O âmbito de atuação do assistente de acusação: Fiscal do fiscal da lei?

Inicialmente, vejamos o que dispõem os artigos 268 e 271, ambos do Código de Processo Penal:

Art. 268. Em todos os termos da ação pública, poderá intervir, como assistente do Ministério Público, o ofendido ou seu representante legal, ou, na falta, qualquer das pessoas mencionadas no art. 31.

Art. 271. Ao assistente será permitido propor meios de prova, requerer perguntas às testemunhas, aditar o libelo e os articulados, participar do debate oral e arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público, ou por ele próprio, nos casos dos arts. 584, § 1º., e 598.

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Todavia, parte da doutrina e da jurisprudência, ao interpretar esses dispositivos, entende que a atuação do assistente nos processos criminais justifica-se tão somente em face do interesse por uma futura indenização.

Assim, o assistente teria uma participação reduzida no processo penal, limitando-se à prática dos atos tendentes a garantir sua reparação pelos danos sofridos.

Ipso facto, não poderia, por exemplo, interpor recurso para agravar a pena imposta ao acusado.

Neste sentido, aliás, é o entendimento de Fernando da Costa Tourinho Filho:

Qual a função do assistente? Entendemos que a razão de se permitir a ingerência do ofendido em todos os termos da ação penal pública, ao lado do Ministério Público, repousa na influência decisiva que a sentença penal exerce na sede civil.

Segundo dispõe o art. 91, I, do CP, é um dos efeitos da sentença penal condenatória tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime. Por isso mesmo dispõe o art. 63 do CPP que a sentença penal condenatória com trânsito em julgado constitui título certo e ilíquido em favor do direito à indenização.

Assim, ao que tudo indica, o Estado permitiu a ingerência do ofendido nos crimes de ação pública para velar pelo seu direito à indenização. Conclui-se, pois, que a função do assistente não é a de auxiliar a acusação, mas a de procurar defender seu interesse na indenização do dano ex delicto.[1]

Não parece retratar, data vênia, tal posicionamento, a melhor exegese do sistema processual.

Ora, da simples leitura do disposto no artigo 268 do CPP, acima transcrito, constata-se que o termo assistente, por si só, demonstra que o sujeito passivo pode atuar de forma ampla, eis que significa auxiliar, ajudar, etc.

Além do que, se a vítima é detentora de legitimidade para propositura da própria ação penal, qual seja, a privada subsidiária da pública (CPP, art. 29), por qual razão não poderia ter uma ampla atuação no processo, equiparada àquela que o próprio Ministério Público desenvolve?

Esta questão fora detalhadamente analisada por Fábio Ramazzini Bechara e, pela importância, pede-se vênia para transcrevê-la parcialmente:

Qual o interesse que move a vítima no processo penal? Essa questão tem por base a dúvida suscitada em torno da possibilidade de o assistente recorrer para agravar a pena do réu já condenado. Parte da doutrina e dos tribunais sustenta que a presença da vítima no processo penal se justifica única e tão-somente em razão do interesse por uma futura indenização, o que acaba por limitar suas ações na relação jurídica processual, não podendo, portanto, recorrer para agravar a pena imposta ao acusado.

Todavia, tal raciocínio apresenta-se incompleto e simplista. E por uma razão bem evidente. Na hipótese de a vítima promover a ação penal privada subsidiária da pública, que na essência é uma ação penal pública, a sua atuação é tão ampla quanto se o MP estivesse no pólo ativo da demanda. Ou seja, goza de ampla liberdade para recorrer e para produzir provas. Logo, não se pode afirmar que o interesse da vítima é de natureza meramente econômica, na medida em que faz as vezes do Estado-Administração, que num dado momento mostrou-se omisso dada a ausência de pronunciamento pelo MP no momento em que deveria fazê-lo. E no caso do assistente? Poderia sim apelar, uma vez que o recurso supletivo do assistente, tal qual a ação privada subsidiária, busca coibir e evitar as conseqüências maléficas provocadas pela omissão ou desídia do MP. Com efeito, qual seria a razão a justificar o tratamento diferenciado entre a vítima enquanto parte principal, na ação privada subsidiária, e a vítima enquanto assistente de acusação? Não há justificativa legalmente aceitável. A única restrição que se põe é que a atuação como assistente tem por finalidade complementar a atividade do MP na relação processual, ao passo que, enquanto titular da ação, a atuação mostra-se mais ampla. Tanto é verdade que se o MP atuar eficazmente, o assistente se posicionará na condição de mero coadjuvante.[2]

No mesmo sentido os Professores Júlio Fabrini Mirabete, invocando Marcelo Fortes Barbosa, e Vicente Greco Filho:

Barbosa: “A assistência de acusação, em nosso Direito Processual Penal não é um mero correlativo direito do direito à reparação do dano, eis que o ofendido intervém para reforçar a acusação pública, figurando em posição secundária o interesse mediato na reparação do dano causado pelo delito”. Mirabete: “É o que deixa entrever a escolha do termo “assistente” pela lei nos artigos 268 e ss. Do CPP. Sua função é auxiliar, ajudar, assistir o Ministério Público a acusar e, secundariamente garantir seus interesses reflexos quanto à indenização civil dos danos causados pelo crime.[3] (grifei)

Vicente Greco Filho: O assistente é o ofendido, seu representante legal ou seu sucessor, auxiliar da acusação pública. O fundamento da possibilidade de sua intervenção é o seu interesse na reparação civil, mas o assistente atua, também, em colaboração com a acusação pública no sentido da aplicação da lei penal.[4] (grifo nosso)

Ademais, não se pode negar que a vítima, além de pretender um ressarcimento pelo dano sofrido, tem, também, o justo interesse de ver efetivamente punido aquele que lhe ofendeu com a prática da conduta delituosa, o que o autoriza, na ação penal, um desempenho colaborativo com a acusação pública, podendo, inclusive, suprir eventuais omissões, a exemplo do que ocorre quando da propositura da ação penal privada subsidiária da pública.

A esse respeito, vale trazer ao proscênio a opinião de Eduardo Espínola Filho:

Ao mesmo tempo que atinge, na sua pessoa ou nos seus bens, um ou mais indivíduos, que se apresentam, assim, como ofendido ou ofendidos, o crime causa um dano social, e, apenas em homenagem à predominância do interesse social sobre o particular, é estabelecida a preferência de iniciativa do órgão público, para instauração da ação penal, somente sendo lícito à parte privada apresentar a sua queixa, se, no prazo legal, o Ministério Público deixou de manifestar-se sobre o inquérito, a representação ou a peça de informações – salvo, naturalmente, os casos em que a ação penal toma corpo, exclusivamente, com a queixa do ofendido, do seu representante legal ou de quem o substitua.

Mas, seja qual for o interesse público e social, que haja, de apurar o delito e punir o ou os autores, persiste sempre o grande e muito ponderável interesse particular na apuração do fato e na punição dos responsáveis.

Eis porque, embora movimentada, normalmente, pelo Ministério Público, a ação penal, com o oferecimento da denúncia, é permitido à parte privada tomar uma posição acusatória auxiliar; que o Código de Processo Penal encara como assistência ao Ministério Público, na ação criminal por este promovida. [5] (grifei)

Também merece transcrição, as opiniões de Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho e Antônio Scarance Fernandes: O assistente também intervem no processo com a finalidade de cooperar com a justiça, figurando como assistente do MP “ad coadjuvantum”. Assim, com relação à condenação, o ofendido tem o mesmo interesse-utilidade da parte principal na justa aplicação da pena.[6]

Frise-se, ainda, que a assertiva de que a intervenção deve ser correspondente àquela desenvolvida pelo Ministério Público, decorre, também, da interpretação teleológica ou sociológica que se deve aplicar aos dispositivos legais pertinentes (CPP, artigos 268 e 271), à vista de que aquele que imediatamente sofrera as conseqüências do ato ilícito, visando, não só futura indenização, como também, uma justa aplicação da lei em desfavor do autor do crime, aprimora, em última análise, a ação estatal em benefício do atendimento ao interesse público.

Veja-se os esclarecimentos de Maria Helena Diniz a respeito, citando Ihering e Ferrara:

…E a sociológica ou teleológica objetiva, como que Ihering, adaptar o sentido ou finalidade da norma às novas exigências sociais, adaptação esta prevista pelo art. 5º da Lei de Introdução do Código Civil, que assim reza: “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Os fins sociais e o bem comum, portanto, sínteses éticas da vida em comunidade, por pressuporem uma unidade de objetivos do comportamento humano social. Os fins sociais são do direito; logo, é preciso encontrar no preceito normativo o seu telos (fim). O bem comum postula uma exigência, que se faz à própria sociabilidade; portanto, não é um fim do direito, mas da vida social….A interpretação, como nos diz Ferrara, não é pura arte dialética, não se desenvolve como método geométrico num círculo de abstrações, mas perscruta as necessidades práticas da vida e a realidade social.[7]

Por isso mesmo, e até porque se trata de norma garantidora de direitos do ofendido, impõe-se que também seja aplicada ao artigo 271 do Código de Processo Penal, a interpretação extensiva ou progressiva, para se considerar o rol de medidas à disposição do assistente ali constantes, apenas exemplificativa e não taxativa.

Sobre a aludida interpretação no processo penal, as lições do Professor Mirabete:

A interpretação extensiva, referida expressamente pelo art. 3º do CPP, ocorre quando é necessário ampliar o sentido ou alcance da lei… Fala-se, ainda, em interpretação progressiva para se abarcarem no processo novas concepções ditadas pelas transformações sociais, científicas, jurídicas ou morais que devem permear a lei processual estabelecida.[8]

Ao lecionar acerca da interpretação das normas, Maria Helena Diniz adverte:

A interpretação é uma, não se fraciona; é, tão-somente, exercida por vários processos que conduzem a um resultado final: a descoberta do alcance e sentido da disposição normativa. Há hipóteses em que o jurista ou o juiz devem lançar mão da interpretação extensiva para complementar uma norma, ao admitir que ela abrange certos fatos-tipos implicitamente. Essa interpretação ultrapassa o núcleo do sentido norma, avançando até o sentido literal possível desta, concluindo que o alcance da lei é mais amplo do que indicam seus termos.[9]

A propósito, como afirmam os Professores Sérgio Demoro Hamilton e Christiano Fragoso, respectivamente, a vítima, no processo penal, funciona, na verdade, como fator de controle externo do Ministério Público:

Salutar a presença do particular no processo penal, quer atuando como legitimado extraordinário para agir, quer como simples assistente de acusação.Vislumbro na presença do particular, naqueles casos, uma eficiente forma de controle externo do Ministério Público. (grifo nosso)[10]

É altamente democrática a participação da vítima no processo criminal, constituindo fator de transparência para a Justiça e de controle da atividade ministerial, devendo ser mantida. A admissão de terceiros no processo constitui um dos mais eficazes modos de garantir o acesso à justiça. (M. Cappelletti/B.Garth). (grifei)[11]

 Conclusão

Essa linha evolutiva permite, pois, inferir não só que ao assistente de acusação é permitida uma ampla atuação no processo criminal, como também que tal atuação é, em última análise, a de fiscal do fiscal da lei.
Bibliografia
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. v.1 (arts. 1º a 393). 5ª ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 498.
BECHARA, Fábio Ramazzini. Da Assistência no Processo Penal. São Paulo, 2002. Disponível em: http://www.damasio.com.br/novo/html/frame_artigos.htm – Acessado em 24.10.2004.
MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 348 – 71.
GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 223.
ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. Comentários aos arts. 185-372. v. III. 5ª ed. Rio de Janeiro, 1976, p. 269. Disponível em: www.tre-sc.gov.br/sj/cjd – Citado por Pedro Roberto no Texto: A assistência no processo penal eleitoral. Acessado em 10.11.2004.
DINIZ, Maria Helena, Direito Civil Brasileiro. v. 1º, 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 65-66.
FRAGOSO, Christiano F. Assistente: a condição de vitima como limite à sua atividade. Publicado em Boletim do IBCCrim nº 117, 2002. Disponível em: http://www.fragoso.com.br/cgi-bin/artigos/arquivo54.pdf – Acessado em 31.10.2004.
HAMILTON, Sérgio Demoro. A Queixa Subsidiária – Questões Controversas. Disponível em: www.humbertodalla.pro.br/colaboradores/artigo_36.htm – Acessado em: 18.04.2005.
Notas:
[1] TOURINHO FILHO, 1999.
[2] BECHARA, 2002.
[3] MIRABETE, 2000.
[4] GRECO FILHO, 1993.
[5] ESPINOLA FILHO, 1976.
[6] Recursos no Processo Penal, 1998.
[7] DINIZ, 2002.
[8] MIRABETE, 2000.
[9] DINIZ, 2002.
[10] HAMILTON, 2005.
[11] FRAGOSO, 2002.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Antônio José dos Reis Júnior

 

Procurador do Estado de Rondônia, Pós-Graduando em Direito Constitucional pela Avec – Associação Vilhenense de Educação e Cultura

 


 

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Equipe Âmbito Jurídico

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