Noções gerais sobre a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica no direito brasileiro

A Teoria da Disregard Doctrine tem como objetivo, como se comprovou, fazer com que o escudo da entidade abstrata venha a ser ultrapassado. Como conseqüência, o patrimônio dos sócios gerentes ou majoritários, e em alguns casos o dos administradores responsáveis, passam a responder pelos créditos devidos. Isso evita um prejuízo por parte do credor e, portanto, é um instrumento que busca aperfeiçoar a prestação jurisdicional no que diz respeito a sua entrega.

Todavia, somente quando houver fortes indícios, ou mesmo a comprovação direta, de fraude, má gestão ou de alguma forma de abuso ou excesso de poder, é que se poderá fazer uso da Desconsideração da Pessoa Jurídica. A razão disso é que esse instituto foi criado exatamente para se sobrepor a essa ou aquela pessoa jurídica, a qual serviria para incobrir interesses escusos de pelo menos um de seus donos, desse modo prejudicando o credor.

O exemplo emblemático desses casos ocorre quando os sócios, normalmente majoritários ou principais dessa sociedade, revelam uma saúde oposta a da empresa falida ou quase falida. Inúmeros são os casos em que após falirem a empresa, deixando um imenso prejuízo aos funcionários e credores, os donos continuam tão ou mais ricos que antes.

Apesar disso, no Brasil, especificamente na Justiça do Trabalho, a aplicação da Desconsideração tem sido efetuada sem que se cogite de qualquer fraude ou atividade dolosa por parte da administração da empresa. Basta haver comprovação de prejuízo para o trabalhador, para que o juiz mande buscar nos bens dos sócios ou gerentes, principalmente nos do sócio-gerente, a almejada compensação.

Comprovando-se que a pessoa jurídica foi constituída somente com o intuito de fazer os bens dos sócios não responderem, havendo o enriquecimento dos sócios em detrimento da sociedade, visto que todo o lucro é destinado ao patrimônio pessoal dos sócios, então esse é o momento de se desconsiderar a pessoa jurídica e de se perseguir os sócios. O problema é que, devido à possibilidade que tem o juiz trabalhista de agir de ofício, neste tipo de assunto, ele acaba dando margem a procedimentos muitas vezes desrespeitosos e arbitrários.

Vejamos o caso de um juiz que, ao tentar executar uma empresa, observa que esta não possui bem nenhum. Após pedir à Junta Comercial uma cópia dos atos constitutivos, o magistrado observa quem são os sócios e, em seguida, oficializa perante a Receita Federal um pedido de declaração de bens desses sócios. De posse dessa listagem, ele faz expedir um mandado de penhora daqueles bens que constam da relação.

Esse procedimento de desconsideração da pessoa jurídica foi de ofício, embora normalmente isso aconteça a requerimento da parte. É que a Justiça do Trabalho tem como finalidade proteger os interesses do trabalhador, que é considerado historicamente o hipossuficiente na relação processual, e por isso muitos magistrados não aguardam o pronunciamento da parte.

Entretanto, corre o magistrado trabalhista o risco de desconsiderar a posição que um sócio ocupa na sociedade. O juiz muitas vezes ao desconsiderar a pessoa jurídica termina alcançando até os sócios minoritários, cuja participação nos rumos da empresa é ou foi insignificante. O sócio que tiver bens disponíveis é que acaba sendo atingido, enquanto que os responsáveis pela fraude ou pela má-fé já não têm mais nada em seus nomes, o que caracteriza uma violência contra a propriedade e contra o princípio do contraditório. Esse é o motivo por que a desconsideração deve ser direcionada contra o sócio-gerente ou sócio administrador, ou seja, aqueles que estão à frente da empresa.

Na verdade, como ainda não se positivou uma norma processual específica sobre a Desconsideração da Pessoa Jurídica em nosso país, cada juiz age conforme o seu entendimento. Isso não apenas gera uma desarmonia no procedimento a ser adotado pelos operadores do direito, mas dá margem a arbitrariedades, como a que foi citada acima.

Deve-se agir com cautela ao fazer uso desse instituto, afinal de contas o objetivo dele não é simplesmente anular a personalidade da pessoa jurídica, senão declarar a sua ineficácia e assim poder atingir o patrimônio dos sócios considerados responsáveis pelos débitos da sociedade.

Logo, princípios básicos em qualquer relação processual, como o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, devem ser obrigatoriamente respeitados. A Constituição Federal em seu art. 5º, por exemplo, afirma que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos e ela inerentes” (grifo nosso).

Com isso, diferentemente da Constituição de 1969 que apenas recomendava o uso de tais princípios, apesar da correta interpretação da doutrina que entendia pela sua obrigatoriedade, o texto atual optou por tornar regra as máximas de que ‘ninguém deve ser condenado sem ser ouvido’ e de que ‘todas as chances devem ser dadas antes da sentença final para que se prove a inocência’. É com base nesses princípios que ao cidadão se garante o direito de se defender na justiça, de ser citado quando lhe for imputado um processo, de provar o que alega e de recorrer contra as decisões que lhe forem desfavoráveis.

Em essência, estes dois princípios fazem parte do devido processo legal, que é a tradução para a expressão de origem inglesa due process of law. Para Nelson Nery Júnior (1999), este instituto “significa a obrigatoriedade da observância de um tipo de processo legalmente previsto antes de alguém ser privado da vida, da liberdade ou da propriedade”. Há ainda na nossa sistemática processual outras manifestações deste princípio, a exemplo do da publicidade dos atos processuais, do juiz natural, do procedimento regular e da motivação dos atos decisórios.

Desse modo, a prática da Teoria da Disregard Doctrine associada à direta ou automática penhora de bens ou bloqueio da conta bancária, sem o oferecimento da oportunidade de defesa e de cientificação pela parte, fere os já citados princípios constitucionais. O sócio gerente da empresa executada tem o direito de ter uma oportunidade para se pronunciar, de receber a citação ou até de entrar com exceção de pré-executividade a seu favor.

Urge, também, a uniformidade do procedimento, em se tratando da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, já que ninguém pode ser privado de uma propriedade sem processo anterior legalmente previsto, o que remonta naturalmente ao conceito de devido processo legal. Além do mais, somente assim é que o procedimento da desconsideração seria legitimado de vez, pois ainda há magistrados, especificamente na justiça comum, que relutam em aceitá-lo.

Um procedimento que procura respeitar tanto o contraditório quanto a ampla defesa e o devido processo legal, é aquele em que a parte interessada formula formalmente a sua pretensão, já que agir ex oficio seria um desrespeito ao princípio da adstrinção do juiz ao pedido da parte. Em seguida, ocorreria a instrução, momento em que as partes provarão com igualdade de armas no processo a veracidade de suas afirmações a o limite da responsabilidade de cada um.

Isso se coadunaria com o princípio da identidade física do juiz, que é aquele segundo o qual o magistrado que iniciou o processo deve concluí-lo, e com o da mediatidade, o qual reclama a presença do magistrado diante das provas e das partes, já que é importante que a percepção do julgador seja a mais próxima possível da verdade. Depois disso, o juiz prolataria a sua sentença, tendo ainda aquele que se achou prejudicado o direito de recorrer a novas instâncias. É bastante freqüente, e salutar, que se proceda desta forma na justiça comum.

Ao nos conceder uma entrevista, um juiz de uma vara cível desta cidade citou o caso em que ele deu um despacho saneador considerando como parte legítima para ser demandada os sócios administradores das pessoas jurídicas em questão, da qual tinha havido uma cisão contratual e a firma derivada se dizia totalmente desvinculada da primária. Em início a parte provava documentalmente que a cisão tinha acontecido após o contrato que deu origem ao dano, demonstrando a criação da nova personalidade jurídica com aproveitamento do patrimônio pessoa jurídica originária.

Depois, ela enumerou e pediu a citação das duas pessoas jurídicas, solicitando a desconsideração delas, pedindo para que os sócios-gerentes respondessem subsidiariamente devido a má administração. Como se comprovou a responsabilidade dos sócios na condução do ato que veio a causar o dano, isto é, a culpa ou a má fé, o magistrado acatou o pedido. Como se viu, tratava-se de um caso emblemático de desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, em que se respeitou todas as etapas e procedimentos do processo e se alcançou a justiça ao final.

Já pelo direito do consumidor, cujos procedimentos são disciplinados pela Lei 9.099/95, tendo em vista os princípios da oralidade, da simplicidade, da informalidade, da economia processual e da celeridade, ocorre muito normalmente uma dificuldade para se citar as empresas. Por isso é que, principalmente em sede do juizado especial cível, o próprio juízo tem tomado a iniciativa, com base no § 5º do art. 28 do CDC, de se desconsiderar a personalidade da pessoa jurídica. O procedimento adotado tem sido mais ou menos o seguinte: solicita-se ao demandante que no prazo de quinze ou trinta dias ele apresente a cópia do contrato social para que se possa saber quem são os sócios.

Daí, já sendo possível identificar o endereço dos sócios, o magistrado oficia para que eles sejam citados no seu endereço residencial. Admite-se que isso aconteça de ofício, pelo fato de se tratar de uma relação de consumo, e ser o Código de Defesa do Consumidor uma norma de ordem pública, de interesse social e de aplicação cogente. Todavia, para evitar danos irreparáveis aos sócios, melhor seria se tais juizes agissem com cautela e respeitassem aqueles princípios constitucionais básicos.

Vale citar os casos de empresas que abrem suas portas, como muito tem acontecido com as do ramo da informática, realizam inúmeras vendas de produtos e equipamentos e, depois, fecham as portas. Assim, a empresa não mais existe em endereço certo, e não se consegue mais chamá-las a responsabilidade para que possa integrar o polo passivo da lide. Este é um caso em que, através da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, os sócios tem sido convocados para responder pelos danos causados, especialmente no que diz respeito à manutenção de equipamentos.

Com relação ao direito tributário, há dois tipos de casos em que ocorre responsabilidade de terceiros: a responsabilidade solidária e a responsabilidade subsidiária. Na solidária, a fazenda Pública pode atingir tanto a empresa quanto o sucessor, ou o responsável tributário, indiscriminadamente, porque a solidariedade é presumida. Como no aval, o Poder Público escolhe a quem quer atingir. Já na subsidiária, ocorre a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica e atinge-se o patrimônio do sócio ou gerente, o que acontece muito na prática.

É o art. 135 do CTN que o disciplina ao rezar que São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos (…) III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas do direito privado. Embora o artigo não especifique que se trata de responsabilidade subsidiária, tanto a doutrina quanto a jurisprudência são concordes nisso. Como exemplo dos casos em que o sócio gerente tem responsabilidade, há o caso da falta de pagamento de tributos ou da falta de suporte material para suprir esse pagamento.

Em se tratando de direito ambiental, por meio da Lei 9.605/98 existe a possibilidade de se desconsiderar a pessoa jurídica com a finalidade de atingir o sócio, o que indica se tratar de uma lei bastante avançada. Vejamos o seu art. 4º: Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente. O art. 2º também serve para preservar os direitos do credor, ao prescrever que Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a este cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o direito, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário da pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la.

Quanto ao direito administrativo, fica descartada a possibilidade de uso da Teoria da Desconsideração da Personalidade. É que, diferentemente do processo administrativo, somente o poder judiciário, por meio do seu poder jurisdicional, tem competência para desconsiderar a personalidade de uma pessoa jurídica.

Assim, de um modo ou de outro, seja nos juizados especiais, nas Justiça Comum ou na Justiça do Trabalho, o instituto da Desconsideração da Personalidade da Pessoa Jurídica já tem sido consagrado. Pode-se comprovar isso tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência. Naturalmente, esse acontecimento não é aleatório, já que se trata na realidade de um instrumento cujo escopo é o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional.

Da mesma forma que a sociedade evolui, o direito e os instrumentos de que dispomos para fazer valer os nossos direitos também seguem essa tendência natural da evolução. O que importa, hoje em dia, é saber se tais mudanças estão em consonância com os princípios da celeridade, da economia, da concentração, da informalidade, embora alcançando também a efetividade ou a correta entrega da prestação jurisdicional. É o que sustentam os adeptos da Instrumentalidade do Processo, segundo os quais o processo deve atender aos anseios de justiça, de uma maneira equânime, rápida e simples.

Ao permitir que o credor ingresse na esfera patrimonial dos sócios da empresa, de forma a obrigar àquele que agiu de forma fraudulenta a honrar com os seus compromissos, o magistrado faz com que a justiça prevaleça no caso concreto. Assim, é um instrumento que conduz o processo à plena efetividade, pois garante a real entrega da prestação jurisdicional.

A importância de tal instrumento é por demais relevante, ainda mais em se sabendo que no Brasil existe a história do ‘ganha, mas não leva’, ou seja, a parte ganhou a questão, mas de nada adiantou pelo fato de a firma não possuir bens em seu nome, ao passo que em muitas das vezes os sócios são ricos. Com a desconsideração, se a empresa estiver insolvente o sócio ficará desprotegido. Tal procedimento fará com que o processo seja salvo, na sua fase executiva, realizando a justiça propriamente dita, pois é notório que a entrega da prestação jurisdicional nem sempre traduz o âmago de uma sentença.

 

Referências
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, vol. 2.
COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, vol. 1.
GAGLIANO Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, vol. 1.
KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
ROCHA, Antonio do Rego Monteiro. Código de defesa do consumidor: desconsideração da personalidade jurídica. Curitiba: Juruá, 1999.
RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, vol. 1.
SÉGUIN, Elida; CARRERA, Francisco. Lei dos crimes ambientais. Rio de Janeiro: Esplanada, 2002.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: parte geral. São Paulo: Atlas, 2001, vol. 1.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Talden Queiroz Farias

 

Advogado militante, especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco e em Gestão e Controle Ambiental pela Universidade Estadual de Pernambuco e mestrando em Direito Econômico pela Universidade Federal da Paraíba

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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