Sumário: 1 Introdução. 2 Requisitos para concessão de incentivos tributários. 3 Diversas modalidades de renúncia de receita pública. 3.1 A questão da isenção específica e a superveniência da LRF. 4 Hipóteses excepcionais de inaplicação do art. 14 da LRF. 5 Conclusão.
1 Introdução
A Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF – veio à luz para servir de instrumento básico para a consolidação de Programa de Estabilização Fiscal reclamada por organismos internacionais, sob a coordenação do FMI. Objetiva, pois, drástica redução do déficit público e a estabilização do montante da dívida pública.
Para tanto, de um lado, introduziu mecanismos de combate de duas grandes despesas tradicionais: despesas com pessoal e despesas com serviços da dívida, que absorvem maior parte das receitas, pouco deixando para as despesas de capital, notadamente, das de investimentos, comprometendo a qualidade de vida das gerações futuras.
De outro lado, visou aperfeiçoar o mecanismo de arrecadação tributária e condicionar a concessão de incentivos tributários que vinham sendo concedidos desordenadamente, sob diferentes modalidades.
De fato, esses incentivos, às vezes, tinham aplicação no próprio exercício em que introduzidos, concorrendo para o desequilíbrio das contas públicas.
Qualquer medida que implique redução discriminada de tributos enquadra-se no conceito de incentivos tributários.
2 Requisitos para concessão de incentivos tributários
A LRF limita a ação do legislador na concessão de incentivos de natureza tributária nos termos do art. 14 que assim prescreve:
“Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições:
I – demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;
II – estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.
§ 1o A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.
§ 2o Se o ato de concessão ou ampliação do incentivo ou benefício de trata o caput deste artigo decorrer da condição contida no inciso II, o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas referidas no mencionado inciso.
§ 3o O disposto neste artigo não se aplica:
I – às alterações das alíquotas dos impostos previstos nos incisos I, II, IV e V do art. 153 da Constituição, na forma do seu § 1o;
II – ao cancelamento de débito cujo montante seja inferior ao dos respectivos custos de cobrança.”
Como se vê, esse art. 14 objetiva alcançar as metas previstas no art. 1° da LRF, por meio de uma gestão fiscal responsável, planejada e transparente, a fim de prevenir situações de desequilíbrio orçamentário.
Por isso, impõe limites e condições para a concessão ou ampliação de incentivo ou benefício que implique renúncia de receita pública. Não interfere, nem cria obstáculos à concessão de benefícios ligados às receitas não tributárias, como é o caso de privilégios outorgados a usuários de serviços públicos concedidos.
A LRF limita o poder de renunciar tributos que é corolário do poder de instituir, fiscalizar e arrecadar tributos. A criação de tributos encontra limitações de ordem constitucional, enquanto que a renúncia de tributos encontra limitações de natureza legal.
Para abrir mão de receita tributária, em aparente contradição com o princípio da generalidade (todos devem pagar impostos) e com o princípio da universalidade (todos os bens, serviços e rendas devem ser tributados), que regem o fenômeno tributário, é preciso que esteja presente o interesse público que direcione a ação do governante no sentido de renunciar à parcela de receita para consecução do bem comum. É o caso, por exemplo, de incentivos fiscais referidos no art. 151, inciso I, da Constituição Federal destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do país. Esse princípio tem aplicação nos âmbitos estadual e municipal, por força do princípio da simetria. O que não se admite são as “guerras tributárias”, infelizmente, arraigadas na cultura dos governantes e que acabam agravando os desníveis regionais.
O nível de imposição tributária, ou a concessão de incentivos fiscais não se inserem na seara do direito tributário, mas no campo da política tributária. A confusão dessas duas realidades tem conduzido a situações peculiares como no caso de ação judicial para obrigar o poder público a corrigir a tabela do IR, implicando atividade legislativa do Judiciário na fixação de determinado indexador quando acolhida a ação. E mais, a decisão judicial, nesse caso, implica redução de imposto sem lei, violando o princípio da legalidade tributária.
O dispositivo sob comento deixa claro que a renúncia tributária, onde se insere a tradicional isenção, é um instrumento de planejamento das finanças públicas. O fim visado não é beneficiar o seu destinatário que apenas usufrui desse benefício por via indireta. Lamentavelmente, na prática, a ação de lobistas de diversos setores da economia tem conduzido a uma política de favorecimento tributário deste ou daquele setor, inclusive, causando situação de concorrência desleal, quebrando a espinha dorsal do regime econômico da livre iniciativa fundado no princípio da livre concorrência (art. 170, IV, da CF).
As regras previstas nos incisos I e II, do art. 14 sob exame dificultam a concessão de incentivos tributários por “encomenda” dos interessados.
O inciso I condiciona o ente político concedente do benefício à demonstração prévia de que a renúncia pretendida foi considerada na estimativa da receita na Lei Orçamentária Anual – LOA – na forma do art. 12 da LRF, e que não afetará as metas dos resultados fiscais previstos nos anexos da Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO. A LDO, ao orientar a elaboração da LOA, deve dispor sobre alterações da legislação tributária considerando os aumentos e reduções legais de tributos para possibilitar a correta estimação de receitas no orçamento anual.
O inciso II exige que a proposta de renúncia esteja acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio de aumento da carga tributária mediante elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo. Prescreve o § 2°, do art. 14, que a vigência do incentivo ou benefício, decorrente de medidas de compensação da perda de arrecadação, fica condicionada à efetiva implementação dessas medidas, de sorte a não provocar qualquer desequilíbrio nas contas públicas. É a constatação da sabedoria do velho ditado popular: quando alguém deixa de pagar imposto outro alguém passa a pagar em dobro.
Com as exigências previstas nos dois incisos comentados torna-se impossível, juridicamente, a supressão pura e simples do encargo tributário, para atender aos diversos interesses políticos divorciados do verdadeiro interesse público.
Porém, na prática as três esferas impositivas vêm concedendo incentivos tributários sem o cumprimento dos requisitos do art. 14 retro analisado. E mais, os Estados membros vêm outorgando benefícios tributários unilateralmente em relação ao ICMS, não só com violação do citado art. 14 da LRF, como também com afronta ao art. 155, XII, g, da CF que submete essa questão à regulamentação por Convênios firmados pelos Estados integrantes da Federação Brasileira, na forma da lei complementar[1]. São as chamadas “Guerras Tributárias” que tantos transtornos vêm causando aos contribuintes em geral, que vêm suportando os efeitos maléficos desses incentivos ilegais e inconstitucionais mediante a glosa dos créditos apropriados, sempre que originados de Estados que concederam unilateralmente o benefício tributário.
Nessas hipóteses de transgressões legais e constitucionais , cabe ao Poder Judiciário decidir quando provocado por quem de direito.
3 Diversas modalidades de renúncia de receitas tributárias
O § 1°, do art. 14 nomina, de forma exemplificativa, as variadas espécies do gênero renúncia de receita pública. A anistia está regulada nos arts. 180 a 182, do CTN. Significa perdão do crédito tributário e da infração tributária. A remissão, que pode ser total ou parcial, nos termos do art. 172, do CTN, significa perdão apenas do crédito tributário. Subsídio é a quantia ou o auxílio que o Estado dá ao particular por força de convênio ou acordo para desenvolvimento de atividade de interesse social. Crédito presumido é o valor estimativo, fixado pelo poder público a favor do contribuinte de imposto de natureza não-cumulativa em função dos insumos e da combinação de fatores de produção (matérias-primas, materiais secundários consumidos no processo de industrialização, energia consumida etc.) que entram na produção final de bens ou serviços. Concessão de isenção de caráter não geral é aquela que se concede caso a caso, mediante exame da autoridade administrativa competente, nos termos do art. 179, do CTN. Apesar de resultar de lei, esse tipo de isenção assume feição contratual, à medida que representa um privilégio fiscal condicionado ao atendimento por parte do contribuinte de certos requisitos de interesse público. Por isso, é outorgada por prazo determinado não cabendo sua revogação, conforme jurisprudência pacífica dos tribunais. As isenções gerais, que são incondicionadas, estão fora do alcance da norma sob comento.
Finalmente, a alteração de alíquota ou redução da base de cálculo diz respeito ao aspecto quantitativo do fato gerador da obrigação tributária encontrando-se sob reserva de lei (art. 97, II, do CTN). Enfim, quaisquer outros benefícios que refogem dos princípios da generalidade e da universalidade da tributação estão abrangidos pelas restrições do art. 14 da LRF.
3.1 A questão da isenção específica e a superveniência da LRF
Em relação às isenções especiais vigentes à época do advento da LRF há uma questão de ordem prática a ser enfrentada. Como ficam essas isenções outorgadas antes do advento da LRF? Elas teriam que se adequar aos requisitos previstos no art. 14 sob comento, como condição para continuar usufruindo do benefício tributário?
É do nosso conhecimento que alguns Municípios revogaram isenções da espécie, sob a alegação de que elas contrariam disposições supervenientes da LRF e sob o fundamento de que normas de direito público são de aplicação imediata.
Não comungamos com esse entendimento, pois vige entre nós o princípio do direito adquirido[2] que está previsto em nível constitucional (art. 5°, XXXVI, da CF), protegido pela cláusula pétrea (art. 60, 4°, IV, da CF). O nosso ordenamento jurídico é diferente do ordenamento jurídico de outros países como, por exemplo, o da França, onde o princípio do direito adquirido é protegido apenas no nível legal. Por isso, doutrinadores franceses, dentre os quais Georges Ripert, sustentam a tese da aplicação imediata dos preceitos de ordem pública, posicionamento esse transposto para a doutrina brasileira, por alguns dos autores de nomeada, de forma equivocada, provocando dissenso jurisprudencial.
Dúvida não há de que a empresa favorecida pela isenção específica ou qualquer outro tipo de incentivo tributário, por tempo certo, tem direito adquirido à sua fruição até o final do termo previsto na lei, sem que possa o Município alegar contrariedade às disposições da LRF, e, assim, deixar de cumprir a parte que lhe cabe.
A recusa do ente político em cumprir as obrigações decorrentes de sua lei específica de renúncia tributária abrirá caminho para a beneficiário prejudicado pleitear na Justiça o seu direito adquirido, insusceptível de supressão até mesmo por via de Emenda Constitucional.
4 Hipóteses excepcionais de inaplicação do art. 14 da LRF
O § 3° excepciona do âmbito de incidência do caput, do art. 14 os impostos federais de natureza regulatória que, por expressa disposição constitucional, não se submetem ao princípio da legalidade tributária no que tange às alterações de suas alíquotas, nos limites e condições previstas em lei (§ 1°, do art. 153, da CF). Esses impostos (imposto de importação; imposto de exportação; imposto sobre produtos industrializados; e imposto sobre operações de crédito, câmbio, seguro e sobre operações relativas a títulos e valores mobiliários) existem, não com a finalidade arrecadatória, mas com o objetivo de regular as atividades econômicas. São conhecidos na doutrina como tributos extrafiscais.
O imposto de importação e o imposto de exportação têm por objetivo regular o comércio exterior, sempre sujeito às variações conjunturais e, às vezes, às injunções políticas de governos estrangeiros. Por isso, estão livres, tanto do princípio da anterioridade (§ 1º, do art. 151, da CF), como do princípio da legalidade no que diz respeito à alteração de alíquotas “nos limites e condições estabelecidas em lei” (§ 1º, do art. 153, da CF). A Constituição outorgou ao Executivo instrumento normativo ágil para, nos limites da lei, ofertar rápida resposta às situações anômalas supervenientes no plano do comércio exterior.
A função regulatória do IPI, igualmente dispensado da observância dos dois princípios constitucionais retroapontados, repousa no caráter seletivo em função da essencialidade do produto, conceito que varia no tempo e no espaço. O que é essencial hoje pode ser supérfulo amanhã. E o que é essencial aqui, pode não ser em outra localidade.
O IOF tem a sua função ordinatória baseada na fixação da política de câmbio, crédito e seguro, e também de títulos e valores mobiliários. O efeito arrecadatório é mera conseqüência da função extrafiscal.
Por isso, esses quatro impostos não se submetem ao secular princípio da legalidade tributária no que tange à alteração de alíquotas, nem ao princípio da anterioridade. Eles têm a missão de regular a economia em seus vários aspectos, a demandar um instrumento normativo célere e eficaz, o que não seria possível alcançar por meio de uma lei aprovada pelo Congresso Nacional que poderia demandar anos de discussão.
São excluídas, também, do âmbito das restrições do art. 14 as hipóteses de cancelamento de créditos tributários, cujo montante seja inferior ao dos respectivos custos de cobrança, pois isso não irá acarretar desequilíbrio orçamentário, pelo contrário, poderá contribuir para o seu equilíbrio.
5 Conclusão
É preciso que as leis que concedem ilegalmente benefícios tributários de toda ordem sejam questionadas na Justiça, a fim de que os requisitos para a renúncia de receitas públicas, previstos no art. 14 da LRF, sejam observados contribuindo para atingir a sua meta de manter o equilíbrio do orçamento público.
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
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