Resumo: O presente artigo se propõe a tratar do tema da família, preconizada na Constituição Federal de 1988, sob o olhar da afetividade. O objetivo, sem a intenção de exaurir o tema, é analisarmos a transformação do conceito de família, através da história e sob a influência de aspectos externos, como político, econômico e social, e demonstrarmos o afeto no interior das relações como fundamento para construção e reestruturação do conceito de Família, voltando-nos para os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, preconizados na Constituição Federal.
Palavras-chave: Família – Constituição Federal – Afeto.
Sumário: 1. Notas Introdutórias. 2. Evolução e transformação das famílias. 2.1. Família, Política e Afeto. 2.2. A Família na História do Direito. 3. A família constitucional: o berço do afeto. 3.1. Os princípios Constitucionais. 3.2. A afetividade como princípio constitucional. 4. Família e afetividade. 4.1. A interação do afeto nas relações de família. 4.2. O papel da família para o desenvolvimento do afeto. 5. Considerações Finais. 6. Referências.
1. Notas Introdutórias
Busca-se, com o presente artigo, fazer breves reflexões sobre esse tema tão palpitante no momento atual do Direito de Família, cujo eixo se deslocou do autoritarismo para a valorização do afeto como elemento agregador da família
Inicialmente procuramos relembrar a importância da família para a sobrevivência do ser humano, por ser o suporte fático para a existência do Direito de Família.
Assim, no primeiro item procuramos demonstrar o que significa a família não só para a sobrevivência de qualquer ser humano, mas também para o desenvolvimento de sua personalidade, em que o afeto é um dos elementos indispensáveis para o seu desenvolvimento como cidadão e como membro de uma sociedade saudável e democrática.
Demonstrada a importância da família instituída, com fundamento na afetividade e o afeto como uma exigência na convivência da família contemporânea, passamos para o segundo ponto, no qual nos debruçamos sobre os princípios constitucionais que garantem a formação familiar consubstanciada no afeto.
Posteriormente, nos ocupamos em demonstrar o papel da família para a formação da afetividade, levando em consideração o que determina o nosso sistema jurídico, bem como ensinamentos da área da psicologia.
Neste ponto, trazemos esclarecimentos do desenvolvimento infantil e a importância da participação familiar para a formação de cada indivíduo.
Por fim, concluímos o nosso estudo de forma a agrupar as idéias aqui expostas norteando o estudo do Direito de Família para as questões afetivas. Entretanto, sem a intenção de exaurir o tema proposto, demonstramos a necessidade de uma visão amplificada, dialógica e hermenêutica do Direito, para garantir o cumprimento dos preceitos constitucionais ao lado do estudo da psicologia, no qual nos proporciona um crescimento evolutivo como sociedade, doutrinadores e operadores do direito.
2 A evolução e transformação das famílias
A família foi, é, e continuará sendo o núcleo básico e essencial da formação e estruturação dos sujeitos, e, consequentemente, do Estado. Desta forma, é uma construção que está estruturada no afeto, no amor, na compreensão, nas atitudes solidárias e no reconhecimento.
Essa idéia de família nada mais é do que o reflexo do fim das famílias patriarcais de 1916, daquela família fundada pelos laços de sangue e comandada pelo pai poder. Ainda, são reflexos das transformações da sociedade, dos grandes avanços e das conquistas de longos anos, que hoje são comemoradas por todos os operadores do Direito.
Assim, família se constitui por diversos fatores e é capaz de ter múltiplos envolvidos, pois hoje existe uma estrutura multifacetada, quando tratamos de famílias uniparentais, homoafetivas, pluriparentais, etc., demonstrando o caráter eudemonista, presente na nossa atualidade e justificada exclusivamente na busca da felicidade e na realização pessoal de seus indivíduos.
A sociedade brasileira vive hoje o fenômeno das famílias recompostas e reconstituídas, formadas, justamente, por pessoas que estão ligadas pelo amor.
Esses fatores somados, que constituem a família, é que garantem o desenvolvimento da esfera familiar. Assim, a presença do afeto, do carinho, da compreensão, da atenção, da disponibilidade, do cuidado, do alimento, é que são capazes de dar ensejo a presença de uma estrutura familiar propriamente dita, independentemente de quem são, e de quantos são, os indivíduos envolvidos.
Desta forma, é na família que a pessoa se completa, se perfaz, que o eu se transforma em nós.
É notória a evolução social dos últimos séculos, quanto a evolução da família, ou do sistema familiar. Assim, não se pode tratar da alteração das questões familiares, da ruptura dos vínculos sanguíneos em prol dos vínculos afetivos, sem analisarmos as diferenças que ocorreram no consumo, no mercado e na política.
2.1 Família, Política e Afeto
Como forma de adentrarmos ao tema, iremos nos reportar ao livro de Luc Ferry, Famílias, Amo Vocês: política e vida privada da era da globalização[1].
O autor nos remete e nos proporciona uma necessária reflexão sobre a importância da família e, conseqüentemente, do Direito de Família no mundo contemporâneo. Desta forma, pode ser considerado como uma importante reflexão sobre a política no momento atual, uma vez que as noções de esquerda e direita estão se desfazendo e se diluindo diante de um mundo globalizado e marcado pelo hiperconsumismo.
No momento em que as tradicionais noções de política estão sendo consumidas pelo mundo globalizado, a História e a Política hoje se escrevem e se inscrevem a partir da vida privada. E esta começa e termina na família.
A partir do momento em que as pessoas passaram a se casar por amor, a família foi deixando de ser, essencialmente, um núcleo econômico e reprodutivo. Assim se fez a “desconstrução” da família patriarcal, tradicional e hierarquizada. E foi, então, que o afeto tornou-se um valor jurídico.
As nostalgias das antigas utopias, as noções de esquerda e direita, aos poucos estão sendo substituídas pelas noções de limite entre público e privado, obviamente comandados por uma economia de mercado globalizado. Assim, o único laço social que realmente se aprofundou, se intensificou e se enriqueceu foi o que une as gerações, ou seja, a família hoje é mais autêntica e menos hipócrita. E é aí que realmente subsistem e se aprofundam os valores que realmente nos interessam, especialmente o da solidariedade.
A revolução silenciosa da família, através dos novos arranjos que ainda estão em curso, são os reflexos dessa abertura de mercado, da era globalizada e de uma política atual mais voltada para o indivíduo.
Nesse sentido, o amor e a autonomia privada tem sido fonte de ampliação dos horizontes, pois nunca se demonstrou tanta preocupação com o outro e o seu bem-estar como nas sociedades atuais.
As contribuições de Luc Ferry, filósofo e ex-ministro da educação da França, nos esclarecem algumas questões. A família é base de uma sociedade. Sem família não é possível nenhum tipo de organização social ou jurídica. É na família que tudo principia. É a família que nos estrutura como sujeitos e encontramos algum amparo para o nosso desamparo estrutural. Apesar da variedade e diversidade de cultura, religião, credos e valores morais, devemos pensar a família como um resultado da cultura e não apenas da natureza. Assim, deve ser vista como uma estrutura que sofre influência do meio no qual está inserida e que se transforma com o passar dos séculos e pelos anseios do homem.
2.2 A Família na história do Direito
A sociedade está em constante evolução. A família, por sua vez, é o reflexo desta sociedade, que exterioriza mudanças e desejos.
Como sabido, Direito e sociedade estão em permanente interação e, para que aquele permaneça como meio regulador do convívio social, diante das substanciais mudanças ocorridas, necessário é renovar as premissas para readaptar o Direito e sua aplicação aos fatos e aos novos fenômenos que surgem no contexto social.
Quando se fala em mudança do Direito, tanto material quanto instrumental, está se falando no movimento socializante do Direito e, antes de tudo, em uma “recentralização das relações jurídicas mais em torno da pessoa (em seu sentido concreto e pleno) e menos ao redor do patrimônio em si mesmo”[2].
Maria Celina Bodin de Moraes[3] esmiuçou com maestria a questão da concepção familiar sob o enfoque da inclusão.
“No Estado democrático e social de Direito, as relações jurídicas privadas ‘perderam o caráter estritamente privatista e inserem-se no contexto mais abrangente de relações a serem dirimidas, tendo-se em vista, em última instância, no ordenamento constitucional.
Para tanto, dá-se como certo o fato de que a concepção sociojurídica de família mudou. E mudou seja do ponto de vista dos seus objetivos, não mais exclusivamente de procriação, como outrora, seja do ponto de vista da proteção que lhe é atribuída. Atualmente, como se procurou demonstrar, a tutela jurídica não é mais concedida à instituição em si mesma, como portadora de um interesse superior ou supra-individual, mas à família como um grupo social, como o ambiente no qual seus membros possam, individualmente, melhor se desenvolver” (CF, art. 226, §8º).
O Direito, assim, deve apenas traduzir a realidade fática, sob pena de reduzir-se a um mero tecnicismo vazio. As constituições democráticas atuais reconhecem as diversas formas de famílias, das tradicionais às mais diferentes, ou seja, daquelas constituídas pelo casamento, pelas uniões estáveis ou monoparentais.
Nesse mesmo momento se dá a era da despatrimonialização do Direito Civil, que elevou a dignidade da pessoa humana a fundamento das constituições democráticas, toda a ordem jurídica deve ter seu foco na pessoa, em detrimento do patrimônio, que antes comandava todas as relações interprivadas. A Família, afinal, é lugar privilegiado da realização da pessoa, pois é aí que se inicia e se desenvolve todo o processo de formação da personalidade do sujeito. A Família deixou, portanto, de ser um núcleo econômico e de reprodução para ser o espaço do amor e do afeto.
Trata-se de buscar um Direito de Família mais adequado às novas realidades sociais de convivência humana e buscar uma estrutura familiar menos produtora de psicopatologias, porque menos opressora, mais autêntica, mais verdadeira mais sincera, menos impregnada de hipocrisias e falsidades, mais regada pela afeição, mais igualitária, mais solidária.
Desta forma, ao mesmo passo que a humanidade abriu suas fronteiras, reposicionou seu pensamento quanto ao capital econômico, proporcionou avanços na seara do consumo, inclusive favorecendo para que nascesse a era do hiperconsumismo, deu um passo contrário quanto às famílias e os relacionamentos interpessoais. Nesse sentido, os casamentos arranjados, a desvalorização do sujeito, a monetarização das trocas afetivas, deram espaço para uma relação baseada na compreensão, no amor, no carinho, no cuidado, na presença e no companheirismo.
Assim, não é a lei jurídica que determina o afeto dos entes que se unem para a satisfazer o desejo da aproximação; outro poder dirige ou guia essa união, santificando. O Direito intervém somente para regular socialmente os efeitos humanos desta união, declarando as relações que surgem da constituição do ente social que se formou.
3. A família constitucional: o berço do afeto
Costuma-se afirmar que a Constituição representa uma infindável série de escolhas, o que enseja questionamentos sobre se deve ser vista como um texto, uma intenção, uma ordem de deduções estruturais ou uma séria de premissas políticas e morais.
A nossa Constituição de 1988 traz consigo valores solidaristas e igualitários, sedimentando uma nova face do Direito de Família.
O art. 226, caput, do texto constitucional, ao estabelecer que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, reconhece a importância do organismo familiar para a formação e manutenção da sociedade, sendo que o modelo unitário da família matrimonial foi ampliado para vários (plurais) modelos de famílias que não se esgotam no rol previsto constitucionalmente.
Sem família não há sociedade, dá a especial proteção que o Estado deve dar às famílias, não mais consagradas como instituições independentes, mas em razão da tutela das pessoas humanas que as integram, independentemente do modelo escolhido ou existente.
A entidade familiar passou a ser o meio de realização da dignidade e das potencialidades de seus membros. Assim, a efetividade das normas constitucionais implica a defesa dos organismos sociais e familiares, que cumprem o seu papel maior.
3.1 Os princípios constitucionais
Tendo em vista a importância dos princípios para o Direito de Família e, em especial, para o estudo da formação das entidades familiares, faz-se necessário abrirmos um estudo que proporcione a análise desta concepção.
A nova conformação do Direito de Família passa a ser guiado por novos princípios, como: a) o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1, inciso III, da CF); b) o princípio da igualdade (art. 5, caput, e art. 226, parágrafo 5, da CF); c) o princípio da solidariedade (art. 3, inciso I, da CF); d) o princípio da paternidade responsável (art. 226, parágrafo 7, da CF); e) o princípio do pluralismo das entidades familiares (art. 226, parágrafos 3 e 4, da CF); f) o princípio da tutela especial à família, independente da espécie (art. 226, caput, da CF); g) o dever de convivência familiar (art. 227, caput, da CF); h) a proteção integral da criança e adolescente (art. 227, caput, da CF); e i) a isonomia entre os filhos (art. 227, parágrafo 6, da CF)[4].
Do princípio da dignidade da pessoa humana decorreram a despatrimonialização e a repersonalização das relações de família, valorizando-se os aspectos existenciais e procurando-se garantir, acima de tudo, os direitos da personalidade de cada membro do grupo familiar.
O projeto baseado no afeto passa a ser o ponto mais relevante entre os entes familiares. Assim, a confiança, respeito, colaboração, união e solidariedade propiciam o desenvolvimento sob o prisma dos valores morais, éticos e sociais.
O princípio da igualdade marcou a democratização da entidade familiar, com o estabelecimento do poder parental desenvolvido em igualdades de condições.
Por sua vez, o solidarismo é valor característico dos tempos contemporâneos e, por óbvio, as famílias representam as entidades mais capazes e adequadas para sua mais perfeita concretização com base na idéia de cooperação, auxílio moral e material recíprocos.
A paternidade responsável se expressa através do direito do planejamento familiar e da obrigação dos pais de respeitar, educar, criar e auxiliar material e imaterialmente seus filhos.
O princípio da tutela especial da família, consagrado no art. 226, caput, do texto constitucional, obriga o Estado a protegê-la, na forma de cada membro e não a uma abstrata comunidade familiar.
A proteção integral da criança e do adolescente restou consagrada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 1 da Lei 8.069/90), sendo uma das mais avançadas legislações do mundo, em substituição à doutrina do menor em situação irregular.
Quanto à isonomia entre os filhos, nasce, definitivamente, a proibição de designações discriminatórias, vedando distinções em razão da origem da filiação.
Entretanto, os princípios da pluralidade das entidades familiares e o dever de convivência familiar, merecem uma análise apartada, visto as suas riquezas e sua importância para o desenvolvimento do princípio da afetividade no Direito de Família.
3.2 A afetividade como princípio constitucional
O princípio da afetividade, no entanto, não está previsto de forma expressa no ordenamento jurídico, mas a Constituição Federal, ao estabelecer a pluraridade das entidades familiares, reconhece a afetividade como base da família.
A afetividade, como elemento formador da família, deve se adaptar aos anseios do ser humano e acompanhar suas transformações. Segundo Maria Berenice Dias:
“A família transforma-se na medida em que se acentuam as relações de sentimentos entre seus membros: valorizam-se as funções afetivas da família […] A comunhão de afeto é incompatível com o modelo único, matrimonializado da família. Por isso, a afetividade entrou nas cogitações dos juristas, buscando explicar as relações familiares contemporâneas”[5].
O princípio da afetividade possui, então, papel imprescindível para a fundamentação da formação das famílias, sendo capaz de explicar a necessidade do pluralismo das entidades familiares para a sociedade contemporânea.
Por sua vez, sem menos importância de salientarmos, Rodrigo da Cunha Pereira afirma que um dos fulcros constitucionais que albergam o princípio da afetividade encontra-se no art. 226, parágrafo 8, da Constituição Federal, no momento em que: “assimila o marco ora tratado da nova família, com contornos diferenciados, pois prioriza a necessidade da realização da personalidade dos seus membros, ou seja, a família-função, em que subsiste a afetividade que, por sua vez, justifica a permanência da entidade familiar”[6].
A liberdade de afeiçoar-se um ser ao outro é muito semelhante à liberdade de contratar um com outro. Esta analogia entre afeição e contrato serve para um fim justo: mostrar que, como na liberdade de contratar, também a liberdade de afeto é um direito individual implícito na Constituição Federal de 1988, cujo parágrafo 2 do art. 5 não exclui direitos que, mesmo não declarados, decorram do regime e dos princípios por ela adotados.
Ambas as liberdades são inerentes ao relacionamento social. Se negadas – ou tolhidas – implicam a desfiguração do Estado Democrático de Direito e das liberdades – ainda que não declaradas expressamente – é renegar ao regime e aos princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito exigido pelo art. 1 da Constituição.
Corolário de todas as transformações e princípios foi o reconhecimento de que, acima de uma realidade formal, a família deve cumprir uma função social, permitindo a plena realização de seus membros, em prol de toda a sociedade.
Ainda, o dever de convivência valorizou o afeto nas relações familiares, vez que assumiu relevância jurídica e se expressa, por exemplo, na exigência da affectio maritalis (como decorrência do sentimento recíproco de amor entre o casal) e no reconhecimento da paternidade socioafetiva, na qual o vínculo sentimental entre pais e filhos pode, muitas vezes, se sobrepor às relações de consanguinidade. A família, a partir de agora, passa a ser um “núcleo socioafetivo que transcende a mera formalidade”[7].
Como se vê, o modelo único e tradicional de família, o matrimonializado, no qual se baseia as antigas funções da família (econômica, política, religiosa e procriativa) perde seu espaço para os atuais vínculos familiares que se fundamentam na afetividade para o desenvolvimento pessoal de cada um dos envolvidos na relação.
4. Família e afetividade
As famílias se constituem, de modo geral e atualmente, baseadas em sentimentos de amor e solidariedade, com propósitos de serem preservados os laços afetivos de atenção, carinho, cuidado e proteção dos parceiros e da prole, buscando a realização de projetos de forma compartilhada.
Assim, a família se forma através do afeto e transforma seus seres a partir do afeto. Desta forma, são as relações familiares que despertam o entendimento baseado na compreensão e no carinho.
Segundo a filósofa Maria Lúcia de Arruda Aranha, o amor (afeto) em suas várias formas, é visto pelos filósofos de dois modos: “como unidade e identificação total entre dois seres; e como troca recíproca entre seres individuais e autônomos”. Dentro desta última perspectiva, “a troca recíproca, emotivamente controlada, de atenções e cuidados tem por finalidade o bem do outro como se fosse o seu próprio”[8].
Famílias são sistemas sociais complexos – ou seja, redes de relacionamentos recíprocas e alianças que estão constantemente evoluindo e que são muito influenciadas pela comunidade e pela cultura. Além do que, a abordagem sistêmica da família reconhece que os pais influenciam seus filhos, assim como as crianças influenciam o comportamento e as práticas educacionais de seus pais[9].
Desta forma, considerar a família como sendo um sistema é considerar que as interações, entre quaisquer dos membros (nuclear e/ou extensa)[10], provavelmente serão influenciadas pelas atitudes e comportamentos dos outros.
Assim, as interações refletem efeitos diretos ou indiretos, dependendo da instância que se deu a interação. Pois, os efeitos diretos são frutos das interações de dois ou mais membros da mesma família, ao passo que os efeitos indiretos provêm da interferência de um terceiro membro familiar.
David Shaffer, brilhantemente, nos transmite seus ensinamentos no mesmo sentido:
“Em suma, até mesmo a mais simples das famílias é um sistema social verdadeiro e muito maior que a soma de suas partes. Não apenas cada membro familiar influencia o comportamento de todos os outros, como a relação entre dois de seus membros pode afetar a interação e as relações entre todos os outros membros”[11].
Por esta razão, é que o instituto familiar merece tamanha dedicação de estudo e análise, sempre priorizando o seu maior bem a ser preservado: o afeto.
4.1 A interação do afeto nas relações de família
Desde a primitividade o afeto está intimamente ligado ao sentido de família.
O direito ao afeto é a liberdade de afeiçoar-se um indivíduo ao outro. O afeto ou afeição constitui, pois, um direito individual: uma liberdade que o Estado deve assegurar a cada indivíduo.
O alcance das partes é sublime, num movimento divino, sempre com a intenção de eternizar o amor através da vontade de perpetuação de uma vida coberta de permanente afeto.
Mesmo com a intervenção do estado no ditame dos deveres comuns das sociedades familiares, o afeto se integra e sem ele não existiria o elemento fundamental da intenção volitiva para a formação da família.
O ser humano, enquanto ser social, deve ser visto em aspecto individual, mas também em seu aspecto social, sendo a família o primeiro e privilegiado núcleo de integração social. Como ressalta Sérgio Gischkow:
“Uma família que experimente a convivência do afeto, da liberdade, da veracidade, da responsabilidade mútua, haverá de gerar um grupo familiar não fechado egoisticamente em si mesmo, mas sim voltado para as angústias e problemas de toda a coletividade, passo relevante à correção das injustiças sociais.
A renovação saudável dos vínculos familiares, estruturados na afeição concreta e na comunicação não opressiva, produzirá número muito menor de situações psicopatológicas, originadas de ligações inadequadas, quer pela dominação prepotente, quer pela permissividade irresponsável”[12].
Jay Belsky compartilha seus estudos e nos demonstra, sob o enfoque da psicologia, que “pais carinhosos e sensíveis, que normalmente conversam com seus filhos e tentam estimular sua curiosidade, contribuem de modo positivo para o estabelecimento de apegos emocionais seguros e para a sociabilidade”[13].
Neste sentido, é a partir da formação da estrutura familiar, sob o modo de como interagem seus membros, que é formada a interação afetiva. Assim, o afeto que constrói a família atual, constitucionalizada, também transforma seus membros e serve de combustível crucial para gerar afeto aos novos membros da família.
4.2 O papel da família para o desenvolvimento do afeto
Se hoje se considera que “as trocas afetivas na família imprimem marcas que as pessoas carregam a vida toda, definindo direções no modo de ser com os outros afetivamente e no modo de agir com as pessoas”[14] e que esse “ser com os outros, aprendido com as pessoas significativas, prolonga-se por muitos anos e frequentemente projeta-se nas famílias que se formam posteriormente”[15], é conveniente esclarecermos que a família, principalmente fundada nas relações de afeto e de amor, são os pontos responsáveis pela formação de indivíduos equilibrados e desenvolvidos emocionalmente.
A professora Schreiber[16] nos esclarece sobre a função da família para o desenvolvimento da criança:
O papel da família é, pois, de significado incontestável para o desenvolvimento sadio da criança. Uma família centrada no afeto, [grifo nosso] seja qual for a sua composição externa, saberá lidar com os problemas da vida moderna e com as frustrações psicológicas que a todos alcançam, para administrá-las com equilíbrio.
O tratamento carinhoso e respeitoso é, sem dúvida, o que melhor atende ao interesse da criança e do adolescente. Assim, na falta do carinho, do afeto e do respeito, nega-se um direito fundamental à criança e prejudica-se sua personalidade. O afeto é elemento importante na formação da personalidade saudável.
Ressalta a professora de psicologia Paula Inez Cunha Gomide que a negligência é caracterizada pela desatenção, pela ausência, pelo descaso, pela omissão ou, simplesmente, pela falta de amor[17].
Por sua vez, a figura de pai e de mãe para uma criança é aquela com que ela tem relações sentimentais, são as mãos que a acariciam. É o afeto que se coloca na boca, no coração, nos gestos etc., é o que chamamos de amor, conforme diz Nogueira[18], a qual também assegura que:
“Pode-se dizer que existem dois momentos referentes à filiação: um fisiológico, que determina a filiação biológica, e um psicológico, que determina a filiação afetiva, sendo esta decorrente da criança se sentir segura e desejada. Os próprios pais biológicos podem ser os que atendam as necessidades psicológicas, mas, quando estes são ausentes e não estabelecem vínculos com a criança, são para os sentimentos dela, simplesmente estranhos.”
Um cuidador carinhoso e sensível é “a dimensão mais influente da parentalidade durante a infância, além de estimular o funcionamento psicológico saudável durante a época de desenvolvimento, constrói bases para experiências futuras”[19]
Não apenas no direito, mas em praticamente todas as áreas do relacionamento humano, há uma crescente compreensão acerca do acolhimento do afeto como linguagem integrante da condição humana. Na área educacional[20], a afetividade possui ingerência constante no funcionamento da inteligência do ser humano, estimulando-o ou perturbando-o, acelerando-o ou retardando-o[21]. Com efeito, para Vygotsky, a linguagem afetiva atua na construção das relações do ser humano a partir de uma perspectiva pessoal, social e cultural. Historia Jean Piaget “a afetividade seria como a gasolina, que ativa o motor de um carro”. Em outro momento, o autor[22], certifica que “a afetividade é a energética da ação e, de modo mais enfático, que a afetividade e a inteligência são, assim, indissociáveis, e constituem os dois aspectos complementares de toda conduta humana”.
Por esta razão, que se diz que o afeto é arte, canto, poesia, sabedoria, linguagem, educação, conhecimento, inteligência, saúde, felicidade, liberdade[23], enfim, afeto é o tempero da vida e o portal para a construção da personalidade da pessoa humana. Daí a importância da família instituída no afeto.
5. Considerações Finais
Com o passar do tempo, a sociedade evoluiu trazendo consigo a valorização das relações afetivas e, conseqüentemente, da pessoa humana. A família perdeu a função meramente procriadora e a mulher buscou seu lugar na sociedade. Assim, a concepção de família, hoje, é muito mais abrangente e seus componentes vivem de maneira igualitária.
A evolução política, econômica e social foram palco para a transformação da dimensão de família que se deu desde o Código de 1916 até aos Princípios Constitucionais consagrados na carta de 1988.
Neste ambiente de inovações e adaptações é que os novos modelos familiares, formados pela união de afeto, passaram a fazer parte do Direito de Família. Assim, regido pelos princípios e regras constitucionais, pelas regras e princípios gerais do direito de família aplicáveis e pela contemplação de suas especificidades, a tutela da afetividade e da realização da personalidade humana, houve a formação social onde se pode nascer, ser, amadurecer e desenvolver os valores da pessoa.
Desta maneira, podemos perceber como a função social da família influencia e justifica as normas reguladoras neste campo. A evolução do Direito de Família é verificada como reflexo da própria evolução da sociedade, revelando-se claro o redirecionamento das relações familiares no sentido de preservar o que há de mais importante nas famílias: o sentimento afetivo, a solidariedade, a proteção mútua, o respeito, a consideração.
O projeto familiar se vincula indissoluvelmente à noção de função social da família, e quanto melhor for observado à luz dos valores e princípios constitucionais, efetivamente, ter-se-á o cumprimento dos preceitos do Estado Democrático de Direito.
Advogada. Especialista em Direito de Família e Sucessões, pela Faculdade IDC; Pós-Graduanda em Bioética pela PUC/RS; Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC/RS; Diretora Estadual (RS) da ABRAFAM, Associação Brasileira dos Advogados de Família; Palestrante; Parecerista e Consultora Jurídica.
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