O presente artigo tem como objetivo refletir sobre possíveis parâmetros para a interpretação do art. 927, parágrafo único, do CC – que introduziu no direito brasileiro uma norma geral de responsabilidade objetiva – com base nas funções normalmente atribuídas à responsabilidade e nos princípios desenvolvidos pela doutrina para justificar a imputação de responsabilidade sem culpa.
A[1] responsabilidade civil objetiva, isto é, sem culpa, não é uma novidade no ordenamento jurídico brasileiro. Pelo contrário. Anteriormente à entrada em vigor do Código Civil (CC) de 2002, diversas leis já a previam, desde, por exemplo, o Dec. 2.681, de 07.12.1912, sobre as estradas de ferro (determinando a responsabilidade objetiva por danos causados a passageiros e proprietários marginais) até – dentre as mais recentes – o Código de Defesa do Consumidor (Lei .8078, de 11.09.1990).
O próprio CC de 1916, embora consagrasse como regra geral a responsabilidade fundada na culpa, previa também diversos casos de responsabilidade objetiva.[2]
Ainda assim, pode-se dizer que o CC de 2002 apresenta, em termos de responsabilidade civil, uma tendência à objetivação.
Os casos de responsabilidade sem culpa previstos pelo Código anterior foram mantidos (art. 938, por exemplo); ao seu lado foram incorporados expressamente casos de responsabilidade objetiva desenvolvidos pela jurisprudência (art. 932, I, II, III), presunções iuris tantum de culpa foram abandonadas (art. 936) e, principalmente, incluiu-se o parágrafo único do art. 927, dispositivo sem correspondente no Código anterior.
Estabelece o art. 927, parágrafo único, do CC:
“Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem” (grifos nossos).
O art. 927, parágrafo único, é especialmente interessante por tratar-se de uma cláusula geral de responsabilidade objetiva.
Até o advento do CC de 2002, a responsabilidade subjetiva era a regra, prevista pelo art. 159 do CC de 1916. Os casos de responsabilidade objetiva, considerados excepcionais, eram previstos por normas específicas.
O art. 927, parágrafo único, não prevê uma hipótese específica de responsabilidade objetiva. Ao contrário, trata-se de norma bastante ampla, na qual o legislador empregou termos cujo sentido é ainda indefinido.
O que é atividade? Quando se considera que alguém a desenvolve normalmente? Como saber o que se deve considerar atividade de risco por natureza?
Tais questões foram deixadas em aberto pelo legislador e serão respondidas pelo Poder Judiciário.[3]
A proposta deste texto é refletir sobre possíveis parâmetros para a interpretação do art. 927, parágrafo único, com base nas funções a serem cumpridas pela responsabilidade civil e na tradição doutrinária e jurisprudencial sobre a responsabilidade objetiva em geral.
1 FUNÇÕES (E LIMITES) DA RESPONSABILIDADE CIVIL
Historicamente, atribuíram-se à responsabilidade civil funções diversas, mas relacionadas entre si: punir um culpado, vingar a vítima, indenizar a vítima, restabelecer a ordem social e prevenir comportamentos anti-sociais.[4]
A partir do século XIX, a responsabilidade sofreu transformações importantes, que alteraram o modo como se enxergam suas funções.
Em primeiro lugar, como resultado das pesquisas desenvolvidas no campo da criminologia, a partir dos positivistas do século XIX, desapareceram os fundamentos de três dessas funções tradicionais da responsabilidade: a punição, a vingança e o restabelecimento da ordem social.[5]
Além disso, mudanças sociais levaram a um grande aumento dos casos de danos acidentais, a partir, principalmente, do final do século XIX, como conseqüência da industrialização. Em situações de danos causados acidentalmente, isto é, sem culpa, não faz sentido a punição do autor do prejuízo, nem o restabelecimento da ordem social. Nesse contexto, o mais importante é cuidar da indenização da vítima.[6]
A isso aliou-se o desenvolvimento dos seguros. O seguro oferece uma forma de reparação coletiva dos danos que, ao mesmo tempo em que modificou o modo como se encarava o problema da reparação da vítima, contribuiu ainda para o enfraquecimento das funções punitiva e preventiva da responsabilidade civil, uma vez que, havendo seguro, o causador do dano não é quem o indeniza.[7]
Atualmente, pode-se afirmar serem três as principais funções exercidas pela responsabilidade civil: indenização da vítima, distribuição dos danos entre os membros da sociedade e prevenção de comportamentos anti-sociais.[8]
A maior ou menor adequação da responsabilidade civil para a realização dessas três funções varia de acordo com o caso e com o modo como o direito a regula. Nem sempre a atribuição de responsabilidade civil é o meio mais adequado para atingir os objetivos de prevenir comportamentos anti-sociais, garantir a indenização da vítima e distribuir danos.
Ademais, a realização simultânea desses objetivos pode ser difícil, pois, em alguns casos, para atingir um deles, compromete-se a realização do outro. O estabelecimento de seguros de responsabilidade civil obrigatórios, por exemplo, facilita a indenização das vítimas, pois distribui os danos entre todos os segurados, diminuindo o risco de o prejudicado ficar sem indenização por insolvência do responsável, mas, por outro lado, compromete a função preventiva da responsabilidade.[9]
Na realidade, a responsabilidade civil é simplesmente uma das ferramentas por meio das quais a sociedade persegue esses objetivos. Além da responsabilidade, esses mesmos fins são buscados também por meio, por exemplo, de controle e sanções administrativas e penais (para prevenção de comportamentos anti-sociais), da criação de um sistema previdenciário ou da realização de seguros obrigatórios (para indenização da vítima e distribuição de danos).[10]
Diante disso, é interessante analisar um pouco mais de perto essas três principais funções da responsabilidade civil nos dias de hoje e algumas de suas limitações.
1.1 Indenização da vítima
Desde que, historicamente, a responsabilidade civil se dissociou da idéia de crime, sua função de indenização ganhou destaque.[11]
Trata-se de uma função inegável da responsabilidade civil, mas que apresenta limitações importantes.
Em primeiro lugar, a responsabilidade civil faz correr por conta da vítima o risco da insolvência do responsável. O seguro diminui esse risco e torna a responsabilidade um meio mais eficiente de indenização.[12]
Além disso, ela implica um custo alto, devido ao longo processo judicial normalmente necessário, tornando-se inacessível para a vítima em muitos casos.[13] A existência de seguro não resolve esse problema, pois não elimina o processo judicial.
1.2 Distribuição dos danos
Em certos casos – especialmente naqueles de danos acidentais[14] – ao mesmo tempo em que se faz necessário indenizar a vítima, não é justo atribuir o fardo da indenização ao autor do fato danoso. Nessas situações, é conveniente distribuir o dever de indenizar entre os membros de uma coletividade, diminuindo o ônus individual.
A responsabilidade civil pode ser um instrumento direto ou indireto de distribuição de danos.[15] É meio direto quando o responsável pode repartir o valor da indenização diretamente entre um grupo de pessoas, como o fornecedor que incorpora ao preço de seu produto o valor correspondente às indenizações por danos causados por bens defeituosos. É meio indireto quando o responsável realiza um seguro de responsabilidade civil, hipótese em que os danos são distribuídos entre todos os segurados.
Aqui, mais uma vez, a responsabilidade é somente um dos instrumentos disponíveis. A previdência social, por exemplo, é outro meio para diluição dos riscos de danos entre os membros da sociedade.[16]
Além disso, algumas vezes, a distribuição de danos por meio da responsabilidade civil pode ter um efeito preventivo geral indesejável, tornando economicamente inviável uma atividade socialmente importante.[17]
1.3 Prevenção de comportamentos anti-sociais
A responsabilidade civil pode ter dois tipos de efeitos preventivos.[18] Um efeito preventivo específico, decorrente da ameaça da sanção de reparação. E um efeito preventivo geral, consistente na eliminação de certas atividades perigosas como conseqüência da imposição de responsabilidade em uma economia de mercado.[19]
O efeito preventivo específico da responsabilidade civil não é o mesmo em relação a todos os comportamentos anti-sociais. A experiência comprova, por exemplo, que a ameaça de imposição de uma obrigação de indenizar não previne a prática de ilícitos violentos. Por outro lado, a responsabilidade civil pode ser uma forma de dissuasão bastante útil em outras situações, como no caso de violações ao direito à privacidade praticadas pelos meios de comunicação.[20]
No caso dos danos causados acidentalmente, isto é, sem culpa, o efeito preventivo da responsabilidade civil tende a ser limitado, mas existe.
Se uma atividade oferece riscos inevitáveis, de modo que mesmo o comportamento mais cuidadoso de quem a exerce não é capaz de impedir a ocorrência de danos, a imposição de responsabilidade não poderá de mudar essa realidade. Por outro lado, mesmo nesses casos, é claro que o comportamento descuidado é capaz de aumentar os riscos oferecidos pela atividade. Sendo assim, a imposição de responsabilidade civil terá o efeito de prevenir a ocorrência de danos até o limite em que o exercício cuidadoso da atividade em questão pode evitá-los.[21]
De todo modo, a responsabilidade deve ser apenas um dos mecanismos em uma política de prevenção de acidentes. A experiência comprova que há outros meios, muitas vezes mais eficazes, de prevenção desse tipo de dano, como o controle e a fiscalização efetivos das atividades perigosas.[22]
Tomando o exemplo de A. Tunc,[23] o paciente confia no médico porque sabe que ele não pode exercer sua atividade sem possuir um diploma, e não por causa de sua responsabilidade pelos danos que eventualmente causar à saúde dos clientes.
2. PRINCÍPIOS JUSTIFICADORES DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA
As normas de responsabilidade civil não têm o poder de desfazer o acontecido. Isso significa que, uma vez ocorrido um dano, o direito, por meio das normas de responsabilidade civil, cuida apenas de estabelecer quem deve suportá-lo.
Desde que o tema da responsabilidade sem culpa passou a ocupar os civilistas, muitas foram as justificativas apresentadas pela doutrina para a atribuição desse ônus a uma ou outra pessoa.
A questão da responsabilidade sem culpa, embora já houvesse sido tratada anteriormente,[24] ganhou grande importância teórica e prática na Europa no final do século XIX, em virtude da relevância que adquiriram nessa época alguns problemas típicos das sociedades industrializadas, começando pelos acidentes de trabalho e envolvendo, posteriormente, os acidentes de trânsito e de consumo.[25]
A doutrina alemã foi pioneira neste tema,[26] G. Marton[27] identifica o penalista alemão K. Binding como o primeiro a ocupar-se dos fundamentos teóricos da responsabilidade civil objetiva, em obra publicada em 1872.
Na Itália, o precursor da teoria da responsabilidade objetiva foi G. Venezian, que publicou obra a respeito do tema em 1884.[28]
Na França, são considerados fundadores da teoria da responsabilidade objetiva R. Saleilles e L. Josserand.[29]
R. Saleilles partiu da análise da jurisprudência em matéria de acidentes de trabalho. Após haver demonstrado que os tribunais franceses vinham alargando cada vez mais o conceito de culpa (faute), com o objetivo de proteger os trabalhadores, o autor demonstrou que as soluções jurisprudenciais não se adequavam mais à teoria da culpa e estavam mais de acordo com a idéia de que os prejuízos decorrentes de uma atividade devem ser atribuídos a quem a controla e dela extrai vantagem.
Ele defendeu ainda que tal raciocínio não se aplicava apenas aos acidentes de trabalho, mas a toda atividade individual, considerando ser a concepção da responsabilidade por risco – como se denominou a nova teoria – a inspiração do art. 1.384 do CC francês.
L. Josserand, que se juntou a R. Saleilles na defesa da teoria do risco a partir de 1897, defendia a aplicação da responsabilidade objetiva a todos os acidentes decorrentes do fato de uma coisa.
A teoria do risco, de R. Saleilles e L. Josserand, obteve grande repercussão e foi adotada gradativamente pela jurisprudência e pela legislação francesas.[30]
No doutrina brasileira encontramos a matéria tratada de modo muito bem sintetizado por C. M. da Silva Pereira,[31] segundo o qual, diversas modalidades de teoria do risco inspiraram os diversos autores, resultando na formação de subespécies da teoria do risco.
O autor apresenta uma sinopse dessas subespécies da teoria do risco: teoria do risco integral, teoria do risco-proveito, teoria do risco profissional e teoria do risco criado.
De acordo com a teoria do risco integral, todo fato que provoque um dano deve resultar na responsabilização do agente. Essa teoria não obteve repercussão no direito privado.
Segundo a teoria do risco profissional, há dever de indenizar “quando o fato prejudicial é uma decorrência da atividade ou profissão do lesado”.[32]
A teoria do risco profissional sujeita o empregador a ressarcir danos resultantes de acidentes envolvendo seus empregados, no trabalho ou por ocasião dele.
A teoria do risco-proveito teve ampla repercussão. Baseia-se na idéia de que a responsabilidade deve ser imputada a quem retira proveito ou vantagem do fato causador do dano: ubi emolumentum, ibi onus.
Problema dessa teoria é definir o que se deve considerar como proveito ou vantagem.
Por fim, o próprio C. M. da Silva Pereira[33] defende a teoria do risco criado, segundo a qual se atribui a responsabilidade ao sujeito que cria o risco.
Ela é, segundo o autor, mais ampla do que a teoria do risco proveito, pois não depende do fato de ser o dano correlativo de um proveito ou vantagem para o agente.
A crítica que G. Marton[34] dirige à doutrina francesa pode ser feita igualmente a esta doutrina brasileira. Quando procuram se filiar a alguma das subespécies da teoria do risco, os autores acabam por adotar apenas um princípio para fundamentar a responsabilidade objetiva. Ainda que o princípio adotado seja de fato fundamental, encarar a questão de um único ponto de vista impede que se compreenda o problema da responsabilidade civil. Para compreendê-lo, é preciso tratar os princípios apontados pela doutrina como um conjunto de idéias justificadoras da responsabilidade objetiva.[35]
A percepção do modo como vários princípios se combinam para justificar a imposição de responsabilidade objetiva depende de se ter em mente o papel das normas de imputação de responsabilidade, que é interromper o fluxo infinito dos acontecimentos – um novelo confuso de múltiplas relações de causalidade – em um ponto determinado, para atribuir a uma pessoa – o responsável – um certo fato e suas conseqüências.[36]
A interrupção do fluxo dos acontecimentos em um determinado ponto e a imputação de alguns fatos a um indivíduo não é a única forma de lidar com a questão da responsabilidade. O novelo das relações de causalidade pode ser interrompido em pontos diversos e os fatos podem ser atribuídos a uma pessoa, a outra pessoa, a uma coletividade, ao destino etc.
De modo que a imputação de um fato determinado a uma pessoa considerada responsável por ele e suas conseqüências é uma opção feita dentre várias soluções possíveis.[37] É essa opção que precisa ser justificada, se não se quer que ela seja totalmente arbitrária. Naturalmente, a opção pode variar de acordo com o caso. Pode-se escolher atribuir certo fato ao destino, deixando a cargo da vítima os danos dele decorrentes e optar por imputar um outro fato a um indivíduo determinado, que será então condenado a indenizar a vítima.[38]
Muitas vezes, essa opção é feita bastante claramente pelo legislador. Diante da cláusula geral do art. 927, parágrafo único, no entanto, conclui-se que tal tarefa foi atribuída ao juiz.
Os vários princípios desenvolvidos pela doutrina para justificar a imputação de responsabilidade objetiva podem ser sintetizados da seguinte maneira e relacionam-se estreitamente com as funções da responsabilidade civil, como se percebe facilmente.[39]
2.1 Princípio da correspondência entre risco e vantagem
A visão mais antiga e mais disseminada da responsabilidade objetiva a justifica com base na idéia de que o beneficiado por uma atividade deve arcar com os prejuízos dela decorrentes (ubi emolumentum, ibi onus).[40]
Trata-se do princípio fundamental da teoria do risco-proveito, referida acima.
A maior dificuldade relativa a esse princípio, como já se disse, é estabelecer o que deve ser considerado benefício: apenas vantagens pecuniárias ou quaisquer vantagens.
No limite, é possível considerar, como G. Marton,[41] que “todos os que agem livremente, por vontade própria, o fazem em seu próprio interesse” (tradução nossa), obtendo, portanto, um benefício.
O princípio da correspondência entre risco e vantagem é especialmente convincente como fundamento da responsabilidade de profissionais, pois estes podem distribuir o risco entre seus clientes, igualmente beneficiários da manutenção da fonte de risco, por meio do preço.[42]
2.2 Princípio do risco extraordinário
Toda atividade humana envolve riscos. Dirigir um automóvel, praticar um esporte, até andar a pé envolve o risco de sofrer danos.[43] O próprio fato de ocorrer um acidente qualquer é a comprovação de que a atividade em questão envolvia algum risco.
O ordenamento jurídico, ao regular a responsabilidade civil, define o modo como esses riscos deverão ser distribuídos. Ao estabelecer a responsabilidade subjetiva, o legislador atribui à vítima os riscos envolvidos em dada situação, a não ser que haja dolo ou culpa de quem deu causa ao dano.[44] Ao estabelecer a responsabilidade objetiva, por outro lado, o direito desloca da vítima para uma outra pessoa o ônus de arcar com os riscos da situação.
Uma justificativa para esse tratamento diferenciado dos riscos envolvidos nas mais diversas situações da vida é a idéia de risco extraordinário (besondere Gefahr, na doutrina alemã),[45] isto é, um risco acima do normal.[46]
O caráter extraordinário do risco pode ser determinado pela grande probabilidade da ocorrência de danos, pelo valor elevado dos prejuízos potenciais ou pelo desconhecimento do potencial danoso da situação ou atividade regulada.[47]
2.3 Princípio da causa do risco
De acordo com o princípio da causa do risco, a responsabilidade deve ser atribuída a quem deu causa ao dano, isto é, ao sujeito que mantém a fonte do risco.[48]
Esse princípio relaciona-se de modo íntimo com o princípio da prevenção, tratado abaixo, pois, normalmente, o sujeito que mantém a fonte de risco é quem a conhece melhor e está na melhor posição para evitar, na medida do possível, a ocorrência de danos.
Como já se disse, há uma teoria que baseia toda a responsabilidade objetiva unicamente na relação de causalidade (teoria do risco integral).[49]
Embora esse princípio não seja suficiente para justificar sozinho a responsabilidade objetiva, ele é certamente fundamental.[50] Além da sua relação com o princípio da prevenção, o princípio da causa do risco garante a existência de um vínculo entre o evento danoso e o responsável.
2.4 Princípio da prevenção
De acordo com o princípio da prevenção, a responsabilidade se atribui ao sujeito em melhores condições para controlar e reduzir os riscos de dano.[51]
A responsabilidade objetiva tem um papel preventivo reduzido, quando se aplica a fatos cuja ocorrência independe do comportamento cuidadoso do agente.[52] No entanto, embora não seja possível eliminar todos os riscos, é certo que eles podem ser maiores ou menores, dependendo do modo como a atividade é exercida.
O sujeito que controla a fonte de risco pode, por meio de certas medidas, reduzir o risco ao nível mais baixo possível. A imposição de responsabilidade é um incentivo para que ele o faça.[53]
2.5 Princípio da distribuição dos danos
De acordo com esse princípio, tendo em vista que uma das funções da responsabilidade é distribuir os danos, ela deve ser atribuída ao sujeito em melhores condições para repartir o prejuízo, de modo que um número maior de pessoas o suporte e seja diminuído o fardo individual.[54]
2.6 Princípio da eqüidade
Segundo o princípio da eqüidade (referido às vezes pela expressão richesse oblige), a responsabilidade se atribui a quem tem as melhores condições de suportar o prejuízo do ponto de vista econômico.[55]
Naturalmente, este princípio não é justificativa suficiente para a responsabilidade objetiva, se considerado isoladamente.[56]
No entanto, pode ser considerado uma justificativa complementar para a atribuição deste tipo de responsabilidade.
2.6 Exemplos de combinações de princípios
Para demonstrar como os vários princípios acima se combinam de modo variado para justificar a responsabilidade civil objetiva em situações diversas, pode-se ilustrar o problema com alguns exemplos do direito brasileiro.
A imputação de responsabilidade sem culpa ao dono ou detentor de animal (CC, art. 936) pode se considerar justificada principalmente pelos princípios da causa do risco e da prevenção e, em menor medida, pelo princípio da correspondência entre risco e vantagem, entendida a vantagem em sentido amplo.
A responsabilidade por acidentes nucleares (Lei 6.453, de 17.10.1977), por outro lado, justifica-se principalmente pelo princípio do risco extraordinário, mas também pelos princípios da causa do risco, da distribuição dos danos, da correspondência entre risco e vantagem e, em menor medida, pelo princípio da prevenção.
A responsabilidade pelo fato do produto (CDC, art. 12), por sua vez, justifica-se essencialmente pelos princípios da correspondência entre risco e vantagem, da distribuição dos danos e da causa do risco, bem como, de modo secundário, pelos princípios do risco extraordinário, da prevenção e da eqüidade.
Já na justificação da responsabilidade objetiva do Estado pelos danos causados por seus agentes (CF, art. 37, XXI, § 6.º, e CC, art. 43) predomina o princípio da distribuição, secundado pelo princípio da eqüidade.
Mesmos nas situações em que um mesmo princípio justifica a atribuição de responsabilidade, sua relevância varia em cada caso. Assim, por exemplo, a importância do princípio da prevenção é muito maior no caso da responsabilidade do dono ou detentor de animal do que no caso da responsabilidade por acidentes nucleares, já que a possibilidade de prevenção de danos por meio do comportamento do responsável é muito maior no primeiro caso do que no segundo, tendo-se em vista que a tarefa de vigiar e controlar um animal é bem menos complexa do que a de controlar uma instalação nuclear.
O princípio da correspondência entre risco e vantagem é muito mais relevante para justificar a responsabilidade do fornecedor por fato do produto do que para justificar aquela do dono ou detentor de animal. O fornecedor, como exerce uma atividade econômica profissionalmente, busca necessariamente vantagens econômicas. Já o dono ou detentor de um animal nem sempre o explora economicamente.
O princípio do risco extraordinário é claramente determinante para justificar a responsabilidade por danos decorrentes de acidentes nucleares, uma vez que os riscos trazidos por essa atividade são especialmente altos e podem resultar em danos gravíssimos a um grande número de pessoas. Já no caso da responsabilidade do Estado, estabelecida de maneira genérica para as mais variadas atividades, que oferecem também riscos variados, o princípio do risco extraordinário não é determinante.
Por outro lado, o princípio da distribuição do dano, praticamente irrelevante quando se trata da responsabilidade do dono ou detentor de animal – já que o simples fato de ser proprietário ou detentor de um animal não implica condições favoráveis para a distribuição de prejuízos pela coletividade –, é determinante para justificar a responsabilidade do Estado por atos de seus agentes.
A combinação variada de princípios justificadores em cada caso de responsabilidade objetiva evidencia também o modo diverso como se perseguem os objetivos de indenização, distribuição e prevenção em cada situação.
Assim, por exemplo, a atribuição de responsabilidade ao dono ou detentor de animal busca mais claramente o propósito de prevenção de comportamentos anti-sociais do que a imputação de responsabilidade objetiva ao Estado.
A responsabilização do fornecedor por danos decorrentes de seus produtos é um mecanismo de distribuição que atinge a finalidade de indenização da vítima de modo que tende a ser mais eficaz do que a imputação de responsabilidade ao dono ou detentor de animal – caso em que, pela ausência de mecanismo de distribuição de danos, o risco de insolvência do responsável é maior.
3. BREVES CONCLUSÕES
Percebe-se que a norma geral de responsabilidade objetiva do art. 927, parágrafo único, do CC está ainda em grande medida por fazer. O legislador fixou alguns parâmetros para a imputação dessa responsabilidade, mas bastante amplos e vagos.
A imputação de responsabilidade a uma pessoa, constituindo uma opção dentre várias alternativas possíveis, possui um caráter político intrínseco. Muitas vezes as opções são feitas bastante claramente pelo legislador. Não é o caso do art. 927, parágrafo único, do CC.
Caberá ao Poder Judiciário, portanto, a realização dessa opção, ao definir o que, de fato, se deve considerar como atividade naturalmente perigosa de modo a imputar responsabilidade ao sujeito que normalmente a exerça.
A aplicação dos princípios justificadores da responsabilidade objetiva, à luz das funções da responsabilidade civil e de sua inserção no âmbito mais amplo da regulação dos danos acidentais, pode ser um bom guia para a realização desta tarefa.
Embora seja ainda difícil prever a extensão que a jurisprudência dará à norma do art. 927, parágrafo único, do CC, é possível imaginar que, não havendo em prática outros meios eficazes para buscar a indenização, a prevenção e a distribuição de prejuízos acidentais na sociedade,[57] a jurisprudência seja levada a assumir em grande parte o papel de definir uma política para tratamento dos danos acidentais em geral, por meio do instrumento que lhe concedeu o legislador: a amplitude do parágrafo único do art. 927 do CC.[58]
Professora da Direito GV, Doutora em Direito Civil na USP e pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap
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