Sumário: 1. Introdução – 2. Os regimes de bens e as uniões familiares; 2.1 – O princípio da liberdade nas relações de família – 3. O regime da separação obrigatória fundado no artigo 1.641, II do CC e a Súmula 377 do STF – 4. Conclusão – 5. Bibliografia.
1. Introdução.
A noção de núcleo familiar veio sendo alterada ao longo dos tempos, não ficando o atual texto de Código Civil alheio a tais modificações, trazendo em seu bojo grandes reflexos de tal mutação: o Direito das Famílias é responsável por grandes e consideráveis mudanças no que diz respeito ao seu tratamento legal.
Mas, em decorrência um longo e moroso processo para que o Código Civil pudesse iniciar sua vigência, este já “nasceu velho” em alguns pontos, uma vez que inúmeras questões não foram tratadas ou, até mesmo, não mereceram a devida atenção a fim de que divergências anteriormente existentes fossem sanadas.
Pontos que outrora eram controversos, poderiam ser analisados com mais atenção para evitar que vivêssemos um momento de rediscussão de questões que ignoraram a evolução das relações familiares, dentre os quais o tema que aqui nos propusemos a analisar: ainda há que se falar em aplicação da súmula 377 do STF? Está ela em plena aplicação ou já se encontra suprimida?
Buscaremos trazer conceitos doutrinários e jurisprudenciais sobre tal indagação para, ao final, expor nosso entendimento, na tentativa de contribuir com uma visão que esteja, ao nosso ver, mais condizente com o contemporâneo Direito das Famílias.
2. Os regimes de bens e as uniões familiares.
O Direito das Famílias possui, em seu título II, tratativa legal no que diz respeito ao chamado direito patrimonial, o qual traça regras sobre as relações de ordem econômica da família, versando sobre os bens que servirão como regramento dos bens do casal.
Pontes de Miranda[1] conceitua os regimes de bens como “o conjunto de regras, mais ou menos orgânico, que estabelece para certos bens, ou para os bens subjetivamente caracterizados, sistema de destinação e de efeitos.”.
Para René Ramos Pazos[2], “se define o regime matrimonial como o estatuto jurídico que regula as relações pecuniárias dos cônjuges entre si e em respeito a terceiros”.
Os regimes de bens não se limitam apenas ao casamento, sendo também aplicados aos que optam pela união estável, uma vez que nossa Constituição Federal consagra o princípio da pluralidade de entidades familiares e iguala a proteção das relações de cunho patrimonial dentro do Direito das Famílias.
De certo que tanto o casamento quanto a união estável fazem gerar diversos efeitos de ordem econômica que refletem, sem dúvida, sobre pontos importantes, dentre os quais: sustento e educação da prole; custos ordinários (contas diversas); aquisição de novos bens; etc.
Deve, portanto, o regime de bens que será adotado pelo casal prever todas, ou o máximo possível, de questões sobre o acervo patrimonial que será levado por cada um dos nubentes ou companheiros, fazendo-se constar aqueles que são adquiridos no curso da sociedade familiar.
Algumas alternativas são colocadas aos casais para que, em comum acordo, estes optem pelo regime que melhor atendam suas necessidades ou interesses, podendo, ainda, formalizar pacto antenupcial (anterior ao casamento) ou contrato de convivência (anterior à união estável).
O Código Civil elenca os seguintes regimes de bens em seu texto: a) regime da comunhão parcial; b) regime da comunhão universal; c) regime da participação final dos aquestos e; d) regime da separação de bens.
O regime da separação de bens é visto sob dois prismas: a) convencional, que será aplicado às relações patrimoniais do casal toda vez que, por manifestação espontânea de vontade e boa-fé[3], optarem por este, entendendo que suas necessidades comuns foram atendidas e; b) obrigatório sempre que uma das situações previstas nos incisos I, II e III do artigo 1.641 do Código Civil estiver configurada.
Excetuadas as causa que ensejam a imposição do regime de separação, percebe-se que “o regime de bens tem por fito regulamentar as relações patrimoniais entre os cônjuges, nomeadamente quanto ao domínio e a administração de ambos ou de cada um sobre os bens trazidos ao casamento e os adquiridos durante a união conjugal.”.[4]
2.1 – O princípio da liberdade nas relações de família.
Elemento máximo do direito privado, a liberdade permeia todo o ordenamento civil brasileiro, possibilitando a todos manifestar sua vontade quando esta for necessária para a obtenção de efeitos jurídicos que estejam previstos em nosso mundo jurídico.
Pela lição de Alberto Trabucchi[5], “a vontade, elemento dinâmico por excelência do mundo jurídico, é de tal essencialidade que da vida ao negócio.”.
Com tal elemento, o sujeito manifesta sua intenção de forma consciente e qualificada, objetivando atingir efeitos jurídicos que lhe faça adquirir, modificar ou extinguir direitos, refletindo uma liberdade, garantida pelo denominado princípio da autonomia da vontade.
Taisa Maria Macena de Lima[6] expõe que “em nome do princípio da autonomia da vontade, opera-se a resistência do indivíduo à intromissão do Estado no espaço que deve ser só seu, na legítima tentativa de ser feliz.”.[7]
Não podemos esquecer que, mesmo recebendo influências diretas da Constituição Federal, o Direito das Famílias não perdeu a característica de ser parte integrante do direito privado, uma vez que há em nosso ordenamento o princípio da liberdade nas relações de família.
Como diz Paulo Lôbo[8], “o princípio da liberdade diz respeito ao livre poder de escolha ou autonomia de constituição, realização e extinção de entidade familiar, sem imposição ou restrições externas de parentes, da sociedade ou do legislador; à livre aquisição e administração do patrimônio familiar; ao livre planejamento familiar; à livre definição dos modelos educacionais, dos valores culturais e religiosos; à livre formação dos filhos, desde que respeitadas suas dignidades como pessoas humanas; à liberdade de agir, assentada no respeito à integridade física, mental e moral.”
O Direito das Famílias, ao receber a proteção da liberdade para suas relações, assim o teve uma vez que, de acordo com Rolf Madaleno[9], “de liberdade necessita o homem para poder desenvolver todas as suas potencialidades, fazendo ou deixando de fazer alguma coisa por vontade própria, quando não o for em virtude de lei.”
A autonomia da vontade, sob a ótica de Flávio Tartuce[10], “não existe apenas em sede contratual ou obrigacional, mas também em sede familiar. Quando escolhemos, na escalada do afeto, com quem ficar, com quem namorar, com quem ter uma união estável ou com quem casar, estamos falando em autonomia privada, obviamente.”
3. O regime da separação obrigatória fundado no artigo 1.641, II do CC e a Súmula 377 do STF.
Estabelece o artigo 1.641, II do Código Civil, com nova redação dada pela Lei n.º 12.344, de 09 de dezembro de 2010:
“Art. 1.641: É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:(…);
II – da pessoa maior de setenta anos;(…).”
O Supremo Tribunal Federal, diante da possibilidade de alguns que estivessem munidos de má-fé, agindo dolosamente para enriquecer-se ilícita e desproporcionalmente, editou a Súmula 377, enunciando que:
“No regime da separação legal de bens comunicam-se aos adquiridos na constância do casamento.”
Ao editar a referida Súmula, o STF tornou o regime da separação obrigatória verdadeira letra morta do então Código Civil, uma vez que seria necessária a igualitária divisão dos bens que fossem adquiridos, a título oneroso, durante a sociedade familiar.
Com o início da vigência do atual texto de Código Civil, novamente a doutrina se volta à seguinte indagação: estaria ou não vigente a Súmula 377 do STF?
Rolf Madaleno[11] defende a idéia de vigência da referida Súmula, “especialmente porque sempre foi escopo do enunciado evitar o enriquecimento sem causa ao reconhecer o direito à divisão dos bens auridos pela conjugação de esforços na affectio societatis.”
Paulo Lôbo[12], tratando do tema em voga diz, mesmo se apenas um dos nubentes estiver com mais de 60 anos, obrigatório será o regime da separação de bens. Expõe ainda que “essa hipótese é atentatória do princípio constitucional da pessoa humana, por reduzir sua autonomia como pessoa e constrangê-lo a tutela reducionista, além de estabelecer restrição à liberdade de contrair matrimônio, que a Constituição não faz. Conseqüentemente, é inconstitucional esse ônus.”.
Já para Francisco José Cahali[13], “ao deixar o novo Código de reproduzir a nefasta disposição que se continha no art. 259 do Código revogado, a Súmula 377 do STF, originada na interpretação daquela previsão, deixará de ter aplicação. (…). Esse entendimento funda-se no fato de que a inclusão ou exclusão de bens na comunhão representa tipicamente efeito próprio de determinado regime patrimonial, no caso, de separação obrigatória.”.
De certo que a questão suscita divergências e enfoques doutrinários que os justifiquem. Todavia, um ponto importante não pode passar em branco: a violação de princípios tratados nos artigos 1º, III (da dignidade da pessoa humana), 3º, I (da solidariedade – haja vista a República brasileira objetivar a construção de uma sociedade justa, livre de preconceitos e solidária) e 5º, I e X, todos da Constituição Federal.
A jurisprudência vem se manifestando da seguinte forma:
“SEPARAÇAO LITIGIOSA. PARTILHA E ALIMENTOS. REGIME DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS. SÚMULA Nº 377 DO STF. PARTILHA DOS BENS ADQUIRIDOS NA CONSTÂNCIA DO CASAMENTO. Recurso do marido, provido em parte, tão somente para reduzir os alimentos devidos ao filho comum.” (TJSP; AC 584.519.4/3; Ac. 3327460; São José do Rio Preto; Quarta Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Teixeira Leite; Julg. 16/10/2008; DJESP 04/02/2009);
“CASAMENTO. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA. SÚMULA Nº 377, DO STF. PRECEDENTES DO STJ. Recurso provido para admitir a comunhão de aqüestos, mesmo em regime de separação obrigatória, pelo simples fato de terem sido adquiridos na constância do casamento, não importando que hajam resultado ou não do esforço comum”. (TJSP; APL-Rev 176.318.4/6; Ac. 3362670; São Paulo; Décima Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Octavio Helena; Julg. 04/11/2008; DJESP 12/01/2009);
“ANULAÇÃO DE DOAÇÃO. PRELIMINARES. REJEIÇÃO. CASAMENTO REALIZADO PELO REGIME DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA. CÔNJUGE SEXAGENÁRIO. VALIDADE DA DOAÇÃO FEITA À ESPOSA DESDE QUE OBSERVADA A LEGÍTIMA. PRINCÍPIO DA LIVRE DISPOSIÇÃO DOS BENS. Alargar o sentido da norma prevista no artigo 1641, II do CC para proibir o sexagenário, maior e capaz, de dispor de seu patrimônio da maneira que melhor lhe aprouver, é um atentado contra a sua liberdade individual. A aplicação da proibição do cônjuge, já de tenra idade, fazer doação ao seu consorte jovem, deve ser aplicada com rigor naquelas hipóteses onde se evidencia no caso concreto que o nubente mais velho já não dispõe de condições para contrair matrimônio, deixando claro que este casamento tem o único objetivo de obtenção de vantagem material”. (TJMG; AC 1.0491.04.911594-3/001; Pedralva; Primeira Câmara Cível; Relª Desª Vanessa Verdolim Hudson Andrade; Julg. 29/03/2005; DJMG 29/04/2005).
Parece-nos que a Súmula 377 do STF num ponto age com justiça e, noutro, com grande injustiça: a) no primeiro, faz justiça ao determinar a comunhão dos bens adquiridos no curso da união familiar, determinando sua partilha, evitando-se, assim, o enriquecimento indevido e; b) no segundo, comete injustiça ao considerar (implicitamente) que pessoa maior de 70 anos (considerado absolutamente capaz para a prática de diversos atos da vida civil) é incapaz de escolher livremente um dos regimes patrimoniais que julgue melhor atender suas expectativas.
4. Conclusão.
Face ao que expusemos ao longo deste estudo, chegamos à conclusão de que, manter a obrigatoriedade do regime de separação de bens para pessoas maiores de 70 anos, é uma grande violação de princípios constitucionais.
Se é com base no princípio da liberdade que impedimos que o Estado venha a interferir nas relações de cunho privado, entendemos que cabe ao ser humano decidir seu futuro com responsabilidade e equilíbrio, agindo com boa-fé e sempre visando seu engrandecimento pessoal e familiar.
Conforme leciona Cristiano Chaves de Farias[14], “em épocas remotas em que o casamento assumia uma feição nitidamente patrimonialista, compreendia-se a dissolução da sociedade sem quebrar o vínculo existente entre os cônjuges, uma vez que o escopo da tutela jurídica era assegurar a incolumidade do patrimônio.”.
Ora, se estamos hoje vivenciando momento completamente adverso daquele em que a família era vista como patrimonialista, porque insistir com tal obrigatoriedade?
Manter uma limitação no que tange a liberdade patrimonial do maior de 70 anos impedindo-lhe livre escolha de regime de bens, é uma verdadeira infelicidade, pois é como se o Estado estivesse desrespeitando o princípio da liberdade (ou da não-intervenção) impondo que o regime da separação obrigatória é o melhor para fortalecer a família que será formada.
A Constituição Federal veda qualquer tipo de discriminação, seja por cor, credo, raça, opção sexual ou idade.
Nosso hodierno Direito Civil é composto de cláusulas abertas (ou vetores de interpretação), que possibilitam ao aplicador e intérprete do Direito Privado ir além do previsto na lei, devendo atentar-se em cumprir suas verdadeiras finalidades, com base em princípios como os da boa-fé, eticidade e função social.
Se o contexto familiar se funda em dignidade da pessoa humana, solidariedade, respeito de seus entes para estabelecerem e desfrutarem de uma vida em comunhão, não seria um retrocesso praticado pelo legislador continuar com a obrigatoriedade do regime de separação de bens nos casos do artigo 1.641, II do Código Civil, ignorando todo o processo de repersonalização do Direito de Família? Para nós a resposta é afirmativa.
Advogado no ES; Mestre e Doutorando em Direito Civil pela PUC/SP; Professor de Direito Civil da Univix – Faculdade Brasileira – Vitória (ES); Professor do Curso de Pós-Graduação em Direito Civil do JusPODIVM – Salvador (BA); Professor de Cursos de Pós-Graduação em Direito Civil (Famílias e Sucessões) em Natal/RN e Aracajú/SE; Membro do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família; Diretor do Conselho Científico da Diretoria do IBDFAM/ES.
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