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Exoneração do fiador e direito intertemporal

Ao Direito tem de ser inolvidável a disciplina básica da contratualidade sem, contudo, desrespeitar a autonomia da iniciativa privada. Deve-se conciliar o império da lei com a vontade das partes. Se a legislação assim não procede, cabe ao exegeta fazê-lo. Assim caminhou o Código Civil de 2002 quando, no artigo 835, tratou da hipótese de exoneração do fiador coadjuvante de contrato por prazo indeterminado.

Mas a novel disciplina da forma e dos efeitos da exoneração do fiador levantou algumas celeumas no campo doutrinário, tendo mesmo abalizadas vozes sustentado que, agora, basta à notificação para que o fiador esteja automaticamente exonerado. Seria mesmo possível? Cremos que não. De todo modo, isso é matéria para um estudo específico.

Por agora, trataremos de outro, daquele que nos tem sido causa de certo espanto: a tendência de alguns em vaticinar que o Novo Código Civil em nada, absolutamente nada, afetou o contrato de fiança prestado em favor de locador de imóvel predial urbano, de tal sorte a permanecê-lo vinculado enquanto perdurar a locação e não for o imóvel devidamente devolvido (ficticiamente, com a entrega das chaves), ainda que por prazo indeterminado, não bastando simples notificação para exonerá-lo – nem mesmo ação judicial.

Assim, questão que tem merecido algumas laudas e tintas da pena, versa sobre as regras de direito intertemporal. Explicamo-nos: o artigo 2.306 do novo Código Civil ressalvou a vigência da Lei n. 8.245/91 (Lei Inquilinária) quanto às locações de imóvel urbano. Com base neste artigo das disposições finais e transitórias do novo Estatuto do Direito Privado, até mesmo o Exame da Secção Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil explicitou que “o artigo 835 do novo Código Civil não se aplica aos contratos de locação de imóvel urbano, uma vez que o art. 39 da Lei 8.245/91 (Lei do Inquilinato) estabelece que qualquer das garantias da locação se estende à efetiva entrega das chaves, e o novo Código Civil ressalvou em regra de direito intertemporal a vigência daquela lei especial” (gabarito da 2ª Fase do 121º Exame, resposta à questão 1ª de Direito Civil).

Ora, não se ignora o comando insculpido no artigo 2.306 do novo Código Civil. Entretanto, de igual, não pode o intérprete cerrar os olhos ao disposto no artigo 79 da Lei do Inquilinato, força do qual aplica-se subsidiariamente as normas do Código Civil naquilo que aquela Lei Especial for omissa. E isso é princípio básico, lógico e indeclinável de hermenêutica, aplicável no conflito aparente de normas especiais com gerais.

Feita esta observação, resta-nos saber se os artigos 37 a 42 a Lei Inquilinária tratam efetivamente da exoneração do fiador e de seus efeitos. Entendemos que, salvante aquela hipótese ventilada no inciso IV do artigo 40, a Lei Inquilinária não tratou deste assunto, quedando-se inteiramente silente. Nem mesmo o artigo 39 desse Codex tem o alcance que lhe pretendem conferir alguns exegetas.

Não fosse o bastante, ao aceitarmos irrestritamente o comando insculpido neste artigo, concluiremos que todos os contratos que prevejam que a fiança vigorará até a entrega das chaves autorizam, de per si, a exoneração do fiador, posto sujeitos a condição (e não a termo), sendo portanto de prazo indeterminado.

E mais. O disposto no artigo 2.306 do novo Código Civil tem em vista o contrato de locação de prédio urbano, o que não se confunde com o acessório contrato de fiança. As relações jurídicas locacionais de prédio urbano entre senhorio e inquilino permanecem sob a égide da Lei n. 8.245/91; mas, de outra banda, o ato jurídico subjacente envolvendo o fiador do contrato de locação de imóvel urbano está sujeito ao novo Código Civil, naquilo que for omissa a Lei n. 8.245/91.

Logo, a pessoa que figurar como fiadora em contrato de locação pode exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando obrigada por todos os efeitos da fiança, durante sessenta dias após a notificação do credor.

De outra banda, asseverar que basta a notificação para se exonerar, assim não entendemos, ao menos em análise perfunctória, por contrariar todo o sistema normativo, princípios básicos como a inafastabilidade do controle jurisdicional, além de causar extrema insegurança nos negócios jurídicos em geral, mormente os de maior reflexo social, econômico e financeiro, como os contratos bancários, já que o instituto da fiança não é privilégio das locações prediais urbanas e não poderíamos, por pura lógica jurídica, aceitar a dispensa da ação num caso e exigi-la noutro quando em verdade tem no cerne a mesma essência: garantia do cumprimento da obrigação principal.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Alex Sandro Ribeiro

 

Advogado, Escritor e Consultor.
Pós-Graduado em Direito Civil pelo uniFMU.
Membro do IV Tribunal de Ética da OAB/SP.
Autor dos livros Ofensa à Honra da Pessoa Jurídica e
Arrematação e Adjudicação de Imóvel: Efeitos Materiais.
Autor de dezenas de artigos e trabalhos publicados.
Consultor especializado em ME e EPP.

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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