor que a distinção que ora estabelecemos, como todo argumento jurídico, tem cunho subjetivo e valorativo e que, por isso, não pode ser tomado de forma inquestionável. Dessa maneira, toda crítica é produtiva e encontra, a nosso ver, papel relevante na produção do conhecimento hermenêutico jurídico.


Respondidas as duas primeiras indagações, cabe a nós agora enfrentar a última: tomado em consideração o ato de comunicação, quais são os requisitos e os pressupostos deste?          


A nosso ver, os pressupostos do ato de comunicação (citação, intimação e notificação) são: a) a previsão legal do ato de comunicação; b) a relação jurídica processual em desenvolvimento. De outro lado, os requisitos são: a) o Estado-Juiz (emissor da mensagem); b) o receptor (réu, autor, perito, testemunha etc.) da mensagem; c) o conteúdo da mensagem, ou seja, o ato processual que foi realizado ou que será realizado; e d) o instrumento processual utilizado para fazer a comunicação, isto é, se foi carta precatória, ou carta rogatória, ou AR, ou e-mail etc.


Mas, ao final de tais explicações, poderia restar ainda a seguinte dúvida: qual a finalidade do ato de comunicação? E mais que isso, qual o fundamento do ato de comunicação?


3. Das finalidades e fundamentos dos atos de comunicação.


A finalidade do ato de comunicação é transmitir uma mensagem com sucesso. Em outras palavras, o escopo de qualquer ato de comunicação é dar publicidade de um evento que aconteceu ou que está por acontecer a uma determinada pessoa que faça parte (entendido no seu sentido amplo) do processo. Isto é, a finalidade direta do ato de comunicação é a publicidade interna ao processo.  Mas essa seria apenas uma finalidade imediata. Uma outra finalidade do mesmo ato é a que podemos denominar de mediata ou indireta. Nesse sentido, o ato de comunicação tem por objetivo deixar registrado e certificado dentro dos autos do processo que tal mensagem foi transmitida, de maneira efetiva ou fictícia, ao destinatário previsto em lei. Ou seja, a finalidade indireta do ato de comunicação é dar conhecimento às demais pessoas estranhas à relação processual da mensagem que se quis comunicar. Nesse sentido, o ato de comunicação é também uma prestação de contas à sociedade, o que, na verdade, todo processo é, na medida em que serve aos ditames da Democracia. Por isso, a finalidade indireta do ato de comunicação é a publicidade externa ao processo.


Quanto aos fundamentos dos atos de comunicação, pensamos que estes sejam os seguintes: a) o princípio da publicidade, b) o princípio da ampla defesa, c) o princípio do devido processo legal, d) o princípio do contraditório, e) o princípio da motivação das decisões e f) o princípio democrático[2].


Tratam-se de princípios largamente estudados na doutrina[3], mas que merecem nessa oportunidade serem explicitados e aprofundados tendo por escopo destacar a relevância do papel desempenhado pelos atos de comunicação no processo penal contemporâneo, promovendo-se, assim, uma refundação de tais atos à luz do princípio democrático.


Quanto ao princípio da publicidade, este é o fundamento mais emergente dos atos de comunicação, vez que mesmo num primeiro olhar mais aligeirado sobre os mesmos, já se percebe sua nota marcante. Note-se que tal princípio é também o primeiro a conferir a importância crescente que tais atos vêm ganhando na sociedade contemporânea. O princípio da publicidade é, a um só tempo, fundamento e finalidade do ato de comunicação. Finalidade, como destacado linhas atrás, se considerado enquanto finalidade imediata e mediata. Fundamento, se tomado como expressão de legitimidade do processo. Em outras palavras, a publicidade serve de fundamento ao ato de comunicação, pois maximiza a legitimidade desse e, por via de conseqüência, do próprio processo.


No que pertine ao princípio da ampla defesa, esse se presta a fundamento do ato de comunicação, vez que garante ao réu uma comunicação clara, determinada e objetiva da imputação que lhe é feita, de sorte a proporcionar-lhe a efetiva garantia de defesa, seja essa técnica, seja por meio da autodefesa.


No que concerne ao princípio do devido processo legal[4], cabe pontuar, desde já, que, mais recentemente, este vem sendo entendido pela doutrina sob dois aspectos, a saber: processual (procedural due process) e material (substantive due process). Nesse passo, então, fala-se em devido processo legal em sentido processual e devido processo legal em sentido material. Naquele sentido, o devido processo legal é compreendido como o direito que todo cidadão tem de ter o prévio conhecimento do procedimento ao qual será submetido quando vier a ser processado, ou seja, o direito a conhecer com antecedência os atos processuais a que será submetido pelo Estado, em outras palavras, o direito a não ser surpreendido. Tomado no seu sentido material, este princípio tem seus limites territoriais expandidos, passando a conter dentro de si outros princípios, como, por exemplo, o princípio da isonomia entre as partes. Nessa perspectiva, o princípio do devido processo legal deve ser compreendido como a garantia a um processo justo.


Pois bem. Tecidas tais considerações, cabe assinalar, então, que o princípio do devido processo legal é também fundamento dos atos de comunicação, à medida que exige que esses sejam praticados de acordo com as regras previamente estabelecidas na lei processual e sejam exercitados da maneira mais justa. Entendemos aqui como exercício da maneira justa, o esforço que deve ser empreendido para garantir que o ato de comunicação seja real, evitando-se, ao máximo, a realização do mesmo pela via fictícia.


No que tange ao princípio do contraditório, entendendo-se esse como corolário do princípio da isonomia das partes e, por conseguinte, como garantia de paridade de armas a essas, tomamos esse como outro fundamento dos atos de comunicação, em razão de que tais atos devem ser compreendidos como expressão efetiva da igualdade de oportunidades durante o trâmite do processo. Os atos de comunicação oportunizam o exercício do dissenso pelas partes, para que ao final do processo possa se construir um consenso.


Por suas vez, o princípio da motivação[5] das decisões presta-se a fundamento dos atos de comunicação, pois esses devem decorrer de uma decisão judicial, produzindo e reproduzindo a mesma. Esclarecendo melhor, os atos de comunicação só existem enquanto eles mesmos, quando se apresentam como fruto de uma decisão judicial fundamentada. Se entendermos que o processo é um instrumento estiguimatizante[6], que se presta a rotular os sujeitos por eles envolvidos, perceberemos que os atos de comunicação são também, em certa medida, a primeira expressão dessa estiguimatização[7], pois é a partir desse momento que o sujeito passivo processual passa a ser rotulado pelo contexto social. Sendo assim, a decisão de determinar um ato de comunicação, deve ser necessariamente uma decisão judicial, vez que deve ser uma decisão fundamentada, ponderada e equilibrada.


Por outro lado, é o ato de comunicação que produz e reproduz a decisão que por meio dele é expressa. Produz, enquanto elemento integrante e constituinte do ato de decisão, ou seja, enquanto constitutivo da manifestação de poder, tendo-se em foco o Estado-Juiz. E reproduz, na medida em que é compreendido por aquele a que se destina, reverberando na conduta futura (após a realização do ato de comunicação) do sujeito-destinatário.        


Por fim, o ato de comunicação encontra seu fundamento último e mais relevante no princípio democrático, vez que, observado por esse prisma, tal ato confere legitimidade a decisão que vier a ser proferida. Entende-se por legitimidade a circunstância de que a decisão que será imposta às partes é produto da participação ativa que estas desempenham na relação processual. Nesse sentido, a decisão judicial é fruto do dissenso inicial entre as partes, voltado à busca de um consenso. E, na construção desse consenso, é de grande importância o papel dos atos de comunicação, à medida que relaciona e problematiza a pretensão do sujeito emissor e a resistência do sujeito destinatário. 


4. Do destinatário do ato de comunicação


O destinatário do ato de comunicação variará de acordo com a espécie de ato praticado. Isto porque, enquanto a citação só pode se dar, em regra, na pessoa do réu, sendo esse, por conseguinte, o seu sujeito destinatário por excelência, o mesmo não ocorre quanto aos demais atos de comunicação.


A intimação e a notificação são atos de comunicação bastante semelhantes quanto ao sujeito destinatário. Em razão de tal circunstância, fez-se aqui a opção de cuidar do sujeito destinatário de tais atos de comunicação a partir de uma única perspectiva. Logo, onde se mencionar a expressão notificação, as considerações feitas acerca desse ato serão válidas e aplicáveis à intimação.


Quanto ao sujeito destinatário da notificação (e/ou intimação), convém formular, de imediato, a seguinte indagação: a notificação (e/ou intimação) só de destina às testemunhas e aos réus?


A resposta a tal pergunta é: não. Em todas as oportunidades em que a autoridade determinar que seja alguém comunicado de que deve fazer ou deixar de fazer algo, resultando a desobediência na cominação de uma sanção, então, se pode falar, de maneira técnica, em notificação.


Releva notar que está excluído dessa conceituação o chamamento inicial, que se faz por meio de citação. Dessa maneira, notificam-se as testemunhas para que venham depor…Caso as testemunhas não atendam à convocação, sujeitar-se-ão às sanções estabelecidas nos artigos 218 e 219 do CPP. Notifica-se o réu para presenciar a oitiva das testemunhas. E se desatender ao comunicado? Nesse caso, o processo continuará à sua revelia, de acordo com o artigo 367 do CPP. Notifica-se o expert a está presente diante da autoridade ou em lugar determinado. A violação submetê-lo-á à cominação prevista no parágrafo único do artigo 277. Igual atitude será adotada contra o intérprete, quando notificado, por força do que pontifica o artigo 281 do codex. A vítima é notificada para se fazer presente diante da autoridade para dar declaração, uma vez que sua inobservância redundará na adoção do que dispõe o parágrafo único do artigo 201. Os jurados são notificados a comparecer à sessão do Tribunal do Júri. Na hipótese de desatendimento, a eles serão aplicadas as sanções inscritas no artigo 443. Qualquer que seja o ato do processo, deverá ser o assistente de acusação notificado posto que sua desobediência provocará a cominação imposta no parágrafo segundo do artigo 271. Notificado ainda deverá ser o querelante, quando disser respeito a ato processual a que deva comparecer, vez que a sua ausência resultará em perempção, de acordo com o inciso III do artigo 60. Note-se que o membro do Ministério Público e o Defensor são também notificados, e o seu desatendimento pode levar o magistrado, na primeira situação, a prestar tal notícia ao Procurador Geral de Justiça e, na segunda, a cominar a regra disposta no artigo 265 do codex.


Convém assinalar, por conseguinte, que o único sujeito processual a quem à notificação não se dirige é ao juiz, posto que este é sempre o emissor da mensagem (do comando) a ser comunicada, não podendo, portanto, ser jamais o seu receptor. Contudo, quando fazemos tal assertiva estamos tendo em mente uma relação jurídica simples dialética, vez que se ao lado desta relação surge uma nova relação, tornando-se uma relação complexa, como, por exemplo, na exceção de suspeição, o juiz também poderá ser destinatário de uma notificação.


Feitas tais considerações, tratemos, agora, de forma breve, da Teoria da Ação Comunicativa, concebida por Jürgen Habermas, de sorte a aprofundarmos a discussão acerca do ato de comunicação em si.


5. Da Teoria da Ação Comunicativa Habermasina.


Antes de explicarmos detidamente a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas[8], tentaremos nessas primeiras linhas elaborar uma síntese apertada do pensamento desse importante filósofo alemão.


Habermas, descendente legítimo da Escola de Frankfurt, desenvolve a chamada Teoria da Ação Comunicativa. Sua proposta visa ser um instrumento de superação da razão iluminista (razão instrumental) a qual, segundo jusfilósofo alemão, é transformada num novo mito e que encobre a dominação burguesa. Sendo assim, tal autor propõe o cultivo a lógica da troca de idéias e informações entre os sujeitos históricos, estabelecendo o diálogo[9] como forma de produção de conhecimento.


Estabelecido o diálogo como forma de produção de conhecimento, Habermas, então, num momento seguinte, propõe duas abordagens teóricas possíveis à sociedade: a) o Sistema, e b) o Mundo da Vida.


O Sistema refere-se à “Reprodução Material” norteada pela lógica instrumental (adequação dos meios aos fins). O Mundo da Vida, por sua vez, refere-se à “Reprodução Simbólica”, a qual é uma rede de significados que compõem determinada visão de mundo. Tais significados estão vinculados aos fatos objetivos, às normas sociais e aos conteúdos subjetivos.


Segundo Habermas, durante a Modernidade[10], se assistiu à colonização do mundo da vida pelo sistema, bem como a uma crescente instrumentalização do conhecimento, o que se evidencia no surgimento do direito positivo e na circunstância de restringir o debate normativo aos técnicos e especialistas.


Diante desse quadro, então, Habermas elabora sua filosofia voltando-se para o estudo da Ética e do Conhecimento. Note-se, a propósito, que sua tese para explicar a Produção de Saber Humano recorre, de certa forma, ao evolucionismo de Charles Darwin, isto porque a falibilidade possibilita desenvolver capacidades mais complexas de conhecer a realidade (evolucionismo, assim, através dos erros).   


Habermas defende uma ética universalista, deontológica, formalista e cognitivista. Segundo o autor, os princípios éticos não devem ter conteúdo. Através das discussões (discurso[11]), da participação nas decisões públicas, deve-se possibilitar a avaliação dos conteúdos normativos demandados naturalmente pelo mundo da vida.


Percebe-se, assim, que a teoria de Habermas é uma Teoria Discursiva em prol da Integração Social e que tem como conseqüência a Democracia e a Cidadania. Tomada por base a sua teoria, a resolução dos conflitos vigentes na sociedade deve ser resultado do consentimento de todos concernidos. Desta forma, a Justiça, de acordo com o pensamento de Habermas, é a possibilidade que o destinatário do comando normativo deve ter de influir na elaboração da norma. Logo, só há justiça por meio da democracia, por meio do agir comunicativo[12], que se ramifica por meio do discurso.


Esclarecidos, preliminarmente, alguns aspectos acerca do pensamento habermasiano. Passemos, então, a tratar das três idéias fundamentais desenvolvidas por esse respeitado filósofo alemão, a saber: a) a esfera pública, b) a reconciliação da hermenêutica com o positivismo e c) a teoria da ação comunicativa.


A esfera pública é o espaço no qual as pessoas discutem sobre a vida, mas que não se confunde com as esferas da vida doméstica, da igreja ou do governo. Nesse espaço, as idéias seriam examinadas, discutidas e argumentadas.


Convém salientar, a propósito, que, segundo Habermas, o espaço da esfera pública[13] tem diminuído sob a influência das grandes corporações e do poder da mídia. A redução da esfera pública é, para Habermas, uma estratégia de divisão e de conquista.


Quanto à reconciliação da hermenêutica e do positivismo, a sociedade e as ciências culturais humanas são domínios estruturados ao redor de símbolos. Os símbolos são objetos de interpretação e, por isso, qualquer metodologia que negligencie a hermenêutica está destinada ao fracasso. Sendo assim, existe um terceiro nível de lógica: o de poder e dominação que são explicados por uma teoria crítica.


No que diz respeito à Teoria da Ação Comunicativa, Habermas, então, afirma que a linguagem é a base de sua filosofia. A linguagem é tomada como “ato de fala”[14], consideradas as suas entonações e com uma função pragmática. Em outras palavras, a teoria de Habermas acerca da linguagem é performática[15].


A linguagem, segundo Habermas, é justificada em quatro níveis de validade: a) o que é dito é compreensível (utilização de regras semânticas inteligíveis), b) que o conteúdo do que é dito é verdadeiro, c) que o emissor justifica-se por certas normas que são invocadas no uso do idioma, e d) que o emissor é sincero no que diz, não tentando enganar o receptor (comunicação não distorcida). Percebe-se, assim, que a teoria da ação comunicativa questiona a definição de verdade[16] como valor de caráter universal.


Feitos tais esclarecimentos, tentaremos, agora, explicar com um pouco mais de profundidade a teoria discursiva de Jürgen Habermas.


A Teoria do Agir Comunicativo[17] analisa as instituições jurídicas e propõe um modelo onde se interpenetram Justiça, Razão Comunicativa e Modernidade. Nesse sentido, o Direito[18] é facticidade quando se realiza os desígnios de um legislador político e é cumprido e executado socialmente sob a ameaça de sanções fundadas no monopólio estatal da força. Por outro lado, o Direito é validade quando suas normas se fundam em argumentos racionais ou aceitáveis por seus destinatários.


A tensão existe, portanto, na relação entre elementos sancionatórios e elementos de autolegislação. A sanção (facticidade) restringe o nível de dissenso; o dissenso é superado quando as normas jurídicas são emanações do povo (validade). A tensão se verifica entre coerção do Direito – que garante um nível médio de aceitação da regra, e a idéia de autolegislação – ou seja, da suposição de autonomia política dos cidadãos associados, o que resgata a pretensão da legitimidade das próprias regras, isto é, racionalmente aceitáveis.


Habermas defende, assim, o abandono de uma razão prática e a assunção de uma razão comunicativa. A razão comunicativa, ao contrário da razão prática, não oferece nenhum tipo de indicação concreta para o desempenho de tarefas práticas, pois não é informativa. A razão comunicativa afasta-se da tradição prescritiva da razão prática.


Convém assinalar, então, que Habermas quer situar a legitimidade do Direito não no plano metafísico, mas no plano discursivo procedimental[19].


Releva notar, por oportuno, que Habermas através da teoria do agir comunicativo, na qual a linguagem supera a dimensão sintática e semântica, constituindo o médium de integração social, ou seja, o mecanismo pelo qual os agentes sociais se interagem e fundamentam racionalmente as pretensões de validade discursivas aceitas por todos.


Visto desta forma, segundo a filosofia habermasiana, o ordenamento jurídico emana das diretrizes dos discursos públicos e da vontade democrática[20] dos cidadãos institucionalizados juridicamente. É nesse contexto, então, que Habermas defende, portanto, a substituição de uma razão prática, baseada num indivíduo, que através de sua consciência, chega à norma, pela razão comunicativa, sustentada numa pluralidade de indivíduos que, orientando sua ação por procedimentos discursivos[21], chegam à norma.


Desta maneira, a fundamentação do Direito[22], a sua medida de Legitimidade, é definida pela razão do melhor argumento. O Direito, segundo Habermas, deve ser a emanação da vontade discursiva dos cidadãos livres e iguais. Sendo assim, nas sociedades contemporâneas pós-metafísicas torna-se inviável a fundamentação do direito numa suposta ordem natural, numa dimensão ética ou numa moral metafísica.


Portanto, o princípio do discurso, após assumir forma jurídica, transforma-se em princípio da democracia. Logo, é através de uma concepção discursiva e procedimental que se pode construir uma presunção de legitimidade e racionalidade de conteúdo de uma norma.


Diante do exposto, pensamos que os atos de comunicação no processo penal devem ser entendidos, dadas às devidas proporções, como “atos de fala”, ou seja, a partir de uma compreensão performática da linguagem. Nesse sentido, tais atos devem ser compreendidos como instrumentos de construção de uma verdade consensual que restará manifestada, ao final de um processo comunicativo-dialético, no ato de decisão e manifestação de poder que é a sentença. Verdade consensual esta, que, a nosso ver, é aquela que absolve o dissenso, afastando-se, desta forma, qualquer referência ao decadente dogma da verdade real.


Note-se que ao consideramos os atos de comunicação no processo penal à luz da teoria do agir comunicativo, acreditamos que tais atos devem, também, está submetidos aos quatro níveis de validade da linguagem mencionados por Habermas, os quais são, novamente, aqui reproduzidos: a) o que é dito é compreensível (utilização de regras semânticas inteligíveis), b) que o conteúdo do que é dito é verdadeiro, c) que o emissor justifica-se por certas normas que são invocadas no uso do idioma, e d) que o emissor é sincero no que diz, não tentando enganar o receptor (comunicação não distorcida).


Sendo assim, os atos de comunicação conferem legitimidade à decisão obtida por meio do processo, à medida que tal decisão é fruto do melhor argumento (argumento é racional e aceitável) e é construída a partir do dissenso e em busca do consenso.   


Tecidos alguns esclarecimentos sobre a teoria da ação comunicativa e estabelecida uma vinculação entre esta e os atos de comunicação no processo penal, analisemos, agora, tais atos sob as perspectivas da Política Criminal, da Criminologia e da Constituição. 


6. A Política Criminal, a Criminologia e a Constituição.


Os atos de comunicação, assim como o processo penal, devem ser analisados também sob o prisma da política criminal e da criminologia[23]. Ou seja, a doutrina moderna, a nosso ver, não pode mais continuar a tratá-los apenas sob o aspecto dogmático, mas também deve compreendê-los como instrumentos de uma política criminal escolhida pelo Estado, a qual produz as mais variadas conseqüências criminológicas.


É importante que se perceba o conteúdo político criminal que se encontra encoberto pelas normas prescritas pelo código de processo penal. Tal conteúdo se manifesta sob diversos aspectos, vejamos alguns: a) a proibição ou a permissão da citação por hora certa no processo penal; b) o maior ou menor elenco de hipóteses que autorizam a citação por edital; c) a própria existência da citação por edital no processo penal moderno; d) a opção por determinar a suspensão do processo no caso descrito pela norma do artigo 366 do CPP, não se permitindo, em princípio, o julgamento do réu à revelia; e) a maior ou menor limitação na utilização de novos mecanismos tecnológicos (e-mail, telegrama, telefone etc.) para a realização dos atos de comunicação; f) o pequeno número de normas dispensadas pelo código de processo penal ao tratar da intimação e da notificação; g) a despreocupação técnica do código de processo penal ao empregar como sinônimos as expressões notificação e intimação; h) a omissão do legislador em não ter delimitado, expressamente, um prazo máximo para suspensão do processo e da prescrição, dentre outros aspectos.


Descoberto o véu das reais intenções do legislador, é deveras salutar, no momento seguinte, que o intérprete também perceba as conseqüências de ordem criminológica[24] que tais opções implicam ou podem implicar. Pontuemos, então, algumas delas: a) a estiguimatização do réu com a determinação do ato de citação; b) a criminalização secundária que a citação e o processo penal, como um todo, podem ocasionar; c) o caráter simbólico dos atos de comunicação; d) o aspecto preventivo-retributivo do ato de citação e do processo penal; e) os prejuízos experimentados pela pessoa equivocadamente citada, ou pelo réu que respondeu ao processo e, ao final, foi julgado inocente. Estas são algumas das repercussões criminológicas que, a nosso ver, podem ser destacadas.   


Ademais, note-se, ainda, que tais atos de comunicação devem ser, agora, (re)interpretados sob o comando da Constituição Democrática de 1988, não podendo mais serem analisados, exclusivamente, à luz da legislação infraconstitucional. Tal assertiva implica, a nosso ver, nas seguintes conseqüências: a) os atos de comunicação devem ser tomados como garantias individuais do cidadão frente ao Estado, b) devem ser analisados à luz dos princípios constitucionais, c) devem ter o seu alcance delimitado pelos valores constitucionais; d) devem ter os seus contornos definidos por um processo legislativo democrático, além de outras conseqüências aqui não mencionadas.


 


Notas:

[1] Consideramos a citação, a intimação e a notificação como atos de comunicação, vez que tais atos têm em comum a transmissão de uma informação. Pois bem, é tomando por base a finalidade de tais atos que foi elaborada nessa oportunidade um esboço de uma teoria geral dos atos de comunicação.

[2] Sobre a importância do princípio democrático, consultar FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: RT, 2002, p.74-75.

[3] NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 5ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, pp.30-40; 127-148; 165-166; e 172-177.

[4] Cumpre assinalar que o devido processo legal possui caráter constitutivo na seara processual penal, vez que não há crime nem pena, sem que haja processo. Logo, não se deve compreender tal princípio sob os mesmos moldes que esse é estudado pela doutrina processual civil.

[5] Note-se que o princípio da motivação está fundado em motivos fáticos e jurídicos e que tal princípio, juntamente com o princípio da publicidade, são os limites mais evidentes contra a prática de atos arbitrários e abusivos.

[6] Convém salientar que o processo, além de ser um instrumento estiguimatizante, pode ser também elemento propulsor de uma criminalização secundária, à medida que, em vez de prevenir a prática de delitos, preste-se a produzir os mesmos. Sendo assim, o ato de comunicação, mais especificamente, a citação, deve ser devidamente motivado e proporcional, pois deve o juiz também ter em consideração ao determinar a citação que esta é estiguimatizante e, em alguns casos, causa de criminalização secundária. Ressalte-se, por oportuno, que a relação jurídica processual somente se aperfeiçoa com a realização da citação válida do réu.

[7] Ao colocarmos em voga a estiguimatização provocada pelo processo, bem como pelo ato de comunicação, em si, queremos também deixar aberta a possibilidade de se discutir a responsabilização civil do Estado-Juiz pelo ato de comunicação praticado com erro ou dolo e que venha a causar prejuízo ao sujeito-destinatário do ato de comunicação, seja no que toca aos lucros cessantes, seja no que concerne aos danos emergentes (materiais e/ou morais). Entrementes, ciente de que o tema é movediço, preferimos não fazer, por ora, qualquer assertiva mais incisa acerca do assunto, seja sustentando a possibilidade de indenização, seja repelindo qualquer idéia nesse sentido.  

[8] HABERMAS, Jurgen. A etica da discussao e a questao da verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

[9] Pensamos que uma das formas de se viabilizar tal diálogo dentro do processo se dá por meio da realização dos atos de comunicação.

[10] HABERMAS, Jurgen. O discurso filosofico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

[11] O discurso como problematização do diálogo.

[12] HABERMAS, Jurgen. Racionalidade e Comunicação. São Paulo: Edições 70,  2000.

[13] Segundo Habermas, a internet é a mais nova esfera pública.

[14] O escopo do ato de fala é o convencimento do outro, que tem como pressuposto a pretensão de validez do falante e do receptor, de sorte a produzir o consenso.

[15] Nesse passo, é importante destacar que há diversas “teorias da linguagem”, podendo se falar, de forma sintética, em três variantes: a) teoria performática (Habermas) – linguagem como “ato de fala”; b) teorias existencialistas (Heidgger e Gadamer) – a linguagem é uma relação existencial entre o homem e si mesmo e o objeto e si mesmo, tomados como fenômenos históricos; c) Teoria Sintática-Semântica (Paulo de Barros de Carvalho, entre outros) – a linguagem como sintaxe (o estudo da relação entre um vocábulo e os demais vocábulos na composição de uma oração) e como semântica (o estudo da relação entre o vocábulo e o objeto da informação).    

[16] Habermas sustenta que toda verdade é uma verdade consensual. A verdade consensual é aquela que absolve o dissenso.

[17] HABERMAS, Jurgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. São Paulo: Tempo Brasileiro, 2002.

[18] Habermas não admite uma resposta única e estática para o fenômeno do Direito, vez que entende este como um fenômeno dinâmico e em constante metamorfose.

[19] HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia II. São Paulo: Tempo Brasileiro, 2001.

[20] Para Habermas, ao contrário de Hannah Harendt, a democracia tem como ponto de partida o dissenso e, como ponto final, a construção do consenso.

[21] O discurso, segundo Habermas, reduz a arbitrariedade e o subjetivismo das decisões.

[22] Habermas entende o Direito como fenômeno de auto-compreensão das sociedades modernas.

[23] Sobre a Criminologia, consultar GARCIA PABLOS, Antônio & GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. São Paulo: RT, 2003.

[24] FIGUEIREDO DIAS, Jorge & ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia. Coimbra: Coimbra Editora, 2006.

Informações Sobre o Autor

Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo

Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Ciências Criminais pela UFBA. Professor de Processo Penal da Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Professor de Direito Penal da Universidade Salvador (UNIFACS). Analista Previdenciário junto à Procuradoria Federal Especializada do INSS na Bahia.


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Equipe Âmbito Jurídico

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