Interpretação constitucional em Ronald Dworkin: uma análise do RE 633703

Resumo: O presente artigo traz uma analise do RE 633703 tratando da aplicabilidade da lei complementar 135/10, mais conhecida como “ficha limpa” no pleito eleitoral de 2010, através da teoria de Ronaldo Dworkin apresentada na obra: “Uma questão de princípio”. O pensamento de Dworkin é usado por nós para justificar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal em conceder o pedido de deferimento de candidatura de Leonídio Henrique Correa Bouças, antes negado pelas instancia menores, Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais e Tribunal Superior Eleitoral respectivamente. Este trabalho foi orientado pela Prof.ª Dr.ª Maria Sueli Rodrigues.


Abstract: This article presents an analysis of RE 633,703 treating the applicability of the supplementary law 135/10, better known as “clean record” in the 2010 election campaign, attractions, you see Ronald Dworkin’s theory presented in the work: “A question of principle”. The thought of Dworkin is used by us to justify the positioning of the Supreme Court to grant the request of approval of candidacy of Lonidio Henrique Correa Bolças before denied by the lower instance, the Regional Electoral Tribunal of Minas Gerais and the Superior Electoral Court respectively.


Sumário: 1. Introdução. 2. O Recurso Extraordinário 633703. 3. “Ficha Limpa” e a Interpretação Constitucional de Ronald Dworkin. 4. Conclusão. Referências bibliográficas.


1. Introdução


Com mais de um milhão e seiscentas mil assinaturas, foi enviado ao congresso nacional o projeto de lei de iniciativa popular 518/09, posteriormente aprovado como lei complementar 135 de 04 de junho de 2011, denominado “Fica Limpa”, com o objetivo de excluir do processo eleitoral candidatos com vida pregressa moralmente inconciliável com a nova legislação proposta. É inegável que esta lei traz benefícios ímpares a legislação eleitoral, ideiafacilmente comprovada pelo apoio de setores de grande credibilidade social como a OAB, CNBB, ABRAMPPE, AMB e outras.


A lei define critérios onde o candidato não poderá requerer registro de candidatura à Justiça Eleitoral, caso tenha uma vida pregressa incompatível com a nova legislação. A principal hipótese para que o registro de candidatura seja indeferido, é se o candidato tiver sido condenado por processos criminais ou improbidade administrativa. Essa condenação deve ser feita por um tribunal, salvo nos casos do processo transitado em julgado, ou seja, quando não há mais prazo para recurso ou já houve uma decisão irrecorrível.


A repercussão geral da lei nos quadros da sociedade alcançou níveis inimagináveis e o Supremo Tribunal Federal, apontam alguns, ao decidir sobre a constitucionalidade a aplicação da lei no processo eleitoral de 2010, passou por um dos momentos mais delicados de sua história e teve que deliberar sob uma pressão imensurável, de que não se teve notícia nos anais da instituição.


2. O Recurso Extraordinário 633703


O caso que analisaremos foi autuado no STF em 9 de dezembro de 2010 e teve como relator o min. Gilmar Mendes. Diz respeito à aplicação da lei complementar 135/10 no processo eleitoral de 2010. O recorrente é o então deputado estadual eleito LEONIDIO HENRIQUE CORREA BOUÇAS, candidato pelo estado de Minas Gerais. Depois de passar por todas as instancias da justiça eleitoral competentes, o processo chegou as mãos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, sob forma de Recurso Extraordinário, tendo como relator, como já dito, o ministro Gilmar Mendes.


Até ali, os dois tribunais (TRE-MG e TSE) julgaram improcedente o pedido de deferimento de candidatura ao sr.LEONIDIO HENRIQUE CORREA BOUÇAS, baseados no disposto na lei complementar 135/10. Entendo que a lei “ficha limpa” aplicava-se ao pleito eleitoral de 2010. Cabendo o recurso a decisão, o processo foi encaminhado ao STF, onde a corte decidiu por seis votos a cinco dar procedência ao recurso, deferindo o registro de candidatura do requerente, entendo que a lei complementar 135/10 valerá apenas a partir do pleito eleitoral de 2012, respeitando o princípio da anterioridade eleitoral disposto no art. 16 da Constituição Federal. A decisão do Supremo foi nos seguintes termos:


“Preliminarmente, o Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, reconheceu a repercussão geral da questão relativa à aplicação da Lei Complementar nº 135/2010 às eleições de 2010, em face do princípio da anterioridade eleitoral. O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, deu provimento ao recurso extraordinário, contra os votos dos Senhores Ministros Carmen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Ayres Britto e Ellen Gracie. Em seguida, o Tribunal, ausentes os Senhores Ministros Joaquim Barbosa e Ellen Gracie, autorizou os relatores a monocraticamente aplicarem o artigo 543-B do Código de Processo Civil. Votou o Presidente, Ministro Cezar Peluso. Falaram, pelo recorrente, o Dr. Rodrigo Ribeiro Pereira e, pelo Ministério Público Federal, o Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos, Procurador-Geral da República. Plenário, 23.03.2011”. (STF, min. Gilmar Mendes, 2010)


3. “Ficha limpa” e a interpretação constitucional de Ronald Dworkin


O Direito Constitucional é uma área jurídica que vêm ganhando especial atenção da comunidade acadêmica hodiernamente. Dentro desse vasto campo, o instrumento de Controle de Constitucionalidade (judicial reviewou revisão judicial) é um dos temas mais delicados e cuidadosamente estudados. Autores renomados como John Hart Ely, Jürgen Habermas e Ronald Dworkin dedicaram parte de suas obras para discorrer sobre esse moderno dispositivo jurídico.


Ronald Dworkin, na obra “Uma questão de princípio”, apresenta no segundo capítulo, “O fórum do princípio”, uma teoria bem elaborada a respeito do que poderia ser a revisão judicial. Dworkin condensa idéias para demonstrar que, apesar da provável afronta à Democracia, o judiciário pode sim decidir sobre determinações legislativas, declarando-as constitucionais ou não, mesmo que para isso tenha que fazer novos julgamentos substantivos a respeito das leis.


O autor reconhece, no livro e capítulo citados, a resistência que algumas escolas têm, sob alguma concepção de Democracia, de admitir a interferência do judiciário em questões substantivas:


“Vimos inúmeras pessoas de talento empenhando-se em reconciliar a revisão judicial com a democracia. A estratégia é a mesma: demonstrar que a revisão judicial adequada não requer que o Supremo Tribunal substitua julgamentos legislativos substantivos por novos julgamentos de sua autoria.” (DWORKIN, 2000, p. 100-1, grifo nosso)


Em miúdos, o que Dworkin diz ser a objeção dessas “inúmeras pessoas de talento” é tão somente a não aceitação de uma putativa interferência do judiciário na questão substantiva. Esse é um argumento muito levantado por aqueles que acusam nossa suprema corte de ilegítima no que diz respeito a decisões de constitucionalidade, especialmente no caso “ficha limpa”. Ao invés disso, propõem uma revisão judicial apolítica, que conseguiria determinar a conformação de uma lei com a Carta Magna sem fazer dessa lei algum juízo de valor, sem que os tribunais substituam “julgamentos legislativos substantivos por novos julgamentos de sua autoria”. O jusfilósofo estadunidense, em contraponto, declara tal tarefa impossível, pois acredita que qualquer rota tomada pelos tribunais sempre recairá na substância, na matéria.


Alguns outros estudiosos sugerem “fugas” da substância por meio ainda de dois caminhos: o da “intenção original” e o do “processo”. No primeiro, os tribunais deveriam ir em busca daquilo que foi pretendido pelos fundadores da constituição, das suas intenções originais, e impô-las, abstendo-se assim de alguma decisão política. Para derrubar tal argumento, Dworkin sugere que há muitas concepções diferentes de intenção constitucional. Desse modo, ao tentar determinar as intenções originais dos Fundadores, os tribunais deveriam escolher uma dessas concepções e deixar de escolher outras.


Para o pensador americano, trata-se de uma decisão substancial, pois deve ser baseada em um argumento que justifique sua escolha por melhor se adequar a alguma definição de governo representativo, isto é, exige que os tribunais opinem e tomem decisões de moralidade política. Justamente o que os estudiosos da “intenção original” procuram evitar.


No caso da lei complementar 135/10, na ocasião do julgamento do RE 633703, nos votos dos ministros não pudemos encontrar argumentos no sentido de utilizar a lógica intencionista. Assim percebemos que a questão da intenção já foi superada por nossa corte. Em julgamento posterior, no entanto, na polêmica da legalização da união estável homoafetiva, muitos reacionários justificaram seu discurso baseados na intenção original do constituinte nos artigos correspondentes no caso.


Assim mesmo, seria possível dizer que mesmo que os juízes tenham que tomar algumas decisões políticas ao determinar a “intenção original”, essas decisões nem de longe se comparam àquelas que a escola quer que eles evitem. Afinal, se trata de questões teóricas com reflexos na decisão substantiva e não de decisões substantivas em si. Isso, segundo Dworkin, é também uma ilusão. Mesmo que sejam decisões procedimentais, as escolhas dos tribunais perante variedades de concepções de intenção podem conformar-se de modo a exigir decisões claramente substantivas, como no exemplo citado a seguir pelo autor, extraído também de “Uma questão de princípio”:


“Suponha que um congressista vote a favor de uma emenda que exija ‘igualdade perante a lei’ porque acredita que o governo deve tratar as pessoas como iguais, e que isso significa não tratá-las de maneira diferente no que diz respeito a seus direitos fundamentais. […] Mas também acredita que escolas públicas separadas e desiguais não violariam a cláusula, pois não considera a educação interesse fundamental. […] Podemos distinguir uma formulação abstrata e uma formulação concreta de sua intenção.” (DWORKIN, 2000, p. 66-7)


A possível escolha de uma intenção abstrata ao invés de uma concreta ainda faria com que os tribunais tivessem posteriormente que decidir do que seja ou não um direito fundamental.


A nosso ver, a busca de uma “intenção original” em nada importa quando se trata de tomar substantivas decisões no âmbito legislativo, pois elas se destinam a uma sociedade potencialmente diferente daquela em que a foi criada a Constituição. Desse modo, mesmo que fosse determinada certa pretensão constitucional, se esta não se adequasse aos atuais moldes da sociedade de forma que fosse antagônica a vontade geral, então teria sido inútil sua compreensão e uma decisão substancial teria que ser tomada pelos tribunais.


Em relação à fuga pelo “processo”, John Hart Ely afirma em “Democracia e desconfiança – Uma teoria do Controle Judicial de Constitucionalidade”:


“Se a Suprema Corte tem como encargo vigiar a manutenção da constituição, ela deve, em primeira linha, prestar atenção aos procedimentos e normas organizacionais das quais depende a eficácia legitimativa do processo democrático. O tribunal tem que tomar precauções para que permaneçam intactos os ‘canais’ para o processo inclusivo de formação da opinião e da vontade, através do qual uma comunidade jurídica se auto-organiza.” (ELY, 1995, p. 74)


Ely nos alerta que devemos cuidar para que as decisões dos Tribunais Constitucionais não agridam de alguma forma a Democracia. Para ele, isso ocorreria quando os juízes, ao fazerem revisões judiciais, realizassem qualquer tipo de julgamento político. Dessa forma, estariam executando tarefa que deveria incluir a vontade do povo e não a deles.


Mas Dworkin argumenta que é também impossível descrever uma concepção de Democracia sem fazer juízos de valores finalísticos. Isto é, seria impossível definir um processo democrático sem apelar para valores como a justiça, a igualdade ou a liberdade como fins do processo. Valores tais que, sob uma visão comum, seriam “essenciais” a uma autêntica Democracia. Não compartilhamos dessa opinião.


É certo que a preferência por certa concepção democrática contaria com alguma interferência subjetiva e que seria ilusão alegar que os Tribunais, ao fazerem essa escolha, não teriam tomado determinações políticas. Mas se fosse possível erigir um conceito de democracia que prescindisse valores éticos, a não ser aqueles que nos levaram a escolha desse modelo, então o argumento dworkiano contra Ely estaria comprometido.


Construir um modelo democrático autêntico, isto é, que se baseasse no processo direto, pode ser visto como utópico principalmente pelo contingente grandioso de população do país. De certa forma, se se instala de fato uma democracia direta no Estado brasileiro, a figura do juiz de constitucionalidade é extinta. Se a população inteira se mobiliza para deliberar a respeito deste ou daquele projeto de lei, definindo os que lhe provir e os que lhe desagradam, e considerando que a Constituição seria então verdadeiramente interpretada e, portanto, reescrita constantemente na tentativa de acompanhar a rapidez com que muda a sociedade, então de fato não teríamos um grupo de onze juízes para fazer o controle de constitucionalidade das leis, posto que ele seria feito por toda sociedade.


Nesse sentido, Peter Häberle já previa a queda de uma interpretação constitucional exclusivamente nas mãos do Estado. Para o autor, o monismo estatal deve ser extirpado e dar lugar ao pluralismo jurídico, tornando cada vez mais a sociedade como ente ativo e determinante na interpretação constitucional.


“A teoria da interpretação constitucional esteve muito vinculada a um modelo de interpretação de uma ‘sociedade fechada’. Ela reduz, ainda, seu âmbito de investigação, na medida em que se concentra, primeiramente, na interpretação constitucional dos juízes e nos procedimentos formalizados.” (HÄBERLE, 1997, p. 12)


Temos então aí uma possibilidade de interpretação que torna todos juízes e transforma o controle de constitucionalidade em algo de fato democrático, como o queria Ely. Dworkin não se detém sobre a possibilidade de sociedade aberta de intérpretes, portanto não iremos nos demorar sob a hipótese. Entretanto, seria uma situação que constrangeria a teoria dworkiana de impossibilidade de evitar julgamentos substantivos por tribunais.


No caso exposto a teoria de Dworkin poderia confirmar a legitimidade da decisão do STF. É possível sim encontrar em Dworkin argumentos que poderiam combater o caráter político da Suprema Corte brasileira no que diz respeito ao putativo autoritarismo e contramajoritarismo com que essa tratou o processo “ficha limpa”. Porém, aqui quisemos apenas certificar a legitimidade da instituição mesmo quando suas ações enquadram-se claramente no que se chama de “ativismo judicial”.


4. Conclusão


A análise do caso tendo como base a obra de Ronald Dworkin faz-nos concluir que a interferência do judiciário em questões legislativas é possivelmente aceita e compreensível quando o que está em jogo é a segurança de todo ordenamento jurídico. O STF não se posicionou contra ou a favor da legitimidade da ficha limpa, mas a sua aplicação em 2010, pois passa por cima de legislação anteriormente estabelecida, legislação esta que dá aos partidos políticos e seus representantes uma segurança para apresentar seus candidatos mediante os critérios apresentados pela legislação anterior à lei complementar 135/10.


Muitos são aqueles que alegam que a decisão do supremo foi uma soma de opiniões políticas dos ministros da corte, tentando assim deslegitimar a decisão estabelecida. No entanto, o que se vê em Dworkin é que qualquer que tivesse sido a decisão do tribunal esta sempre seria carregada de pessoalidade política, de modo que é uma ilusão crer na apoliticidade total dos tribunais, tão pouco seria desejável um tribunal puramente mecânico, juízes como engrenagens de uma máquina fria que poderia vir a se tornar o Estado. Então ai sim estaríamos diante do total afastamento do Estado do calor do povo.


 


Referências bibliográficas:

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

ELY, John Hart. Democracia e desconfiança – Uma teoria do Controle Judicial de Constitucionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – a Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Constituição para e Procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1997.

Supremo Tribunal Federal. Acompanhamento processual: RE 633703. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4003780>  acesso em 30 de junho de 2011.

Ficha Limpa, anterioridade eleitoral e o voto do ministro Gilmar Mendes no RE 633703. Disponível em: http://www.osconstitucionalistas.com.br/ficha-limpa-anterioridade-eleitoral-e-o-voto-do-ministro-gilmar-mendes-no-re-. Acesso em 30 de junho de 2011.

ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. A Lei Ficha Limpa em revista e os empates no STF.

O dilema entre o politicamente correto e o constitucionalmente sustentável. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/17925/a-lei-ficha-limpa-em-revista-e-os-empates-no-stf>. Acesso em 30 de junho de 2011.

Informações Sobre os Autores

Jonnaelvis Pereira Silva

Estudante de Direito.

Hemerson Daniel Fernandes de Sousa

Estudante de Direito.


Equipe Âmbito Jurídico

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