Categories: CrônicasRevista 65

Milagre da ciência

Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!


Nasceram Ana Luiza e Eduardo.


Filhos de quem? De um milagre da ciência!


Claro que foram concebidos em decorrência da união de óvulos e espermatozóides. Mas, com a revolução provocada pela engenharia genética, a concepção não mais decorre, necessariamente, via contato sexual entre um homem e uma mulher.


Quando a ciência aprendeu a fazer a fertilização de um óvulo em laboratório e conseguiu implantá-lo no ventre feminino, ocasionou a maior revolução que o mundo teve a oportunidade de presenciar.


Agora o sonho de ter filhos e de constituir família está ao alcance de qualquer um. Ninguém precisa ter par, manter relações sexuais, ser fértil para tornar-se pai ou mãe.


Os métodos se sofisticaram e o Estado não teve outro jeito senão acompanhar esta evolução. Tanto é assim que o Conselho Federal de Medicina adotou normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida (Resolução 1.358/92). O Código Civil não conseguiu ignorar esses avanços e, ao estabelecer presunções de paternidade, faz referência a elas, ainda que de forma bastante limitada (CC 1.597, III a V). Para quem não sabe, a concepção chama-se homóloga quando o material genético utilizado no procedimento de fertilização é do marido. Por presunção, ele é o genitor. Já na concepção heteróloga, é feito uso de esperma de doador. Havendo a concordância do marido, ele é considerado o pai.


Essas normatizações, no entanto, não são suficientes para atender aos avanços da ciência. Assim, quando surge situação não prevista no ordenamento jurídico, o Poder Judiciário é convocado a decidir. Como se vive em um Estado Democrático de Direito, as decisões dos juízes não podem se afastar dos comandos constitucionais. A lacuna da lei não significa ausência de direito, e a Justiça precisa decidir de conformidade com os mandamentos constitucionais. Os primeiros princípios elencados são o da cidadania e o da dignidade da pessoa humana (CF 1º, II e III). Entre os objetivos fundamentais encontra-se o de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF 3º, VI). Mas há um punhado de postulados outros que precisam ser atendidos. A Constituição considera a família a base da sociedade, outorgando-lhe especial atenção (CF 226). Também admite o planejamento familiar tendo como base os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (CF 226, § 7º). Fora isso, é assegurado a crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, o direito à convivência familiar (CF 227).


Com o alargamento do conceito de família não mais se pode admitir presunções de paternidade exclusivamente no casamento. A união estável adquiriu o status de família, e as uniões de pessoas do mesmo sexo passaram a ser reconhecidas como entidade familiar pela jurisprudência. As famílias, todas elas, embalam o sonho de ter filhos e não há como limitar o uso das técnicas reprodutivas aos cônjuges ou a quem vive em união estável. Também as famílias homoafetivas precisam ter acesso à filiação, ainda que, enquanto casal, não consigam procriar. 


Como não é possível negar o uso dos meios reprodutivos em face da orientação sexual de quem quer ter filhos, os homossexuais passaram a se socorrer da concepção medicamente assistida. Foi exercitando este direito que Adriana e Munira resolveram realizar o sonho de aumentar sua família. Munira doou os óvulos que, fertilizados em laboratório, foram implantados no útero de Adriana que acabou de lar à luz a um casal de gêmeos: Ana Luiza e Eduardo.


Mais uma vez a pergunta. Quem é a mãe? Não cabe outra resposta: ambas são as genitoras. O só fato de ter Adriana carregado os filhos no seu ventre, não a autoriza a registrá-lo somente em seu nome. Aliás, a Justiça já vem admitindo que, em caso de gestação por substituição, o registro seja feito em nome de quem forneceu o material genético. De outro lado, nada justifica impedir que no registro de nascimento conste também o nome de Munira. O exame de DNA comprova ser ela a mãe biológica.


Esta é a única solução. Proceder ao registro em nome de ambas, pois as duas são mães, não só por uma ser a mãe gestacional e a outra a mãe biológica. Indiscutivelmente, são elas as mães, porque juntas planejaram tê-los e juntas não mediram esforços para que o sonho comum se realizasse.


Diante desta realidade, que se tornou possível graça aos avanços da ciência, outra não poderá ser a resposta da Justiça, senão determinar que o registro retrate a verdade. Negar a Eduardo e Ana Luiza o direito de serem reconhecidos como filhos de Adriana e Munira é afrontar o direito à identidade, é desrespeitar o princípio da dignidade humana, é negar-lhes o direito à convivência familiar. Afinal, crianças e adolescentes merecem, com prioridade absoluta, especial proteção do Estado. Para isso indispensável que as duas exerçam o poder familiar e assumam juntas todos os encargos decorrentes desse poder-dever, entre eles, o de criá-los, educá-los e tê-los em sua companhia (CC 1.634). Enfim, é de ambas o compromisso de torná-los cidadãos que se orgulhem de terem nascido em um país que sabe respeitar a dignidade de cada brasileiro.



Informações Sobre o Autor

Maria Berenice Dias

Advogada, Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM


Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!
Equipe Âmbito Jurídico

Recent Posts

Diferença entre audiência de justificação e audiência de custódia

A audiência de justificação é um procedimento processual utilizado para permitir que uma parte demonstre,…

1 hora ago

Audiência de justificação

A audiência de justificação é um procedimento processual utilizado para permitir que uma parte demonstre,…

1 hora ago

Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV)

O trânsito brasileiro é um dos mais desafiadores do mundo, com altos índices de acidentes…

4 horas ago

Nova resolução do Contran sobre retrovisores

O Conselho Nacional de Trânsito (Contran) implementou uma nova resolução que regula as especificações dos…

4 horas ago

Exame obrigatório para renovação da CNH: novas regras para 2025

A partir de janeiro de 2025, uma importante mudança entrará em vigor para todos os…

4 horas ago

Direitos trabalhistas

Os direitos trabalhistas são garantias previstas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e na…

5 horas ago