No[1] Brasil, as lutas anti-sexistas e anti-racistas que ocorrem em espaços governamentais e na sociedade civil têm contribuído para o fortalecimento das mobilizações por direitos civis e políticos LGBTTT, e das demandas por igualdade nas homos e nas heteroparentalidades. Esses investimentos não eliminam o delineamento de um quadro tensionado, em que coexistem resistências conservadoras e alguns progressos na área dos direitos parentais, especialmente no Judiciário, com algumas atuações inovadoras de segmentos de operadores do Direito.
I. Uma sociedade de hierarquias multiplicadas
Ainda no século XIX, as ciências sociais nascentes colocaram o foco sobre as estratificações econômicas e sociais, que dois séculos depois, ainda persistem e nos desafiam.[2] No século XX, as teorias críticas da sociedade — especialmente com as elaborações da Escola de Frankfurt com Marcuse, Horkheimer, Adorno — apreenderam e denunciaram desigualdades, danificando vidas.[3]
“Oh! Mundo tão desigual, tudo é tão desigual
De um lado este carnaval, de outro a fome total” (Gilberto Gil, Herbert Vianna)
A ciência — prática social e construção coletiva — tem avançado da análise das desigualdades econômicas e sociais para antinterpretações de uma sociedade racializada, sexuada, generificada. Temos também, uma ordem sexual, presidida pelo sexismo, ideologia que hierarquiza mulheres e homens, construindo e pretendendo legitimar valores desiguais para o feminino e para o masculino. O sexismo — com suas representações e práticas — está na origem de outras desigualdades, como é o caso das maternidades e das paternidades. Nem mães, nem pais constituem universais, como podem parecer em uma primeira aproximação. Ou como são apresentados em datas festivas, no segundo domingo de maio e no agosto nosso de cada ano.
Não basta ser heterossexual…
Para a mulher-mãe brasileira não ser penalizada pelo sexismo, não basta ser heterossexual, pois heteroparentalidades ainda têm nas relações matrimonializadas o território privilegiado para o reconhecimento geracional legal. A Lei da Paternidade, de 29.12.1992, regulamentou dispositivos constitucionais estabelecendo a igualdade de direito ao reconhecimento paterno e materno a todas as filhas e filhos, mas a efetividade dessa lei é frágil (THURLER, 2008). À mulher-mãe é requerido viver a heterossexualidade no casamento.
Dificuldades e interditos nas heteroparentalidades dissidentes e nas homoparentalidades — femininas e masculinas — são sustentadas por sexismos e heterossexismos persistentes. A adoção de uma perspectiva epistemológica não binária aponta para processos que se entrelaçam, expressando a sobrevivência de uma cultura patriarcal hegemônica.
Mães heterossexuais estão hierarquizadas em “mães casadas” e “mães solteiras”. Quem são as mães heterossexuais solteiras brasileiras? Podemos estimar que elas representam duas em cada três mulheres-mães (THURLER, 2009). Mesmo assim, subsistem representações sociais estigmatizando-as. Em 2008, foram lavrados no Brasil, 3.085.452 registros civis de nascimento[4]. Podemos estimar, envolverem em torno de 2 milhões de mães solteiras. Mesmo representando bem mais do que a metade das mães brasileiras, para elas, que viveram uma heterossexualidade não-canônica, as possibilidades de virem a contar com a solidariedade do homem-pai de suas crianças continuam incertas. Incertas, também, permanecem as possibilidades de crianças filhas de mães heterossexuais solteiras virem a contar com o acolhimento e reconhecimento desse pai. Todas essas desigualdades vinculam-se às hierarquias nas sexualidades, ao heterossexismo, ao patriarcado.
Em 10.03.2010, o Senado brasileiro confirmou o nome do General Raymundo Nonato de Cerqueira Filho para o Superior Tribunal Militar, não obstante suas declarações polemizadas no início de fevereiro, na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal contra a presença de homossexuais nas Forças Armadas. A aprovação de seu nome por unanimidade na CCJ (20 votos a zero) convive com lutas “Por um Brasil sem Homofobia”. Luiz Mott, professor e fundador do Grupo Gay da Bahia, avaliou que se o general tivesse tido que os negros não poderiam ser aceitos nas Forças Armadas, porque ninguém obedeceria um negro, ele teria sido preso, sem direito a fiança. E conclui declarando que o General ofendeu mais de 20 milhões de homossexuais brasileiros.[5]6
A partir do heterossexismo na ordem patriarcal, as estratificações se multiplicam. Faces dessa estratificação ocorrem com as conjugalidades homossexual e heterossexual. E nessa, entre as relações matrimonializadas e as não formalizadas, ficando expostos os graves limites das “uniões estáveis”, com o direito à filiação, ao reconhecimento deixado à arbitrariedade de um pai, no século XXI, ainda patriarca.
Mães vivendo em uniões estáveis ainda encontram enormes dificuldades para o reconhecimento de suas crianças, dependendo inteiramente da vontade e do arbítrio do pai em reconhecer ou não esses filhos. No Piauí, durante a implementação com a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE)/ Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Piauí (SINTE-PI) do projeto Paternidade e Cidadania nas Escolas, encontrei o caso de oito filhos de uma mesma relação estável, que durou até a morte da mãe, sem que nenhum deles tivesse o reconhecimento paterno. Somente aos 89 anos, esse pai decidiu reconhecê-los todos, em novembro de 2008, em Piripiri. O projeto colocou a questão do não reconhecimento paterno na agenda do estado do Piauí e pode ter contribuído para essa decisão — totalmente arbitrária — desse pai.
Em 29.07.2009, a Lei 12.004 chegou para fazer um embaralhamento em torno da questão do reconhecimento da paternidade junto a opinião pública e, até mesmo, entre setores de mulheres organizadas. Disseminou-se a notícia de que tal Lei teria resolvido de vez o problema do não-reconhecimento paterno no país. Na esteira da Súmula 301 do STJ, essa Lei estabeleceu que a recusa do pai em fazer exame em DNA presumiria a paternidade. Essa é, entretanto, somente parte da verdade, pois a mãe deve, ainda, provar ter tido relacionamento com esse pai. Ora, pode se estimar que uma em cada três crianças brasileiras nasce em relação eventual. Isto é, essas mães — e esses pais —não têm histórias a contar. Resumo: essa é uma lei radicalmente sexista, que legisla não acontecer aos homens filhas e filhos em relações eventuais. Com a Lei 12.004, os homens passaram a ficar legalmente salvaguardados de virem a ter filhas e filhos nessas relações e as mulheres — já penalizadas e criminalizadas se interromperem uma gravidez ocorrida nessas circunstâncias — passaram a sozinhas (ou com o Espírito Santo, mas não com os homens brasileiros…) a fazerem filhos em relações eventuais.
II. A ordem sócio-sexual: face hegemônica
Na vida social, pluralizam-se as formas de conjugalidade nas homoconjugalidades, nas heteroconjugalidades. Também as parentalidades, pois nascimentos ocorrem em relações não formalizadas, eventuais e estáveis, em relações matrimonializadas, em reprodução assistida. Podemos estimar que, hoje, duas em cada três crianças brasileiras nascem fora do casamento. Por que, então, é mantido um sistema de privilégios para a heteroconjugalidade matrimonializada, mantida referente para o direito ao reconhecimento social e jurídico paterno no Brasil? Pela defesa e proteção da família patrimonial, pela persistência do sexismo racializado e do heterossexismo que colocam o homem branco heterossexual como referente. O sexismo é uma ideologia que categoriza e estratifica, propondo que a ordem existente aí está por si só, ahistoricamente, sem interferência das relações sociais que humanas e humanos — marcados por raça/etnia, sexualidades, idade, regionalidades — têm estabelecido.
O sexismo, como ideologia define lugares, sustenta e reproduz representações e práticas sociais indispensáveis à preservação da ordem patriarcal e da família patrimonial. Mães solteiras adotam comportamento dissidente concebendo filhas e filhos fora do contrato sexual do casamento, que pressupõe a subordinação da mulher ao homem. O sexismo produz desigualdades entre mulheres e homens, mas também hierarquiza maternidades e paternidades, promove cisões, ancorando a maternidade à natureza e à biologia e colocando a paternidade firmemente no mundo da cultura, da lei. Nos últimos anos, se propaga uma espantosa desbiologização do pai, na produção teórica da área jurídica e da psicologia.
Em um Brasil ainda sem vontade política de resolver a grave questão do não reconhecimento paterno, a partir de 1º de janeiro de 2010, o pai e os ancestrais paternos foram banidos do formulário para lavrar o Registro Civil de Nascimento. Os campos “filiação paterna” e “avós paternos” foram substituídos simplesmente pelos campos “filiação” e “avós”. Assim, na explicação de autoridades do Conselho Nacional de Justiça a órgãos da imprensa, se acabariam os constrangimentos de mães heterossexuais solteiras e de crianças e adolescentes, nascidos fora do casamento. Tratam-se de recomposições e resistências da família patriarcal e patrimonial frente a dispositivos Constitucionais igualitaristas e a diversos compromissos internacionais firmados pelo país, quanto aos direitos à filiação de todas as filhas e filhos. O velho patriarcalismo brasileiro mantém-se reconfigurado e o arbítrio masculino saiu fortalecido. Foi reafirmado o caráter patriarcal e sexista do Estado brasileiro.
Entre parentalidades canônicas e dissidentes
Abençoadas pela Igreja e pelo Estado umas, e nem tanto outras, as parentalidades detêm estatutos desiguais conferidos pelo sexismo que não só apresenta uma perspectiva disjuntiva da maternidade e da paternidade, organizando sistemas de privilégios ao estratificar vivências das sexualidades e estabelecer desigualdades entre a homossexualidade e a heterossexualidade, decorrendo daí hierarquizações nas conjugalidades e nas parentalidades homossexuais e heterossexuais.
O sexismo produz o heterossexismo, a heteronormatividade e multiplica hierarquias entre mães – “mãe casada” e “mãe solteira” -, entre mães solteiras (com filhos em uniões estáveis e com filhos em relações eventuais), entre pais, estabelecendo o primado do “pai marido da mãe”. O heterossexismo produz estratificações: entre sexualidades, entre conjugalidades, entre parentalidades – homo e heterossexuais – e entre heteroparentalidades canônicas e dissidentes. O heterossexismo gera interdições à homoconjugalidade e à homoparentalidade. Estabelece a heteronormatividade, colocando dificuldades à heteroparentalidade dissidente e propagando a homofobia. A homofobia gera ódios e assassinatos. Em 2009, foram assassinados no Brasil 198 homossexuais — 117 gays (59%), 72 travestis (37%) e 9 lésbicas (4%) —, em 2008, houve 189 assassinatos homofóbicos e em 2007, 122 assassinatos.[6]
A questão de desigualdades na distribuição ou negação de reconhecimentos e de respeitabilidades é eminentemente política. Assim, a desconstrução teórica e jurídica dessa hegemonia é um desafio político para a abertura de espaços para o reconhecimento de novas experiências parentais ─ como a homoparentalidade e a pluriparentalidade ─ e para a promoção da igualdade de direitos entre todas as nossas crianças, também relativamente à filiação.
III. A ordem sócio-sexual: face contra-hegemônica
Das teorias críticas da sociedade às teorias feministas temos desigualdades analisadas e denunciadas, propostas de novas epistemologias e o desvelamento de um mundo constituído por uma dinâmica de relações sociais generificadoras, racializadoras, hierarquizando em classes e estratificando sexualidades. Na contra-hegemonia, estão as resistências, as disputas e lutas por igualdade de direitos e de reconhecimento e legitimidade de afetividades/sexualidades, conjugalidades, maternidades e paternidades, heteroparentalidades, homoparentalidades. Ganham visibilildade e espaços nessa dinâmica social parentalidades “impensáveis” (ZAMBRANO, 2006).
Lutas internacionais
Se a resistência a mudanças tem sido persistente, é certo, também, que a ordem sócio-sexual patriarcal vem sendo erodida, com a afirmação da diversidade sexual e o questionamento da heteronormatividade como valor e referência para a afetividade e a sexualidade. Nos anos cinqüenta do século XX, grupos de homossexuais invocarem a Convenção Européia de Direitos Humanos, diante de tribunais, para invalidar leis que os desfavoreciam e para conferir aos Direitos Sexuais estatuto de Direitos Humanos. Em 17 de dezembro de 1955, a Comissão Européia de Direitos Humanos rejeitou demandas apresentadas por grupos de alemães, sustentando que relacionamentos homossexuais entre adultos violariam artigos da Convenção Européia de Direitos Humanos.[7] Foi uma definição de princípios da Comissão, diversas vezes confirmada posteriormente e somente em 1981 revisada, com a Corte Européia de Direitos Humanos decidindo que a interdição a esses relacionamentos atenta contra a liberdade sexual e constitui violação à Convenção. Passou, então, a exigir dos Estados-parte a despenalização do relacionamento entre pessoas do mesmo sexo. Mais tarde essa Corte adotou decisões favoráveis no campo do trabalho, da habitação[8] e em questões parentais. Assim, em 21 de dezembro de 1999, unanimemente, a Corte condenou Portugal por decisão de sua Suprema Corte de retirar a autoridade parental do pai demandante, fundada em orientação sexual. Em matéria de adoção, entretanto, essa Corte ainda aceitará uma diferença de tratamento baseada na orientação sexual. Em decisão de 26 de fevereiro de 2002 considerou não ter havido violação à Convenção Européia de Direitos Humanos pelo Conselho de Estado francês ao negar o direito à adoção a um homem solteiro homossexual, baseando-se em suas “escolhas de vida”. O demandante encaminhou pedido de adoção em outubro de 1991 (GARNIÉRI, 2006).
Em 15 de novembro de 1999, em um clima de forte debate público em torno do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e da possibilidade de casais homossexuais assumirem um projeto parental, questão colocada no âmbito da pluriparentalidade (LE GALL, 2001), foi aprovado na França o Pacto Civil de Solidariedade (PACS). Em 10 de fevereiro de 2000, o Tribunal de Besançon reconheceu o direito de um casal de lésbicas adotar uma criança. Essa demanda havia sido negada em instância anterior. O Tribunal de Besançon fundamentou sua decisão no Decreto sobre adoção de pupilos do Estado, de 23 de agosto de 1985, válido no Código Civil também para adoção de crianças estrangeiras que requerem para adotantes não uma dada orientação sexual, mas “condições familiares, educacionais e psicológicas de acolhimento”.
Naquele mesmo ano (em 12.09.2000), nos Países Baixos, a Câmara dos Deputados aprovou o casamento de pessoas de mesmo sexo e a adoção de crianças.[9]
O quadro canadense, é assim analisado por TAHON (2006:635):
“Prevista inicialmente para casais do mesmo sexo, a união civil foi quase instantaneamente aberta a casais de sexo diferente, com demanda de representantes da comunidade gay e lésbica, ouvidos pela Comissão das Instituições, em fevereiro de 2002. (…) A maior inovação aportada pela união civil do Québec reside no estabelecimento de “novas regras de filiação”. A adoção nacional é permitida aos casais do mesmo sexo. É bom lembrar que a adoção nacional é pouco difundida em Quebec, pois poucas crianças são abandonadas e, no país, só é admitida a adoção plena que anula toda filiação anterior. A adoção internacional (…) deve se submeter às condições estabelecidas pelos Estados doadores. Entre esses países, a China é o primeiro e exige que o casal adotante seja casado. É improvável que ela rapidamente venha a aceitar a redefinição canadense do casamento. A seguir está o Haiti, que aceita somente mulheres como adotantes. Em outras palavras, as possibilidades de um casal gay ou de um homem só se tornarem pais, via adoção, são mínimas.”
Sem linearidades, um avanço rápido, especialmente na Europa, vem ocorrendo nas últimas duas décadas. Para isso muito vem contribuindo a internacionalização de redes da sociedade civil e suas lutas ─ em defesa dos direitos humanos e dos direitos LGBTTT. A igualdade ao acesso à parentalidade está na agenda social internacional. Em 1994, nenhum dos 46 países membros atuais do Conselho da Europa permitia a um casal do mesmo sexo, adotar uma criança. Em 1999, a Dinamarca foi o primeiro país a fazer mudanças na legislação, permitindo a um casal homossexual adotar uma criança. Desde então, até 2006, em oito países uma criança pode ter duas mães ou dois pais legais.
E em 08.01.2010, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, sem permitir a adoção de filhas e filhos, foi aprovado em Portugal. Na oportunidade, José Sócrates, o primeiro-ministro português, assim defendeu o projeto: “O humanista sente-se humilhado pela humilhação do outro, excluído pela exclusão do outro, e sente sua liberdade privada pela privação da liberdade do outro. Esta lei está destinada a reparar as décadas de injustiças sofridas pelos homossexuais.”[10]
O quadro brasileiro
Apesar de lutas por igualdade nas sexualidades e progressos conquistados, as resistências ao direito a homoconjugalidades e homoparentalidades têm sido grandes no Brasil, com alguns avanços no Judiciário e muitas resistências no Legislativo.
Homoparentalidades: a difícil construção de uma jurisprudência
Só muito recentemente, decisões judiciais autorizaram casais do mesmo sexo serem considerados pais ou mães legais, no registro civil de nascimento. Em 05 de abril de 2006, no estado do Rio Grande do Sul, ocorreu um primeiro caso de decisão judicial favorável a um casal de mulheres, Conforme registra o relator do Processo 70013801592, TJ-RS, Des. Luiz Felipe Brasil Santos, valendo-se de relatório de avaliação, “XXX de 39 anos e XXX de 31 anos convivem desde 1998. Em abril de 2003 XXX teve a adoção de XXX deferida e, em fevereiro de 2004 foi deferida a adoção de XXX. Na época XXX participou da decisão e de todo o processo de adoção auxiliando nos cuidados e manutenção das crianças.” A declaração dos Desembargadores Ricardo Raupp Ruschel e Maria Berenice Dias confirma o deferimento: “[é] de louvar a solução encontrada pelo em. magistrado Marcos Danúbio Edson Franco, ao determinar na sentença que no assento de nascimento das crianças conste que são filhas de XXX e XXX, sem declinar a condição de pai ou de mãe”(KOTLINSKI, 2007:235-254).[11]
Em 30 de outubro de 2006, no estado de São Paulo, ocorreu a primeira decisão judicial favorável a um casal masculino. Vasco Pedro da Gama Filho, 35 anos, e Júnior de Carvalho, 42 anos, em união estável há 14 anos, decidiram adotar uma criança. Em 1998 ingressaram com pedido nesse sentido, recusado pelo Juiz. Em 2004, eles insistiram. Visitando um abrigo de crianças, se encantaram pela menina Theodora. No final de 2005, uma juíza de Catanduva (SP) colocou crianças em famílias substitutas e Theodora na família do casal Vasco e Júnior. O processo de adoção foi encaminhado por Vasco P. da Gama Fº, como uma pessoa solteira. Eles não ficaram satisfeitos: era uma adoção incompleta. Ingressaram, então, com pedido de reconhecimento de paternidade de Júnior de Carvalho. A decisão favorável chegou no final de outubro e em 22 de novembro de 2006 eles receberam a certidão com a dupla paternidade. Em um país em que tantos não têm nem um pai[12], a menina Theodora ─ agora Theodora Rafaela Carvalho da Gama ─ se envaidece de ter dois: “A professora disse que ela tem orgulho e até esnoba os coleguinhas”, diz Carvalho (BONADIO, 2006).
Preservando laços
Para não separar os irmãos, João Amâncio (34) e Edson Paulo (40), vivendo uma relação estável há 16 anos, decidiram adotar quatro irmãos, entre 4 e 10 anos: um menino e três meninas. “Meu pai teve quinze filhos, criou todos com muito esforço e dedicação. Se eu não der conta de criar quatro, que espécie de homem ele formou?” interroga João Amâncio[13]. Ao visitarem o abrigo Casa Caribe, em Ribeirão Preto onde vivem, conheceram uma menina com 10 anos, que enviou uma carta ao juiz Paulo César Gentile, da Vara da Infância e Juventude de Ribeirão Preto.
“Quando soubemos que fomos escolhidos, algo diferente aconteceu. Não foi uma simples comoção, mas sim a certeza de que nosso DNA não é explicado pela ciência, está gravado na alma”, confessou Edson Paulo que tem filhos biológicos e cuidou deles até recentemente. A guarda provisória foi concedida em dezembro de 2006 pelo juiz Paulo César Gentile, quem garante: “Qualquer acolhimento sob a forma de guarda, adoção ou tutela é um gesto de fraternidade. A lei determina, quem vai acolher a criança ou adolescente tem que ter condições adequadas e aptidão para isto e qualquer consideração que passe pela opção sexual da pessoa é preconceito.” O jornalista Roney Domingos concluiu: “Depois de cuidar dos dois filhos de um deles, já crescidos, o casal resolveu adotar uma criança e ─ para não separar os irmãos ─ decidiu assumir os outros três.[14]”
O juiz da 2ª Vara da Infância de Porto Alegre, José Daltoé Cezar, declarou ao jornal Folha de São Paulo, em 15.06.2008: “Fechamos um consenso na jurisprudência daqui, já é uma página virada”[15]. Eram, então, três casos de adoção homoafetiva conjunta no Rio Grande do Sul, manifestando a construção de uma jurisprudência sobre a adoção por casais gays com união estável, a ser estabelecida em nome das duas mães ou dos dois pais, atendendo as mesmas exigências sócio-econômicas e psicológicas feitas aos heterossexuais.
Em outubro de 2008, em Recife (PE), o juiz Élio Braz Mendes, do Juizado da Infância e da Adolescência, deu parecer favorável de dupla paternidade para a adoção de duas irmãs, com 5 e 7 anos, para um casal que vive em Natal (RN), onde já teriam tentado adoção de duas crianças. Ele declara não haver lei proibindo a adoção por pessoas do mesmo sexo. “Existe uma lacuna, e a lacuna não impede o exercício do direito.” O importante para ele é que os adotantes sejam capazes de cuidar das crianças, independente do gênero e da opção sexual. As meninas, abandonadas pela família biológica, viviam em um abrigo. Levadas a Natal, elas passaram um ano com os novos pais, em um período de convivência familiar, com o acompanhamento pela Justiça. O tempo médio de observação para casais heterossexuais é de dois meses. “Nesse período ficou comprovado que eles possuíam todas as condições de uma família afetiva”, diz. “Se a família é capaz de guardar, sustentar e educar, isso representa proteção e, para a Justiça, é o que interessa.”[16]
Em 1º.09.2008, um significativo progresso foi alcançado, com o Superior Tribunal de Justiça (STJ) admitindo a possibilidade jurídica do pedido de reconhecimento da união estável entre homossexuais e incluindo a homoconjugalidade no âmbito do Direito de Família. Por 3 votos a 2 — votos favoráveis dos ministros Pádua Ribeiro (relator), Massami Uyeda e Luís Felipe Salomão e votos contrários dos ministros Fernando Gonçalves e Aldir Passarinho Junior —, a Quarta Turma do STJ determinou que o TJ-RJ retomasse o julgamento da ação envolvendo o agrônomo brasileiro Antônio Carlos Silva e o canadense Brent James Townsend, ação extinta sem análise do mérito. Lembremos que dez anos antes, um primeiro caso envolvendo questões patrimoniais – pensão, partilha de bens etc. – foi apreciado favoravelmente no STJ (Resp 148897). O ministro Ruy Rosado de Aguiar então decidiu que, em caso de separação de casal homossexual, o parceiro teria direito de receber metade do patrimônio obtido pelo esforço comum.[17]
Passo importante na constitucionalização das homoparentalidades ocorreu em 02.07.2009, quando Deborah Duprat de Britto Pereira, então, interinamente, Procuradora-Geral da República,[18] ajuizou a ADPF 178 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) para o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, argumentando que a Constituição estabelece iguais condições entre os indivíduos para formação de família. A Procuradora apoiou a ação proposta pelo governador do estado do Rio de Janeiro, relativamente à homoconjugalidade, à união homoafetiva. Sérgio Cabral solicitou a aplicação do regime jurídico das uniões estáveis, previsto no artigo 1.723 do Código Civil, às uniões homoafetivas no estado do Rio de Janeiro, para beneficiar os funcionários públicos civis. Os efeitos positivos decorrentes da decisão da Advocacia Geral da União, entretanto, restringiriam esses efeitos ao estado do Rio de Janeiro. A Procuradora-Geral da República demandou ao Supremo estendê-los ao país.
Em 13.07.2009, Deborah Duprat demandou ao STF receber a ADPF 178 como Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277, focalizando a interpretação do art. 1723 do Código Civil. A Procuradora-Geral da República defendeu a tese de que “se deve extrair diretamente da Constituição de 1988, notadamente dos princípios da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), da igualdade (artigo 5º, caput), da vedação de discriminações odiosas (artigo 3º, inciso IV), da liberdade (artigo 5º, caput) e da proteção à segurança jurídica, a obrigatoriedade do reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar”. O artigo 1723 do Código Civil, que trata do reconhecimento da união estável entre o homem e a mulher, deve ser compreendido com base nesses princípios constitucionais (IBDFAM, 2009:3-5).
Deborah Duprat pediu o reconhecimento das uniões homoafetivas a partir do disposto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e da Constituição Federal (1988). A constitucionalização pelo STF é defendida amplamente por movimentos em favor de se conferir um protagonismo crescente aos Direitos Humanos na Constituição nacional. É um recurso proposto para questões envolvendo respeito, reconhecimento e promoção dos Direitos Humanos.
Finalmente, o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3), Decreto nº 7.037, de 21.12.2009, propõe ações programáticas referentes à Diretriz 10 (Garantia da igualdade na diversidade), Objetivo estratégico V (Garantia do respeito à livre orientação sexual e identidade de gênero):
“a) Desenvolver políticas afirmativas e de promoção de uma cultura de respeito à livre orientação sexual e identidade de gênero, favorecendo a visibilidde e o reconhecimento social.
b) Apoiar projeto de lei que disponha sobre a união civil entre pessoas do mesmo sexo.
c) Promover ações voltadas à garantia do direito de adoção por casais homoafetivos.” (PNDH-3, 2010:98).
O PNDH-3, nesse objetivo estratégico, recomenda ao Poder Legislativo a aprovação de legislação no sentido de reconhecer a união civil entre pessoas do mesmo sexo (homoconjugalidade) e de garantir o direito de adoção por casais homoafetivos (homoparentalidade). Ao Poder Judiciário recomenda a realização de campanhas de sensibilização de juízes para evitar preconceitos em processos de adoção por casais homoafetivos.
Percalços na construção de um Estado laico
Aliando-se aos setores conservadores do país, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) se opôs fortemente a pontos do PNDH-3, construído coletivamente, envolvendo amplo exercício de democracia participativa. A Declaração da CNBB sobre o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH–3) anunciou expressamente: “A CNBB reafirma sua posição, muitas vezes manifestada (…) contrária (…) ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e o direito de adoção de crianças por casais homoafetivos.”[19] E em 28 de janeiro, em abaixo-assinado firmado por 67 autoridades da alta hierarquia da igreja, essas posições foram reafirmadas publicamente e em audiência com o Ministro Paulo Vannuchi.[20]
Antes de se opor à homoconjugalidade e à homoparentalidade, a posição de Igreja Católica se opõe à ampliação da democracia, que, em uma sociedade plural, requer a laicidade do Estado. Ao longo da História, religião e política demonstraram constituir uma ligação perigosa. Entendemos como valores e princípios em que se assenta a laicidade: os direitos humanos, o pensamento autônomo, a liberdade de consciência, o bem comum, a igualdade na liberdade, o sentido da emancipação universal e o julgamento sem tutela, conforme desenvolve aprofundadamente Pena-Ruiz (2003), revisitando a história da filosofia.
Resistências do Legislativo
Enquanto no Judiciário, alguns progressos sinalizam a construção de uma jurisprudência favorável, no Legislativo são mantidas práticas de intolerância e exclusão quanto à homoconjugalidade. O Projeto de Lei 1151, apresentado ainda em 1995, por Marta Suplicy, então Deputada Federal, regulamentando a união entre pessoas do mesmo sexo, tem tramitação prejudicada (MELLO, 2006).
Do mesmo modo, o Legislativo permanece refratário à homoparentalidade: em 20 de agosto de 2008, a adoção homoafetiva sofreu um revés. Na contra-corrente de decisões do Judiciário brasileiro, a Câmara dos Deputados votou Projeto para a criação de uma Lei Nacional de Adoção, retirando do texto proposto a expressão “casal homoafetivo”, interditando, assim, a adoção por casais homossexuais. Manifesta-se aí a complexidade do jogo de mudanças de padrões de valores e comportamentos e de resistências ao reconhecimento e à legitimação de sexualidades, conjugalidades e parentalidades e novas formas de filiação. Na decisão do Legislativo nacional, em embate com o Judiciário, estão presentes o sexismo, o heterossexismo, a homofobia. Vieira adota o conceito de reprodução estratificada, considerando “as relações de poder por meio das quais pessoas são estimuladas a reproduzir e a criar filhos/as, enquanto outras são desestimuladas” (2008:136).
Examinando a dinâmica social relativamente a essas questões, Tort avalia que:
“Há formas históricas dominantes e em regressão de organização da parentalidade, de transmissões e há formas novas de simbolização mais ou menos inventivas das relações de sexo e das relações parentais. (…) Elas emergiram de um modo crítico, em lutas complexas das mulheres, dos homossexuais e de todos que continuam a sustentar as exigências de igualdade e da justiça, de não-discriminação no que concerne à família e à filiação” (2005:69).
Um casal não constituído sobre a diferença de sexo com uma filha, um filho perturba, pois significa ruptura com o modelo de conjugalidade fundada no casamento e de laços parentais baseados na biologia, no sangue e, admitindo com dificuldade, a adoção como exceção. O universo privado, colocado em novos espaços públicos de discussão pelos movimentos sociais, tornou-se objeto de investimento político, como exigência de respeito a valores democráticos de liberdade e igualdade. Inscreve-se aqui a lógica de atuação dos movimentos homossexuais e feministas. Ampliam-se demandas por auto-determinação na organização do universo privado: conjugalidades fundadas ou não na diferença de sexo, laços parentais e de filiação fundados ou não no sangue ou na adoção. Os atores sociais colocam na agenda coletiva demandas por liberdade e direito a legalmente construir suas famílias; demandas por proteção, direitos sociais e civis ligados às formas escolhidas de organização da vida privada (MELLO, 2005).
As dificuldades colocadas ao reconhecimento paterno nos casos de nascimentos em relações heterossexuais não matrimonializadas e à busca por reconhecimento e legitimidade de novas formas de parentalidade e de laços de filiação ─ como a homoparentalidade, de parentalidades em casos de transgêneros, transexuais, travestis ─ estão vinculadas a uma mesma matriz patriarcal que estabelece o primado da vontade do pai[21] e da heterossexualidade matrimonializada. Para uns e outros, a luta por reconhecimento e legitimidade significa enfrentar questões situadas no cerne da sociedade patriarcal que incluem o sexismo, o heterossexismo e o controle das sexualidades.
IV. Desafios à democracia brasileira contemporânea
Esses processos se entrelaçam, expressando a sobrevivência de uma cultura com a hegemonia das relações patriarcais. Impõe-se a necessidade de rupturas com perspectivas epistemológicas disjuntivas para erodirmos essa hegemonia e dar-nos conta de que “A divisão das humanas e dos humanos em homossexuais e heterossexuis é tão arbitrária e datada quanto qualquer outra” (COSTA, 1992:44). Assim, aos movimentos sociais, à academia, aos espaços governamentais é colocado o imperativo de permanente vigilância crítica, para a reinvenção das relações sociais de sexo, sexualidades e de desconstrução das relações patriarcais.
Sexualidades, conjugalidades e parentalidades – dimensões e expressões da subjetividade, modos de inserção na pólis e de vivência da cidadania – têm sido submetidas a constantes processos de estratificação e hierarquização. Representações e práticas sociais têm sustentado modalidades patriarcais de relações sociais de sexo, fundantes de uma ordem sexista e heterossexista. A busca de promover e universalizar os Direitos Reprodutivos – expressão dos Direitos Humanos – é questão eminentemente política, constituindo-se em condição para o aprofundamento da democracia. Essa busca ocorre, entretanto, em um quadro expresso ou velado de reprodução estratificada, com estímulos e interditos à procriação e à parentalidade, vulnerabilizando a autonomia das pessoas para o exercício de seus Direitos Reprodutivos. Ao adotarmos o conceito de “reprodução estratificada” consideramos mecanismos gerados por relações de poder mediante os quais alguns segmentos sociais são estimulados e apoiados a reproduzir e/ou a criar filhas e filhos, enquanto outros são desestimulados ou impedidos. Esse conceito nos ajuda a abordar estratégias pelas quais a reprodução social é prioritariamente colocada nas mãos de um grupo determinado e não de outro. Esta discussão é fundamental para analisarmos processos sociais mediante os quais as hierarquias aparecem como inevitáveis e justificam acessos desiguais a recursos reprodutivos, com base em supostos atributos morais, gerando imagens de continuidade e herança para as próximas gerações.
Desafios à igualdade nas parentalidades requerem algumas inclusões na agenda política do país, entre as quais destaco:
– Universalizar os Direitos Reprodutivos – nas heterossexualidades e nas homossexualidades – e os Direitos Sexuais – com o reconhecimento e a proteção à livre expressão das afetividades e sexualidades;
– Promover, proteger, garantir igualdade de direitos nas sexualidades, nas conjugalidades, nas parentalidades. É imprescindível, “desinstitucionalizar padrões de valoração cultural que impedem a paridade de participação e substitui-los por padrões que a promovam” (FRASER, 2007:109);
– Retirar do vazio legal em que tem sido mantido, o direito à conjugalidade e à parentalidade de lésbicas e gays;
– Construir cultural e juridicamente, o direito à solidariedade à mãe solteira em união estável ou relação eventual, e ao acolhimento, ao reconhecimento — legal, afetivo, institucional — da criança em heteroparentalidades não canônicas.
Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria, é pesquisadora associada ao Departamento de Sociologia da UnB e integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPeM-UnB). Coordena o Projeto Paternidade e Cidadania nas Escolas, parceria UnB e CNTE, que está sendo implementado no Estado do Piauí, com o protagonismo do SINTE-PI.
O salário substituição é um tema relevante no direito do trabalho, especialmente quando se trata…
A audiência de justificação é um procedimento processual utilizado para permitir que uma parte demonstre,…
A audiência de justificação é um procedimento processual utilizado para permitir que uma parte demonstre,…
O trânsito brasileiro é um dos mais desafiadores do mundo, com altos índices de acidentes…
O Conselho Nacional de Trânsito (Contran) implementou uma nova resolução que regula as especificações dos…
A partir de janeiro de 2025, uma importante mudança entrará em vigor para todos os…