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Linhas gerais da disciplina legal das cultivares

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Resumo: O artigo aborda os principais aspectos legais das cultivares vegetais, apresentando o conceito e as implicações de um instituto de grande importância para a agroindústria brasileira.


Palavras-Chaves: 1. Cultivares. 2. Variedades Vegetais.


Sumário: 1. Introdução. 2. Disciplina Legal. 3. Conceito de Cultivar. 4. Proteção. 5. Sanções. 6. Conclusões.


1. Introdução


Conforme recentemente noticiado pela mídia[1], foi promovida, no final do mês de março, busca e apreensão de mudas de cana-de-açúcar na empresa Canavialis S/A, atuante no segmento de biotecnologia, em operação que contou com a participação da Procuradoria Federal da Universidade Federal de Viçosa/MG, da Procuradoria Regional Federal de Campinas/SP e da Polícia Federal. A operação flagrou a citada empresa de posse de mudas que pertenceriam à universidade mineira.


Para embasar a ação proposta a Universidade Federal de Viçosa sustentou ser proprietária de cultivar de cana-de-açúcar registrada no Ministério da Agricultura, razão pela qual a posse e o manuseio das mudas por parte da Canavialis S/A, sem autorização expressa e sem a contraprestação devida, ante o desrespeito à legislação em vigor, ensejaram a propositura da medida judicial acima referida. A Canavialis S/A, de acordo com o noticiado pela imprensa, argumentou que as mudas pertencem a clientes, tendo atuado, em relação às cultivares, como mera prestadora de serviços de beneficiamento (limpeza).


Obviamente que caberá ao Poder Judiciário, após análise dos argumentos das partes, das provas coletadas e das perícias eventualmente necessárias, determinar as responsabilidades dos envolvidos, mas o conflito ora relatado fornece uma interessante oportunidade para uma breve discussão sobre o instituto das variedades, figura de imprescindível relevância para o agronegócio, especialmente o setor sucroalcooleiro. A despeito das inquietações causadas pela crise financeira mundial, e das dificuldades experimentadas por importantes empresas[2], o segmento possui enorme potencial[3], dado o aumento no consumo interno do álcool etanol, bem como o interesse de outros países no produto, além da atual valorização do açúcar[4], razão pela qual os investimentos em tecnologia são cada vez mais estratégicos, exigindo, portanto, redobradas cautelas, em especial para as cultivares de cana-de-açúcar.


2.Disciplina Legal


A Lei federal 9.456, de 25 de abril de 1997[5], tutela a variedade de espécie ou gênero vegetal, denominada cultivar, tarefa desincumbida igualmente pelo Decreto 2.366/97[6], que regulamenta a Lei de Cultivares, e pela Lei federal 10.711, de 5 de agosto de 2003[7], que institui o Sistema Nacional de Sementes e Mudas (SNSM), este, por sua vez, regulamentado pelo Decreto 5.153, de 23 de julho de 2004[8]. O Sistema Nacional de Proteção de Cultivares (SNPC), criado pela Lei federal 9.456/97 e mantido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, é o órgão máximo do setor.


Em realidade, temos que a proteção às cultivares deve ser contextualizada dentro de um objetivo ainda mais relevante: o incentivo à pesquisa e à realização de investimentos em tecnologia no meio agrícola, que integram expressamente as diretivas da Política Agrícola brasileira[9], estabelecidas pela Constituição Federal de 1988 (art. 187, III). A partir da premissa constitucional, compete às leis e aos decretos acima citados outorgar a efetividade e a segurança jurídica que o mercado exige no trato de cultivares, mudas e sementes.


 Além da legislação infraconstitucional referida, a Instrução Normativa n.° 24, de 16 de dezembro de 2005[10], do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, também fornece relevantes subsídios para a compreensão da matéria ao disciplinar a produção, distribuição e comercialização de mudas.


3.Conceito de Cultivar


Nos termos do inciso IV do art. 3º da Lei federal 9.456/97[11], a cultivar é definida como “variedade de qualquer gênero ou espécie vegetal superior, que seja claramente distinguível de outras cultivares conhecidas, por margem mínima de descritores, por sua denominação própria, que seja homogênea e estável quanto aos descritores através de gerações sucessivas e seja de espécie passível de uso pelo complexo agroflorestal, descrita em publicação especializada disponível e acessível ao público, bem como a linhagem componente de híbrido”.


4. Proteção


Conforme dispõe o art. 5º da Lei federal 9.456/97, ao titular de cultivar reconhecida na forma da legislação é assegurado o direito exclusivo de propriedade. Em complemento, o art. 9º da mesma lei assegura ao seu proprietário direito à “reprodução comercial no território brasileiro”, ao mesmo tempo em que proíbe a terceiros, no prazo da proteção, a “produção com fins comerciais, o oferecimento à venda ou a comercialização, do material de propagação da cultivar, sem autorização do legítimo titular”.


Para que os direitos atinentes a uma cultivar sejam reconhecidos se faz necessária a obtenção do Certificado de Proteção de Cultivar, considerado pelo artigo 2º da Lei federal 9.456/97, em sua parte final, como “única forma de forma de proteção de cultivares e de direito que poderá obstar a livre utilização de plantas ou de suas partes de reprodução ou de multiplicação vegetativa” no Brasil.


 Observados os procedimentos estabelecidos para o processamento do pedido de registro da cultivar, conforme Seção V da Lei federal 9.456/97, o titular gozará, conforme estabelecido pelo artigo 11, de proteção por quinze anos (regra geral) ou dezoito anos (videiras, árvores frutíferas, árvores florestais e árvores ornamentais), a contar da concessão do Certificado de Proteção Provisória, obtido após a publicação do pedido de proteção (artigo 19). Superados os prazos do artigo 11, a cultivar cai em domínio público (artigo 12).


5.Sanções


 A Lei federal n.º 9.456/97 estabelece, dentre outros itens, um conjunto de sanções a que se sujeita aquele que vende, oferece a venda, reproduz, importa, exporta, embala, armazena, e cede a qualquer título material de propagação de cultivar protegida sem autorização do titular, ainda que com denominação incorreta (artigo 37, caput).[12]


Assim, o infrator nos termos da lei está sujeito a três medidas judiciais cíveis:


a) apreensão do material irregular, indispensável para a efetiva comprovação do desrespeito ao direito de propriedade intelectual de seu titular;


b) exigência de pagamento de indenização, calculada com base nos preços de mercado para a espécie, praticados à época da constatação da infração;


c) pagamento de multa, equivalente a 20 % (vinte por cento) do valor comercial do material apreendido; o parágrafo 1º do citado artigo 37 da Lei federal 9.456/97 estipula aplicação desta multa em dobro na hipótese de reincidência do infrator, ainda que com material diverso do apreendido anteriormente.


O parágrafo 2º do mesmo artigo 37 também estabelece a entrega do material para agricultores participantes de programas da Reforma Agrária ou em áreas dedicadas à agricultura familiar, sendo proibida, porém, a comercialização dos produtos obtidos a partir das cultivares distribuídas.


Por derradeiro, o parágrafo 3º do artigo 37 esclarece que as penalidades previstas em seu caput e parágrafo 1º não alcançam as hipóteses elencadas no artigo 10 da mesma lei; os incisos deste artigo estabelecem que não será considerado infrator aquele que conceder às variedades a seguinte destinação:


a) plantio para uso próprio;


b) utilização ou venda como alimento ou matéria-prima;


c) utilização como fonte de variação no melhoramento genético ou para fins de pesquisa;


d) multiplicação para doação ou troca, exclusivamente entre pequenos produtores[13] rurais, desde que no âmbito de programa de apoio a pequenos produtores conduzido pelo Poder Público ou por entidade autorizada pelo mesmo.


A lei federal 9.456/97 prevê, porém, uma exceção especial ao conceder, no parágrafo 1º de seu artigo 10, proteção diferenciada para a cultivar de cana-de-açúcar, não só para excluí-la das 04 (quatro) hipóteses acima, mas também para apresentar exigências extras:


“Art. 10. (…)


§ 1º Não se aplicam as disposições do caput especificamente para a cultura da cana-de-açúcar, hipótese em que serão observadas as seguintes disposições adicionais, relativamente ao direito de propriedade sobre a cultivar:


I – para multiplicar material vegetativo, mesmo que para uso próprio, o produtor obrigar-se-á a obter a autorização do titular do direito sobre a cultivar;


II – quando, para a concessão de autorização, for exigido pagamento, não poderá este ferir o equilíbrio econômico-financeiro da lavoura desenvolvida pelo produtor;


III – somente se aplica o disposto no inciso I às lavouras conduzidas por produtores que detenham a posse ou o domínio de propriedades rurais com área equivalente a, no mínimo, quatro módulos fiscais, calculados de acordo com o estabelecido na Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, quando destinadas à produção para fins de processamento industrial;


IV – as disposições deste parágrafo não se aplicam aos produtores que, comprovadamente, tenham iniciado, antes da data de promulgação desta Lei, processo de multiplicação, para uso próprio, de cultivar que venha a ser protegida.”


A par das regras impostas para a cana-de-açúcar, temos que o legislador, reconhecendo sua importância econômica, preferiu ser mais rigoroso na exploração de suas cultivares, já que é a única espécie vegetal excepcionada. Porém, a despeito do nível de exigências que protegem a cultivar de cana-de-açúcar, a lei também se preocupa com o produtor, pois, conforme inciso II do parágrafo 1º do artigo 10, a cobrança de royalties, quando indispensável para que aquele tenha acesso às cultivares, não poderá ferir o equilíbrio econômico-financeiro de sua lavoura.


6.Conclusões


Na forma do artigo que ora finalizamos intencionamos informar, em linhas gerais, os traços elementares da legislação que trata das cultivares, bem como as sanções cíveis previstas para os que descumprirem referidos dispositivos. Historicamente um grande produtor de riquezas agrícolas, o Brasil, ao longo das últimas décadas, desenvolveu seu agronegócio e o dotou de estrutura e qualidade comparáveis aos países mais desenvolvidos do globo. Porém, ao lado de outros grandes desafios, a tarefa de proteger sua tecnologia é permanente, estando inserida neste contexto a disciplina legal das cultivares.


Dada a complexidade do assunto, seu enfrentamento exige o exame de um vasto rol de dispositivos legais, especialmente por aqueles que nele pretendem atuar com segurança. Tarefa impossível de ser esgotada neste limitado esforço, onde, conforme já ressaltado, procuramos enfatizar as informações mais indispensáveis, esperamos, porém, que nosso trabalho possa contribuir para o debate de um tema que repercute em segmentos econômicos dos mais variados (alimentação, energia etc), e que, por suas oportunidades, pode contribuir ainda mais para o desenvolvimento do Brasil.


 


Notas:



[3] Tarcizio Goes, Marlene de Araújo e Renner Marra, profissionais atuantes na Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), no artigo “Novas Fronteiras Tecnológicas da Cana-de-Açúcar no Brasil”, destacam a importância ambiental do álcool etanol, combustível produzido especialmente a partir da cana-de-açúcar: “O etanol pode ser a alternativa para a redução da emissão de gases ou partículas tóxicas nocivas à saúde humana e ao meio ambiente, liberadas pela queima de combustíveis fósseis. O esgotamento progressivo das fontes fósseis de energia e problemas de ordem ambiental gerados pela queima de tais produtos exigem novas escolhas de uso de energia”. Revista de Política Agrícola, ano XVIII, n.° 1, jan/fev/mar 2009, Brasília/DF, p. 51. Disponível em http://www.agricultura.gov.br/images/MAPA//arquivos_portal/rpa/RPA_4_2008.pdf. Acesso em 28.04.2009. No mesmo texto também é possível vislumbrar toda a cadeia produtiva da cana-de-açúcar, que passa pela exploração do açúcar e do álcool em várias áreas (p. 02).


[5] Publicada no Diário Oficial da União de 08.04.1997. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9456.htm; acesso em 27.04.2009.

[6] Publicado no Diário Oficial da União de 06.11.1997. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1997/D2366.htm, acesso em 27.04.2009.

[7] Publicada no Diário Oficial da União de 06.08.2003. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.711.htm; acesso em 27.04.2009.

[8] Publicado no Diário Oficial da União de 26.07.2004. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5153.htm#anexo, acesso em 27.04.2009.

[9] Sobre pesquisa agrícola, vide art. 11 e seguintes da Lei federal 8.171, de 17 de janeiro de 1991 (Política Agrícola). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil/Leis/L8171.htm; acesso em 28.04.2009.

[10] Publicada no Diário Oficial da União de 20.12.2006, seção 1, p. 5. Disponível in http://extranet.agricultura.gov.br/sislegis-consulta/consultarLegislacao.do?operacao=visualizar&id=15074, acesso em 27.04.2009.

[11] No mesmo sentido, vide subitem XIX, item 3 (conceituações), do anexo de Normas para Produção, Comercialização e Utilização de Mudas da Instrução Normativa n.° 24, de 20.12.2006, do Ministério da Fazenda, bem como o inciso XV do artigo 2º da Lei 10.711/03.

[12] O já citado artigo 37, caput, da Lei federal 9.456/97, também estabelece, ao lado das sanções cíveis, o crime de violação de direitos de melhorista para quem incorrer em qualquer prática que redunde no desrespeito à propriedade intelectual das variedades, além de outras dispostas em lei.

[13] O parágrafo 3º do artigo 10 da Lei federal 9.456/97 classifica como pequeno produtor rural todo aquele que, simultaneamente: explore parcela de terra enquanto proprietário, posseiro, arrendatário ou parceiro; utilize os serviços de até dois empregados permanentes, sendo permitido o apoio de terceiros se a sazonalidade da atividade exercida assim demandar; não possua área superior a quatro módulos fiscais; comprove que 80% (oitenta por cento) de sua renda bruta anual, no mínimo, decorra de atividade agropecuária ou extrativa e, por último, resida na propriedade ou em aglomerado urbano ou rural próximo.

Informações Sobre o Autor

Orlando Guimaro Júnior

Pós-graduado em Direito Contratual (PUC/SP). Membro da Comissão de Acompanhamento Legislativo da OAB/SP. Presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/Piracicaba. Sócio da Borges Neto e Barbosa de Barros – Sociedade de Advogados.


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Equipe Âmbito Jurídico

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