Sumário: 1. Introdução; 2. O art. 394 do CPP; 3. Disposições inconciliáveis; 4. Conclusão.
1. Introdução
A Lei n. 11.719/2008, que alterou diversos dispositivos do Código de Processo Penal, trouxe várias discussões a respeito da aplicação de suas regras; discussões evitáveis caso fosse o legislador melhor preparado e mais responsável com o manuseio da legislação penal.
É lamentável o que se tem feito com a “lei penal” desde 1990!
É sintomática a diferença de qualidade entre as mudanças que ocorrem no campo penal e aquelas extrapenais. Estas, ligadas e movidas por interesses privados, são sempre de melhor qualidade.
Dentre as várias discussões que estão em pauta, uma diz respeito ao alcance do § 4º do novo art. 394 do CPP; outra, de igual magnitude, trata do momento em que deverá ocorrer o recebimento da denúncia no procedimento comum, ordinário, e isso em razão do disposto nos arts. 396, caput, e 399, ambos do CPP, com a redação da Lei n. 11.719/2008, mas desse tema cuidaremos de forma detalhada em outro trabalho.
2. O art. 394 do CPP
Diz o § 4º do novo art. 394 do CPP, com a redação da Lei n. 11.719/2008: “As disposições dos arts. 395 a 398 deste Código aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados neste Código”.
De início cumpre anotar que o art. 398 foi revogado pela Lei n. 11.719/2008, não sendo possível sua aplicação, bem por isso, a qualquer procedimento. A referência, portanto, fica restrita aos arts. 395 a 397.
O art. 395 estabelece causas de rejeição liminar da denúncia ou queixa, quando nem era preciso, aplicáveis a qualquer procedimento, independentemente da existência de previsão expressa.
O art. 396 trata do recebimento da peça acusatória e citação do réu para resposta escrita.
O art. 396-A trata da resposta escrita, e o art. 397 prevê possibilidades de absolvição sumária, pressupondo, esta, denúncia efetivamente recebida, já que não é possível absolver alguém sem que exista processo formalmente instaurado, o que exclui admitir o recebimento efetivo da acusação somente por ocasião do art. 399 do CPP.
A interpretação isolada do § 4º do art. 394 tem proporcionado conclusões com as quais não concordamos, sustentando a extensão e aplicação das novas regras ao procedimento da Lei de Drogas, como se tem proclamado amiúde.
A questão, entretanto, merece análise mais ampla, envolvendo o art. 394 do CPP em toda sua extensão.
Com efeito, ao dizer que o procedimento será comum ou especial o art. 394, caput, do CPP, estabelece de forma clara a existência e independência dos gêneros: comum e especial, em matéria de procedimento.
O procedimento comum será ordinário, sumário ou sumaríssimo (§ 1º do art. 394).
Conforme dispõe o § 2º do art. 394 do CPP, “aplica-se a todos os processos o procedimento comum (ordinário, sumário ou sumaríssimo), salvo disposições em contrário deste Código ou de lei especial”.
O dispositivo é claro ao resguardar a integridade dos procedimentos especiais, que só sofrerão incidência das regras do procedimento comum quando não houver disposição em contrário.
O caráter subsidiário ou residual[1] das regras gerais também está ressaltado no § 5º do art. 394 do CPP, assim redigido: “Aplicam-se subsidiariamente aos procedimentos especial, sumário e sumaríssimo, as disposições do procedimento ordinário”.
O procedimento ordinário constitui subespécie do procedimento comum, e suas regras estão dispostas exatamente nos arts. 395 a 404 do CPP.
Ora, está claro que a conclusão expansiva e derrogadora de regras especiais que se tem tirado do disposto no § 4º do art. 394 do CPP não resiste à análise e não diz mais que o § 5º do mesmo artigo, que manda aplicar aquelas mesmas regras apenas de forma subsidiária, visto que os art. 395 a 397 estão compreendidos dentro do procedimento ordinário a que se refere.
Em outras palavras, o § 4º do art. 394 está a dizer que as regras a que se refere, todas contidas no procedimento ordinário, aplicam-se a todos os procedimento penais de primeiro grau, previstos ou não no Código de Processo Penal, e o § 5º do mesmo artigo assegura que estas mesmas regras somente serão aplicadas de forma subsidiária, até porque, como referido no § 2º, também do art. 394, as regras do procedimento comum serão aplicadas aos procedimentos especiais somente se não houver disposição em contrário.
Sabido é que o procedimento especial previsto nos arts. 55 a 58 da Lei de Drogas dispõe de forma contrária ao que está expresso nos art.s 396 a 397 do CPP e, diga-se de passagem, com melhor técnica.
Conforme o art. 55 da Lei de Drogas, oferecida a denúncia, o juiz ordenará a notificação do acusado para oferecer defesa prévia, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.
Na resposta, consistente em defesa preliminar e exceções, o acusado poderá argüir preliminares e invocar todas as razões de defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas que pretende produzir e, até o número de 5 (cinco), arrolar testemunhas (§ 1º do art. 55).
As exceções serão processadas em apartado, nos termos dos arts. 95 a 113 do Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 — Código de Processo Penal (§ 2º do art. 55).
Se a resposta não for apresentada no prazo, o juiz nomeará defensor para oferecê-la em 10 (dez) dias, concedendo-lhe vista dos autos no ato de nomeação (§ 3º do art. 55).
Apresentada a defesa, o juiz decidirá em 5 (cinco) dias (§ 4º do art. 55).
Se entender imprescindível, o juiz, no prazo máximo de 10 (dez) dias, determinará a apresentação do preso, realização de diligências, exames e perícias (§ 5º do art. 55).
Ao invés de receber a denúncia de plano (art. 396, caput, do CPP), caso não seja hipótese de rejeição, e desde logo mandar citar o réu para apresentar resposta escrita, no procedimento da Lei de Drogas o juiz, não sendo caso de rejeição liminar da peça acusatória, mandará notificar o denunciado para apresentação de resposta escrita, esta, portanto, precedente ao recebimento da denúncia, ao contrário do que ocorre no procedimento comum, ordinário.
No âmbito da Lei de Drogas, somente após a efetiva apresentação da resposta é que o juiz, não sendo caso de rejeição, avaliação mais uma vez pertinente após a resposta escrita, irá receber a acusação, designar audiência de instrução e julgamento, e seguir conforme o disposto nos arts. 56 a 58.
No procedimento comum, não tendo sido rejeitada de plano a acusação, desde logo a inicial será recebida e o réu passará a contar contra si com ação penal em curso, o que evidentemente é mais gravoso se comparado à sistemática da Lei de Drogas.
Dir-se-á que o art. 397 do CPP instituiu hipóteses de absolvição sumária, e que permitir ao juiz tal possibilidade é benefício que não se deve subtrair ao “acusado”, devendo se assegurar sua incidência em todo e qualquer procedimento, mas tal forma de pensar também não é suficiente para impor a aplicação de tal instituto ao procedimento regulado na Lei de Drogas nos moldes em que tipificado no Código de Processo Penal, não sendo demais salientar que estando presente qualquer das hipóteses reguladas no art. 397 do CPP, no âmbito da Lei de Drogas o juiz sequer receberá a denúncia, o que uma vez mais traduz considerável vantagem ao denunciado.
No procedimento especial da Lei de Drogas, as causas de rejeição da denúncia previstas no art. 395 do CPP serão aplicadas, como de resto já afirmamos, também a todo e qualquer procedimento, e não por força do disposto no § 4º do art. 394 do CPP. O recebimento da denúncia antes da resposta escrita, conforme o art. 396, caput, do CPP, colide com regra expressa do art. 55 da Lei de Drogas. O que é “citação” para resposta escrita no art. 396, caput, do CPP, no art. 55 da Lei de Drogas é “notificação” para resposta escrita, e os prazos são idênticos. O que é causa de absolvição sumária no art. 397 do CPP é causa de rejeição da peça acusatória no âmbito da Lei de Drogas, e, insista-se, não por força do disposto no § 4º do art. 394, mas sim porque o juiz jamais, em tempo algum, deve receber formalmente a acusação inicial e instaurar processo criminal quando verificar: I – a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; II – a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade; III – que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou, IV – extinta a punibilidade do agente.
Não é razoável pensar o contrário.
Não tem sentido lógico imaginar o recebimento de uma denúncia ou queixa quando manifestas; evidentes, as situações negativas indicadas no art. 397 do CPP.
Tais situações, até porque manifestas e evidentes, não dependerão, no mais das vezes, do conteúdo da resposta escrita para se explicitarem no processo, e então, pergunta-se: Se já no primeiro instante, por ocasião do art. 396 do CPP, o juiz verificar qualquer das causas previstas no art. 397, até porque, frise-se, são manifestas, evidentes, deverá desde logo absolver sumariamente o denunciado? Mesmo antes do recebimento da denúncia? Mesmo antes da citação do denunciado e a completa formação do processo a que alude o art. 363 do CPP?
A resposta a todas as indagações é a mesma: claro que não.
Deverá o juiz, em qualquer das hipóteses, rejeitar a peça acusatória.
E assim é que ocorre no procedimento especial da Lei de Drogas, sob todos os aspectos, mais benéfico ao denunciado, que antes mesmo de ter contra si instaurada a ação penal, com o efetivo e formal recebimento da acusação, terá rejeitada a peça inaugural, mantendo íntegro seu status dignitatis.
A Lei de Drogas, sobre os aspectos acima destacados, dispõe de forma contrária e com melhor técnica; de maneira mais benéfica ao denunciado, se confrontadas suas regras com aquelas dos arts. 396 e 397 do CPP.
O art. 48, caput, da Lei de Drogas, soma suas formas ao § 5º do art. 394 do CPP, de molde a acolher apenas subsidiariamente as regras do Código de Processo Penal, e bem assim aquelas pertinentes ao procedimento comum, ordinário, em que se inserem os arts. 395 a 397 do CPP, de aplicação inviável no âmbito da Lei n. 11.343/2006.
3. Disposições inconciliáveis
Parte valiosa da doutrina defende que o efetivo recebimento da denúncia, nos contornos do procedimento comum, ordinário, tratado no art. 396 e seguintes do CPP, deve ocorrer já por ocasião do art. 396, caput,[2] enquanto outra parte louvável entende que o vocábulo “recebê-la-á”, contido no artigo 396, caput, indica apenas a ausência de rejeição (art. 395) e não diz mais que um mero juízo preliminar de admissibilidade da denúncia ou queixa, sem representar efetivo recebimento da peça acusatória, que só ocorrerá após a apresentação da resposta escrita (art. 396-A), não sendo caso, ainda, de rejeição, ou de absolvição sumária (art. 397), isso por força do vocábulo “recebida”, contido no art. 399 do mesmo Codex.[3]
Como já esclarecemos anteriormente, segundo nosso entendimento o efetivo recebimento da peça acusatória deve ocorrer por ocasião do art. 396, caput, do CPP, para que em seguida possa ser completada a formação do processo com a citação do denunciado e regular triangulação, como manda o art. 363, e para que se possa falar verdadeiramente em absolvição sumária, a ensejo do art. 397.
A técnica jurídica está explícita. A lei fala em rejeição da denúncia ou queixa e absolvição sumária, tendo entre os dois extremos o recebimento e a citação. Rejeição, como é óbvio, antes do recebimento da inicial acusatória. Absolvição sumária, como também é reluzente, após a efetiva instauração da ação penal, pressupondo recebimento formal da acusação e citação; estando completa a formação do processo, como diz o art. 363 do CPP.
Adotados tais parâmetros, caso se pretendesse aplicar as regras dos arts. 396 a 397 do CPP ao procedimento da Lei de Drogas haveria manifesta incompatibilidade, face à impossibilidade de conciliação das regras comuns do Código de Ritos com as especiais dos arts. 55 e 56 da Lei de Drogas.
Note-se, por exemplo, que a denúncia passaria a ser recebida e o réu citado antes da resposta escrita, e o § 2º do art. 56 manda que o juiz, já no despacho que receber a denúncia, designe dia e hora para a audiência de instrução e julgamento, que deverá ser realizada dentro dos 30 (trinta) dias seguintes ao recebimento, salvo se determinada a realização de avaliação para atestar dependência de drogas, quando se realizará em 90 (noventa) dias.
Tentada a aplicação das regras do CPP com as regras da Lei de Drogas, como poderia o juiz designar audiência de instrução e julgamento, ordenar a notificação do acusado, de seu defensor (?), do Ministério Público, do assistente, se for o caso, e requisitar os laudos periciais, se ainda poderia impor absolvição sumária?
Determinaria o juiz a notificação das testemunhas arroladas pelo Ministério Público, quando ainda não haveria no processo o rol das testemunhas da defesa?
Como poderia, então, o juiz, realizar audiência dentro do prazo de 30 (trinta) dias, contados do recebimento da denúncia, se é sabido que os procedimentos visando à citação do réu para resposta escrita demandarão, na quase totalidade dos casos, tempo superior a 30 (trinta) dias?
Não haveria processo sem excesso de prazo!
Como pensar em designação de audiência para os próximos 90 (noventa) dias em razão da necessidade de avaliação para atestar dependência de drogas se ainda não teria sido apresentada resposta escrita e não se saberia ser caso ou não de exame de dependência!
É evidente que a solução não passaria por designar a realização de exame de dependência em todos os casos, indistintamente, e assim justificar audiência no prazo mais dilatado.
Note-se que no âmbito do art. 56 da Lei de Drogas, ao receber a denúncia o juiz já apreciou a resposta escrita e nela pode conter requerimento ou informações que determinem a realização do exame de dependência, ao passo que, na sistemática do art. 396 do CPP, a denúncia será recebida antes da resposta escrita, ocasião em que ainda não será possível, no mais das vezes, dispor de elementos que autorizem pensar na realização de exame de dependência.
Seria viável tal Frankstein jurídico?
Evidente que não.
4. Conclusão
Como se vê, o § 4º do art. 394 do CPP não pode ser interpretado isoladamente, mas sim em consideração com os demais dispositivos do mesmo artigo, levando em conta, ainda, o disposto no art. 48, caput, da Lei de Drogas, resultando claro que as regras gerais só têm aplicação de forma subsidiária, residual, ao procedimento da Lei n. 11.343/2006, que dispõe de forma contrária quando trata da notificação do denunciado para apresentação de resposta escrita; do recebimento da denúncia, citação do réu etc.
Não há dúvida, portanto, que o procedimento regulado nos arts. 55 a 58 da Lei n. 11.343/2006, atual Lei de Drogas, permanece íntegro, sem qualquer modificação decorrente do disposto nos arts. 396 a 397 do CPP[4], ao contrário do que algumas vezes se tem proclamado em razão do disposto no § 4º do art. 394 do mesmo Estatuto.
Como já advertia Cesare Beccaria[5] “uma boa legislação não é mais do que a arte de propiciar aos homens a maior soma de bem-estar possível e livrá-los de todos os pesares que se lhes possam causar, conforme o cálculo dos bens e dos males desta existência”.
E arrematava o ilustre jusfilósofo: “Desejais prevenir os crimes? Fazei leis simples e evidentes”.
“Em um povo forte e valoroso, a incerteza das leis é constrangida finalmente a substituir-se por uma legislação exata”[6].
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).
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