Os manuais
e cursos de processo penal revelam a enorme evolução ocorrida nos séculos,
culminando com o sistema processual moderno, tendente a admitir um embate
dialético entre as alegações dos litigantes perante um magistrado imparcial e
dotado de poder jurisdicional, portanto, limitado pelos comandos legais e, mais
recentemente, constitucionais, que exerce sua função condicionada à propositura
de ação.
Em
umbrosas épocas surgiu como instrumento de justiça o sistema processual penal
inquisitivo, que despontou em Roma e varou toda a Idade Média. Não se admitia o
contraditório, no intuito de evitar que a diferença de forças entre as partes
ocluísse a Justiça. Conseqüentemente, as funções de acusador, defensor e
julgador foram concentradas nas mãos do Magistrado, plenipotenciário
representante da arbitrariedade estatal, manifestada em processos sigilosos e
sem garantias ao acusado. Admitia-se a prova obtida com tortura infligida
contra as testemunhas e contra o acusado, além dos ordálios (duelo judicial e “purgationes
vulgaris”).
O sistema
acusatório floresceu na Grécia e, durante o período republicano, em Roma,
estando presente atualmente em nossa moderna legislação. Caracteriza-se
especialmente pela garantia do contraditório, publicidade e divisão das funções
processuais de acusação, defesa e julgamento. Nele o Juiz não acusa, apenas
decide motivadamente após auscultar os argumentos das partes, que estão em pé
de igualdade na demanda. Hoje, no sistema acusatório o “jus accusationis”
é exercido quase exclusivamente pelo Ministério Público, enquanto a defesa cabe
a advogados particulares constituídos ou defensores públicos.
Rechaçado
o sistema inquisitivo pela oposição dos enciclopedistas, logo após a revolução
francesa, surgiu o sistema processual penal misto ou acusatório formal, o qual
desenvolve-se em três etapas: investigação preliminar, instrução preparatória e
fase de julgamento. As primeiras duas fases continuaram secretas e
não-contraditórias, enquanto a última desenvolvia-se publicamente e contraditoriamente.
As funções de acusar, defender e julgar foram partilhadas a pessoas diversas.
O Poder
Jurisdicional, na evolução histórica dos sistemas processuais, adquiriu no
desenvolver de suas funções estatais prerrogativas, atuando seus poderes de
forma limitada pela lei e, principalmente, pela Constituição, que define
hodiernamente os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos.
Os
direitos e garantias à ordem jurídica justa, ao acesso ao Judiciário, ao devido
processo legal, ao contraditório, à ampla defesa, à decisões motivadas, acesso
às vias recursais, ao impedimento de provas ilícitas no processo e vários
outros, configuradores de nosso sistema processual, servem para caracterizar o
próprio exercício do Poder Judiciário em um Estado Democrático
de Direito.
Esses
direitos e garantias fundamentais resultam de longa evolução histórica dos
direitos humanos, consagrados definitivamente na Declaração Universal de 1948,
que inspirou a criação de sistemas protetivos internacionais.
Culminou
essa evolução do sistema processual a adoção da jurisdição de tribunais
internacionais de direitos humanos, que rechaçam parcialmente a “soberania” das
decisões dos tribunais internos relativamente a análise da adequação das
sentenças internas com os tratados internacionais.
Os países
da Comunidade Européia admitiram a jurisdição da Corte Européia concernente a
violações dos tratados de direitos humanos, possibilitando a qualquer “cidadão
europeu” reclamar o cumprimento de referidos tratados, não observados pelos
tribunais nacionais, de jurisdição limitada ao território dos Estados-partes.
Surgiu
também no âmbito da Organização dos Estados Americanos a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, órgãos internacionais voltados ao desenvolvimento de uma “jurisdição
internacional” de direitos humanos, consagrados em tratados e convenções
locais.
Portanto,
além dos sistemas de controle de constitucionalidade exercidos pela jurisdição
interna dos Estados nacionais, surge o sistema internacional de controle
convencional, talvez, como conseqüência positiva do processo de desenvolvimento
das tecnologias globalizadas.
A
República Federativa do Brasil, seguindo essa tendência evolutiva, admitiu a
jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos em dezembro de 1998,
onde tramitam processos contra o Brasil concernentes a decisões transitadas em
julgado pelo nosso Poder Judiciário, imputando-se-lhe a inobservância dos
preceitos convencionais.
Ressalvo,
exemplificativamente, caso apresentado à Comissão Interamericana pelos
integrantes do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do
Estado de São Paulo e pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional
(Cejil), denunciando o Brasil em junho de 2000, como violador dos artigos 1º,
1; 8º, 2, “h”; e 25, da Convenção Americana de Direitos Humanos, denominada
Pacto de San José da Costa Rica (íntegra da petição na página eletrônica http://www.ibiius.hpg.com.br/petdirhum1.htm
ou no site oficial da PGE/SP, http://www.pge-sp.gov.br).
Como
esclarece o ilustre procurador do estado, responsável pela demanda
paradigmática, em exercício das funções afetas à defensoria pública, instituição
ainda não criada no Estado de São Paulo, embora prevista constitucionalmente:
“O caso adotado como paradigma refere-se a uma ação penal que tramitou perante
a 8ª Vara Criminal do Foro Central da Comarca de São Paulo/SP, na qual foi
decretada sentença que condenou um cidadão brasileiro à pena de 2 (dois) anos
de reclusão, em regime fechado, mais 10 (dez) dias-multa, por incurso no art.
10, § 3º, inciso IV, da Lei nº 9437/97.”
“Em razão
da reincidência, foi vedado o apelo em liberdade, frente ao disposto no art.
594 do CPP. Não obstante ter sido o agente preso em flagrante e permanecido
custodiado ao longo de toda a tramitação do feito em 1º grau, após a publicação
da sentença, acabou empreendendo fuga do distrito aonde se encontrava, motivo
pelo qual o recurso de apelação interposto foi julgado deserto, consoante o que
estabelece o art. 595 do CPP.”
“Após
impetração de habeas corpus e o correspondente recurso ordinário visando
ao processamento da irresignação defensiva, a decisão de 1ª instância permaneceu
inalterada, transitando em julgado, o que levou à interposição da mencionada
petição, pois o aludido artigo 8º da Convenção Americana dispõe que toda
pessoa, como garantia mínima, tem direito ao duplo grau de jurisdição.”
“O caso é,
assim, capaz de realçar a dupla dimensão dos instrumentos internacionais de
proteção dos direitos humanos: a) parâmetros protetivos mínimos a serem
observados pelos Estados e b) instância de proteção dos direitos humanos,
quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas.”
“Há que se
reiterar que o sistema interamericano invoca um parâmetro de ação para os
Estados, legitimando o encaminhamento de petições de indivíduos e entidades
não-governamentais se estes standards internacionais são desrespeitados.
Neste sentido, a sistemática internacional estabelece a tutela, a supervisão e
o monitoramento do modo pelo qual os Estados garantem os direitos humanos
internacionalmente assegurados. Registre-se que o Brasil ratificou a Convenção
Americana em 1992.”
Suscitou referida
petição a abertura do caso nº 12.293 perante a Comissão Interamericana,
restando inerte o Governo nacional, embora regularmente cientificado. De outra
banda, fora da lide internacional, foi apresentado pelo Executivo à Câmara dos
Deputados projeto de Lei nº 4.208/01, propondo revogação dos artigos 594 e 595
do Código de Processo Penal.
Ressalto a
tramitação perante a Câmara dos Deputados do Projeto de Lei nº 3.214 de 2000,
de autoria do Deputado Marcos Rolim, que regulamenta os efeitos jurídicos das
decisões de caráter indenizatório da Comissão Interamericana e da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, propondo conferi-lhes força de título
executivo judicial exeqüíveis contra a Fazenda Pública Federal.
Vislumbra-se
a potencialidade desse novo sistema protetivo dos direitos humanos, ignorado
pela grande maioria dos advogados, promotores de justiça, juízes e cidadãos,
como última instância de preservação dos direitos e garantias fundamentais e
direitos humanos convencionais.
Mencionada
jurisdição internacional não pode restar circunscrita a indenizações
decorrentes do descumprimento dos deveres estatais, mas pode e deve limitar o
abuso, se preciso, em tutelas cautelares, mediante expedição de sentenças
declaratórias, constitutivas, condenatórias e mandamentais, como a
“recomendação” de adaptação do direito interno aos preceitos convencionais.
Defensor Público da Defensoria Pública Regional de Taubaté/SP. Atuou como advogado particular e público em algumas instituições, como a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, Prefeitura Municipal de Santo André e SEMASA. Foi professor universitário e em cursinhos preparatórios para concursos, ministrando aulas de Direito Civil e Direito Processual Civil.
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