Resumo: Este artigo analisa o contrato de seguro na perspectiva do Direito das Relações de Consumo. Partindo da dicotomia seguro social e seguro privado, adentra na dogmática jurídica civil do instituto e na nova vertente principiológica que a norteia, culminando na defesa do segurado no âmbito do Código de Defesa do Consumidor.
Palavras-chave: Seguro; Contrato de seguro; Função social do contrato de seguro; Direito civil; Direito do consumidor.
Abstract: This article analyses the insurance contract in light of Consumer Law, by examining the dichotomy between State social security and private insurance. The division is considered within the private law context and its new guiding principles from the new Civil Code. The article concludes with an analysis of the contract for insurance in the context of the Consumer Defence Code.
Keywords: Insurance; contract for insurance; social role of the contract for insurance; civil law; consumer law.
Sumário: 1. O instituto do seguro. Seguro social e seguro privado. 2. O contrato de seguro. 3. Função social do contrato de seguro. 3.1. A dogmática da função social e sua evolução histórica. A inserção da função social como princípio na órbita contratual. 3.2. A nova dimensão que se impõe: justiça contratual. 4. O segurado como titular de interesse ou direito metaindividual. 5. O contrato de seguro no âmbito do Código de Defesa do Consumidor. Bibliografia.
1. O instituto do seguro. Seguro social e seguro privado
A intensificação das relações inter-humanas em seus aspectos políticos, econômicos e sociais, que acompanhou a sociedade de consumo, logo fez notar profundas alterações no comportamento e nas condições que se estabelecem na vida cotidiana nos dias presentes, a exigir mecanismos eficazes de proteção à pessoa humana em suas contingências e em seu patrimônio.
Houve um aumento significativo dos riscos, decorrentes da industrialização, dos transportes, das atividades laborais, da degradação causada ao meio ambiente etc., que afetam indistintamente todas as classes sociais. J. J. Calmon de Passos[1] afirma, com muita precisão, que “o risco se fez integrante do próprio modo de ser da sociedade contemporânea”.
E com ele aumenta a probabilidade da ocorrência de danos, a que se tenta minorar os efeitos, conquanto na grande maioria dos casos seja impossível evitá-los. Evidencia-se, pois, a necessidade de segurança nas relações jurídico-sociais, o que se dá pela busca cada vez maior de uma cobertura para os fatos futuros contra os quais as pessoas demonstram ser impotentes e, com isso, em razão de que desejam a todo custo resguardar-se.
Gustavo Raúl Meilij[2] lembra que “esta situación, que no es novedosa y se hunde en los límites de la historia, hizo que el hombre ensayara en todo momento diversos métodos que le permitieran hacer frente a las contingencias dañosas…”.
Neste contexto, a idéia do seguro é posta como “uma espécie de rede jurídico-econômica que nos protege contra os riscos a que estamos expostos”[3], resultado da evolução que experimentou o pensamento econômico que “permitió la adopción de un mecanismo más adecuado, por el cual, mediante el aporte de una suma relativamente reducida, el sujeto potencial del daño obtenía de otra persona el derecho a ser indemnizado por el que pudiere ser el resultado del acaecimiento de un siniestro”[4].
Com efeito, o instituto do seguro, enquanto meio capaz de oferecer a segurança enunciada, revigora-se hodiernamente e não apenas no sentido exclusivamente individual como antes concebido. A par do contrato que se estabelece entre as partes no campo do Direito Privado, o seguro público progressivamente passa a ocupar lugar de destaque nas preocupações dos governos.
Assim, o seguro passou a ser classificado em dois grupos: seguro público e seguro privado. O primeiro, destinado “à proteção das classes trabalhadoras, sendo sua característica básica a obrigatoriedade”[5]; é operado pelo Estado. O segundo, operacionalizado “por empresas privadas de seguro”[6]; pode ou não ser obrigatório, e ter, ainda, caráter social.
Por outro lado, o Estado assume o papel de ordenador da seguridade ou segurança social (seguridad social, securité sociale, sicurezza sociale, social security), amparada no mutualismo[7] e expressão dos direitos de cooperação, conceitos estes também inerentes aos seguros privados.
Isto porque, inexiste, a rigor, materialmente, distinção na configuração das formas de seguro encontráveis no Direito. O seguro público e o seguro privado identificam-se no tocante à natureza jurídica, distinguindo-se primordialmente em razão do “‘sistema de gestão’ a que eles se acham submetidos”[8].
Vale ressaltar que o mutualismo consiste na “reunião de um grupo de pessoas, com interesses seguráveis comuns, que concorrem para formação de uma massa econômica, com a finalidade de suprir, em determinado momento, necessidades eventuais de algumas daquelas pessoas”[9].
No tocante aos direitos cooperativos, temos que sobre os mesmos se estruturam os direitos “de natureza comunitária, como os seguros”[10], apartados substancialmente dos direitos subjetivos, estando muito mais afetos aos direitos potestativos[11]; Todavia, observando a lição de Karl Larenz apud Ovídio A. Baptista da Silva[12] também “distinguem-se destes pelo fato de não serem direitos apenas no interesse próprio, mas ‘direitos orgânicos’, na medida em que possibilitam, não a formação exclusiva de uma relação jurídica para o titular, porém sua cooperação para a formação de uma vontade coletiva. Eles estão sujeitos a limitações derivadas do dever de fidelidade do associado perante os demais, bem como perante à associação ou corporação”.
Destarte, no entendimento do citado autor alemão, ainda de acordo com Ovídio A. Baptista da Silva[13], os “direitos de participação ou direitos à colaboração” consubstanciam-se em “faculdades[14] dependentes”, ligadas ao status de participante de uma determinada coletividade juridicamente protegida.
O seguro desta forma configurado justifica plenamente sua inserção no campo das preocupações do Poder Público, seja assumindo seu gerenciamento (como no caso do seguro público), seja pela intervenção estatal e pelo dirigismo contratual (em se tratando do seguro privado), fatores que o colocam como instituto pertencente à seara do chamado Direito Social[15].
Nestes termos, o seguro está destinado a exercer a imprescindível tarefa de socialização dos riscos, dos danos e do dever de indenizar. Sua operabilidade depende de profissionais especializados, conhecedores das vicissitudes e peculiaridades de sua gestão e na atuação neste setor econômico e jurídico.
Cumpre lembrar, por oportuno, que o trabalho em tela tem por escopo a análise do seguro privado, notadamente do contrato que o rege e a problemática que encerra sua alocação na dinâmica das relações de consumo e do ramo jurídico que as envolve, o Direito do Consumidor.
2. O contrato de seguro
Para Caio Mário da Silva Pereira[16] o seguro “é o contrato por via do qual uma das partes (segurador) se obriga para com a outra (segurado), mediante o recebimento de um prêmio, a indenizá-la, ou a terceiros, de prejuízos resultantes de riscos futuros, previstos” (CC/16, art. 1.432; CC/02, art. 757).
Evidenciam-se, pois, as partes que o integram: segurador e segurado. Àquele, “compete pagar a quantia estipulada para a hipótese de ocorrer o risco previsto no contrato”[17]; a este, “assiste o direito de recebê-la, se cumprida a sua obrigação de pagar a contribuição prometida, que se denomina prêmio”[18].
Afora as partes, o contrato de seguro tem ainda como elementos o interesse segurável (objeto do contrato de seguro)[19], o risco[20] (“resultante de um evento futuro, possível e incerto”[21]), o prêmio (prestação devida pelo segurado ao segurador, em virtude da assunção dos riscos por parte deste) e a apólice (que consiste “no instrumento do contrato de seguro”[22]).
Não se pode descurar em mencionar, embora não constituam elementos do contrato em análise, o dano, o sinistro e o beneficiário, eis que indispensáveis à melhor compreensão do mesmo. O dano é o prejuízo, pessoal (físico, psíquico ou moral) ou material (patrimonial), decorrente de deterioração sofrida pela pessoa em relação a si ou a seus bens. O sinistro, por sua vez, é a ocorrência do evento a produzir determinado dano. Beneficiário “é quem efetivamente receberá da seguradora a importância relativa ao prejuízo; tanto pode ser beneficiário o próprio segurado como uma terceira pessoa, dependendo sua indicação de cláusula contratual”[23].
O contrato de seguro possui requisitos subjetivos, objetivos e formais.
Os subjetivos referem-se às partes contratantes. Somente pode ser segurador a pessoa jurídica. Por ser “atividade empresária”[24], a atuação no campo dos seguros está “reservada às sociedades anônimas, à sociedades mútuas e às cooperativas”[25]; a estas últimas sendo facultado operar apenas no caso de seguros agrícolas e de acidentes do trabalho. Destaca-se, ainda, que têm “capacidade de segurador as instituições de previdência social, relativamente aos seus associados ou à categoria laboral nelas compreendidas”[26], e o Estado, no que concerne ao seguro público relacionado à Previdência Social. A legislação impõe também, a título de requisitos, uma série de exigências de observância peremptória quanto à formação, composição e condições para funcionamento dessas instituições, bem como quanto a seus sócios. Para a posição de segurado é requerida, basicamente, a capacidade civil, devendo-se averiguar disposições legais que geram peculiaridades em torno do mesmo, sobretudo no tocante à obrigatoriedade de contratar seguro.
Os requisitos objetivos estão vinculados ao objeto. Como salientado anteriormente, o contrato de seguro tem como objeto o interesse segurável, respaldado no risco de que se visa proteger. Caio Mário da Silva Pereira[27] adverte que não obstante “nos seguros privados tenham as partes a faculdade de escolher a espécie ou a combinação de espécies a seu aprazimento, exigências legais são impostas, que não podem ser derrogadas pelos pacta privata”. Outro aspecto de destaque no tocante ao objeto do contrato de seguro diz respeito à verificação de sua licitude, haja vista que esta espécie contratual, a par da exigência normativa de que a validade dos negócios jurídicos em geral requer objeto lícito (CC/16, art. 82; CC/02, art. 104), comporta “ilícitos especiais”[28]. A ilicitude eiva de nulidade toda forma de manifestação negocial e, não diferentemente, o fenômeno se repete no contrato de seguro.
Por requisitos formais entende a maior parte da doutrina a exigência de que o contrato de seguro seja celebrado por escrito – o que, na verdade, revela uma imprecisão terminológica, a considerar que todo contrato reveste uma forma, mesmo que verbal,[29] por ser a forma elemento essencial, na categoria dos estruturais, do contrato –, divergindo aquela principalmente no sentido de precisar se a formalidade especial (escrita) é requerida como da substância do mesmo ou se a título de prova de sua realização. A questão resume-se em saber se se trata de forma ad substanciam ou ad probationem, pois daí decorrerão ou não os regulares efeitos que do contrato de seguro se espera. Enzo Roppo[30], ao aclarar a distinção verificável entre ambas, forma ad substantiam e ad probationem, preleciona: naquela, a ausência da formalidade especialmente exigida “…impede que o contrato se forme validamente e produza os seus efeitos…”; nesta, “…a falta de forma [especial] … não preclude a válida formação do contrato e a regular produção dos seus efeitos, mas torna-se apenas mais difícil, para quem nisso tenha interesse, prová-los e fazê-los valer em juízo…”. Em razão de acarretar a nulidade do contrato, em ocorrendo sua inobservância, a forma ad substantiam actus ou constitutiva é, assim, vinculada ou necessária para a validade do contrato[31]; a forma ad substantiam integra o direito substancial (material), configurando-se em um ônus imposto à autonomia das partes[32]. Por outro lado, a forma ad probationem tantum é prescrita para facilitar a prova, consubstanciando-se em instituto voltado ao direito processual[33], e, além da mencionada finalidade, serve, ainda, como “un limite alla valutazione discrezionale da parte del giudice, chiamato a decidere su una controversia relativa all’atto”[34]. Entendemos, sem embargo das abalizadas opiniões divergentes encontráveis na doutrina nacional e estrangeira, que a forma especial no contrato de seguro constitui-se forma ad probationem, direção esta, aliás, sinalizada pelo art. 758, CC/02.
O contrato em questão é classificado como bilateral, oneroso, aleatório, consensual, formal (nos moldes aqui explanados), de execução continuada e de adesão. Vejamos o significado de cada uma das características jurídicas que reveste. É bilateral “ou sinalagmático porque depende da manifestação de vontade de ambos os contratantes, que se obrigam reciprocamente”[35]. Oneroso, “por criar vantagens, ou expectativa de vantagens patrimoniais para ambas as partes”[36]. Aleatório, pois “o evento previsto, que constitui o risco, pode acontecer ou não”[37]. Consensual, haja vista que basta o consentimento recíproco das partes para a sua conclusão, em contraposição ao contrato real, que exige, ainda, a entrega efetiva, ou tradição, da coisa que tem como objeto para atingir sua validade. Cabe salientar neste ponto o que foi dito há pouco acerca da forma no contrato de seguro. De execução continuada, subdivisão dos contratos de duração, como todos “aqueles em que a prestação é única, mas ininterrupta”[38]. E de adesão, categoria dos contratos com cláusulas predispostas, porque “o consentimento manifesta-se […] por simples adesão às cláusulas que foram apresentadas pelo outro contratante. […] A outra parte, o aderente, somente tem a alternativa de aceitar ou repelir o contrato”[39].
Outra característica relacionada ao contrato de seguro que não se pode relegar em discorrer, mesmo que sucintamente, é a boa-fé, conquanto a ela subordinado.[40] Sérgio Cavalieri Filho[41] preleciona que a mesma constitui a “alma do seguro” e, igualmente, “seu elemento jurídico”. Uma das raras ocasiões em que o diploma civil de 1916 mencionava expressamente ser determinado instituto regido pela boa-fé é quando disciplina o contrato de seguro (art. 1.443), não obstante sabermos que esta deve estar presente em toda e qualquer estipulação contratual, como é regra geral do CC/02 (art. 422).
O contrato de seguro, no mercado securitário brasileiro, contempla uma diversidade de tipos (espécies) de interesses seguráveis, cuja classificação os insere em um dos três grandes ramos de operação – vida, saúde e ramos elementares: “os dois primeiros referem-se aos seguros voltados para pessoas [v. g., seguro de vida (individual ou em grupo), seguro saúde] e os ramos elementares, por sua vez, aos seguros de bens [e. g., seguro de automóveis, seguro incêndio] e serviços [p. e., seguro transporte]”[42].
3. Função social do contrato de seguro
3.1. A dogmática da função social e sua evolução histórica. A inserção da função social como princípio na órbita contratual
Há muito que o relativo à função social logra relevância na seara jurídica, por envolver a questão aspectos políticos, econômicos e sociais, notadamente no que concerne à propriedade. As desigualdades latentes no convívio em sociedade, ao longo da história, passaram a requerer soluções que fossem capazes de reduzir o quadro de injustiças existente em cada época, principalmente em virtude do descompasso entre o que preceituava a lei e o que se verificava na realidade social. Não é diferente, pois, em nossos dias.
Os reclamos emergentes do meio social requerem a adoção de medidas que sejam capazes de modificar o atual estado de incertezas e falta de eqüidade nas relações entre os indivíduos, “refazendo-se, de alguma forma, as matrizes filosóficas do Direito”[43]. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka[44], após enunciar essa premissa, acrescenta: “A doutrina da função social emerge, assim, como uma dessas matrizes, importando em limitar institutos de conformação nitidamente individualista, de modo a atender aos ditames do interesse coletivo, acima daqueles do interesse particular, e importando, ainda, em igualar os sujeitos de direito, de modo que a liberdade que a cada um deles cabe seja igual para todos”.
A noção individualista que permeou o mundo jurídico na maior parte de sua história, desde a era romana, e que impregnou o Direito a partir do final do século XVIII, fruto dos ideais da Revolução Francesa, tinha de ser combatida, sobrepondo-se o interesse coletivo ao individual.
Nesse sentido, novas concepções afloraram, pautadas nas observações da realidade vigente à época e também no passado, fazendo com que surgisse “ao lado do direito individual, já em insustentável declínio, o chamado ‘direito social’, e com ele, renasce a doutrina da função social”[45].
A Doutrina Social Cristã, corroborando esse pensamento, em diversas oportunidades manifestou-se acerca da problemática que encerra a função social, contribuindo decisivamente para a sua consolidação.
Influenciadas pela tendência filosófica apregoada por São Tomás de Aquino, um dos expoentes da Doutrina Social da Igreja (ou Cristã), notabilizaram-se diversas encíclicas papais de cunho notoriamente sociais, consagrando a dogmática da função social: Rerum Novarum, de Leão XIII (1891); Quadragesimo Anno, de Pio XI (1931); Mater et Magistra, de João XXIII (1961); Populorum Progressio, de Paulo VI (1967), entre outras.
A doutrina da função social, dada a dimensão que alcança, ao compatibilizar o direito e a realidade fática nas relações inter-humanas, expande-se além do direito de propriedade, alcançando, igualmente, outros institutos dentro do contexto do direito privado.
Assim chegando aos contratos[46], imprimiu uma nova ordem destinada a condicionar a autonomia privada e a liberdade contratual. Estas devendo ser postas dentro dos limites dos reclamos que afluem da sociedade e das normas jurídica plantadas no intuito de limitá-las. Trata-se do dirigismo contratual, provocado pela intervenção estatal, bastante difundido no direito da atualidade. Por meio dele se restringe o campo da liberdade individual, substituindo-se as normas de caráter francamente individualistas por normas de ordem pública (cogentes).
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka bem sintetiza a noção aqui apresentada: “Não é difícil, por fim, inferir-se a concepção de que também o contrato, assim como a propriedade, possui uma função social, que lhe é inerente e que não pode, absolutamente, deixar de ser observada”[47].
Os contratos agrários, desde a edição do Estatuto da Terra (Lei n. 4.504/64) e do Decreto n. 59.566/66, encontram-se conforme essa nova orientação jurídica. Mas não apenas as relações contratuais no âmbito jurídico-agrário devem estar imbuídas pelo elemento motivador do princípio em tela. O que se objetiva é a sua extensão a toda a órbita contratual.
Como assinala Roberto Senise Lisboa[48], “uma nova fase despontou no horizonte contratual, quando o interesse do hipossuficiente aderente passou a ser tutelado via dirigismo econômico, embasando-se tal proteção em princípio de ordem pública intrinsecamente ligado a interesses de toda a comunidade”.
O Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), inspirado dentro dos novos parâmetros ora plantados para efeito de debate, não se descurou de tal perspectiva, ao estabelecer no art. 1º, que suas normas visam proteger a ordem pública e o interesse social. Nelson Nery Júnior[49] tece o seguinte comentário em torno dos ditames delineados no mencionado dispositivo legal: “…as regras ortodoxas do Direito Privado não mais atendem à ordem pública de proteção do consumidor… […] Daí a necessidade de criar-se um microssistema informado por modernas técnicas de implementação de regras de ordem pública modificadoras da então ordem jurídica privada vigente no Brasil, em atendimento aos preceitos universais que reclamam seja feita defesa mais efetiva dos direitos dos consumidores”.
Não olvidou também a comissão elaboradora e revisora do novo Código Civil a questão relativa ao princípio da função social do contrato. O professor Miguel Reale, na qualidade de supervisor dos trabalhos, ao submeter ao então Ministro da Justiça, Armando Falcão, o anteprojeto, que resultou, após ser encaminhado ao Congresso Nacional pelo Presidente Ernesto Geisel, através da mensagem n. 160/75, composta das exposições de motivos elaboradas pelo mencionado Ministro de Estado e pelo referido supervisor, no Projeto de Lei n. 634/75, assim se manifesta na exposição de motivos de sua autoria:
Por outro lado, firme consciência ética da realidade sócio-econômica norteia a revisão das regras gerais sobre a formação dos contratos e a garantia de sua execução eqüitativa, bem como as regras sobre resolução dos negócios jurídicos em virtude de onerosidade excessiva, às quais vários dispositivos expressamente se reportam, dando a medida do propósito de conferir aos contratos estrutura e finalidade sociais. É um dos tantos exemplos de atendimento da “socialidade” do Direito … Nesse contexto, bastará, por conseguinte, lembrar alguns outros pontos fundamentais, a saber: … c) Tornar explícito, como princípio condicionador de todo o processo hermenêutico, que a liberdade de contratar só pode ser exercida em consonância com os fins sociais do contrato, implicando os valores primordiais da boa fé e da probidade. Trata-se de preceito fundamental, dispensável talvez sob o enfoque de uma estreita compreensão positivista do Direito, mas essencial à adequação das normas particulares à concreção ética da experiência jurídica.
O entendimento acima transcrito resultou na redação do art. 421, CC/02: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Deste modo, vinculará a atuação de todos os operadores do Direito, impondo de maneira definitiva o ponto fundamental que disciplina no ordenamento jurídico de nosso país.
3.2. A nova dimensão que se impõe: justiça contratual
Não há como conceber o contrato em nossos dias impregnado por noções individualistas que exprimem inexoravelmente a ideologia do liberalismo econômico. A inserção de novos parâmetros na seara contratual é necessidade que se impõe na consecução da eqüidade entre os contratantes.
Rogério Ferraz Donnini[50] com muita precisão observa a nova dimensão que deve ser aposta na relação jurídica contratual: “Independentemente da análise da evolução do contrato, pode-se afirmar que o modelo liberal, que continua a existir na relação entre particulares, não mais atende às aspirações da sociedade atual, visto que não se pode mais admitir que uma relação contratual iníqua, celebrada com ausência de boa-fé e com prestações desproporcionais suportadas por uma das partes, seja considerada válida, sob o argumento de que existe a autonomia privada e as partes são livres para contratar. Aliás, há muito tempo que esse modelo liberal de contrato causa perplexidade àqueles que buscam a justiça, pois situações absolutamente desiguais e desproporcionais, que causam prejuízos a um dos contratantes, eram consideradas legais, embora evidentemente imorais”.[51]
As modificações estruturais pelas quais passou a sociedade contemporânea, principalmente as de natureza econômica, inseridos nesse contexto a globalização e o avanço que o uso da tecnologia veio ocasionar nos meios de produção, na circulação de riquezas e nas relações entre os indivíduos, o que deu feição diferenciada ao contrato, propugnam pelo redimensionamento de conceitos até então vigentes na teoria contratual, condicionando o instrumento de sua realização, o contrato, aos reclamos sociais envolvidos no processo descrito.
Cláudia Lima Marques[52], atenta a essas transformações, tendo como paradigmas a industrialização e os contratos de massa, que tornaram insuficientes as regras contidas no direito contratual, não adequadas aos contornos atuais da sociedade no limiar do terceiro milênio e provocando a exploração do economicamente mais fraco por aqueles que detêm o poder econômico, manifesta que isso acabou “desmentindo a idéia de que assegurando-se liberdade contratual, estaríamos assegurando a justiça contratual”.
Aliás, ao comentar a concepção liberal de que a liberdade contratual conduz à justiça no contrato Enzo Roppo[53] tece o seguinte comentário: “Mas desta forma esquece-se que a igualdade jurídica é só igualdade de possibilidades abstractas, igualdade de posições formais, a que na realidade podem corresponder – e numa sociedade dividida em classes correspondem necessariamente – gravíssimas desigualdades substanciais, profundíssimas disparidades das condições concretas de força económico-social entre contraentes que detêm riqueza e poder e contraentes que não dispõem senão da sua força de trabalho”.
Destarte, aderimos ao entendimento de Roberto Senise Lisboa[54] para quem “o negócio jurídico é fato jurídico e, portanto, fenômeno social que deve ter função socialmente dirigida à circulação de riquezas (função social do contrato)”.
O contrato de seguro por desempenhar nos dias atuais, dentro da sociedade tal como configurada, o relevante papel de socialização dos riscos, dos danos e do dever de indenizar, não pode, definitivamente, arredar-se dessa diretriz, estando condicionado ao integral cumprimento da função social que tem a realizar.
Não deve servir apenas de instrumento de acumulação de riqueza para seus operadores, tendentes a cada vez mais valorar os riscos de que por meio dele se visa resguardar, a fim de justificar o conseqüente aumento do prêmio, e a diminuir gradualmente a cobertura contra as contingências sócio-econômicas dos contratantes/segurados.
A legislação, impondo, à medida da necessidade, a devida intervenção em sua regulação e operacionalização, a doutrina, firmando as proposições teóricas aqui anunciadas e defendidas, e a jurisprudência, coibindo os abusos do poder econômico e de direito verificáveis nas relações jurídicas securitárias, farão valer de forma extensiva o ideal de justiça contratual também ao contrato de seguro.
4. O segurado como titular de interesse ou direito metaindividual
Como corolário das noções acima externadas os direitos inerentes ao segurado são suscetíveis de elevação à condição de metaindividuais ou coletivos lato sensu, ou seja, daqueles que estão acima dos interesses meramente individuais, dependendo sua tutela e proteção de cada caso concreto e do tipo de ofensa aos interesses daquele.
Vale ressaltar, recordando Hugo Nigro Mazzilli[55], que os direitos metaindividuais “são interesses que excedem o âmbito estritamente individual mas não chegam a constituir interesse público”.
A classificação dos interesses ou direitos metaindividuais como difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos entre nós é dada pelo art. 81, parágrafo único, I a III, do Código de Defesa do Consumidor, ao estatuir, in verbis:
Art. 81 – A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único – A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.
II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.
III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.
Os direitos difusos, então, são aqueles que ultrapassam o plano dos interesses de cada pessoa de per si (transindividual), caracterizando-se por sua indivisibilidade, isto é, seu objeto diz respeito a todos quantos deles se beneficiem, possuindo titulares indeterminados, cuja relação entre estes tem origem em uma situação de fato.
Por direitos coletivos entende-se também os transindividuais e indivisíveis, contudo pertencentes a titulares determinados ou determináveis (grupo, categoria ou classe de pessoas), sendo o liame entre os mesmos ou com a contraparte estabelecido a partir de uma “relação jurídica base”.
Os individuais homogêneos são “interesses individuais, cujo titular é identificável e cujo objeto é divisível e cindível. Caracteriza-se pela natureza comum, similar, semelhante entre todos os titulares”[56]. Tem, portanto, titulares determinados ou determináveis, e advêm de origem comum[57].
Os consumidores de seguros por vezes são lesados em seus direitos de forma individual, como ocorre quando a seguradora se nega a pagar o valor a que entende o segurado fazer jus diante do pactuado. Suponhamos a hipótese de abalroamento de veículos em que o segurado requer perda total e a seguradora diz tratar-se de dano parcial. A defesa de seus interesses será, da mesma forma, exercida em juízo individualmente.
Em outras circunstâncias, porém, os segurados podem ser atingidos coletivamente em seus direitos. Imaginemos o reajuste da mensalidade de seguro saúde acima dos índices oficiais. A proteção dos interesses dos segurados, neste caso, está apta a ser exercida pelos meios de tutela inerentes aos direitos coletivos, v. g., através de ação civil pública ou coletiva.
Por fim, aos segurados cabe defender-se, ainda, por meio das ações coletivas, quando estiverem diante de interesse individual homogêneo. Citamos a título de exemplo os contratantes de certo tipo de seguro, em determinada seguradora, que recebem as respectivas apólices sem a devida especificação dos riscos cobertos ou mesmo da qual não conste uma ou mais de suas cláusulas obrigatórias.
5. O contrato de seguro no âmbito do Código de Defesa do Consumidor
Resta nítida a alocação do contrato de seguro na seara jurídica contratual de consumo, regida pelo Código de Defesa do Consumidor (arts. 46 a 60).
Ainda mais se observarmos o disposto no § 2º, do art. 3º, deste mesmo diploma legal: “Serviço é qualquer atividade fornecida ao mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”[grifo nosso]. E é claro que, realizando-se a atividade securitária através de contrato, este estará sujeito ao disciplinamento inerente às relações consumeristas.
Todavia, cumpre agora verificar as implicações provenientes da natureza jurídica do contrato de consumo e, conseqüentemente, do contrato de seguro.
Os contratos de consumo apresentam as seguintes características: “a) predisposição unilateral, pois é o prestador do serviço que estabelece os termos do ajuste, independentemente da participação do consumidor; b) generalidade, porque não se encontra nesse tipo de contrato especificações relativas para cada consumidor contratante; c) inalterabilidade, uma vez que discordando de alguma das cláusulas não tem força o contratante para modificá-la ou retirá-la do contrato e d) adesão, pois o contratante deve se vincular expressamente aos termos do contrato elaborado de forma unilateral pelo prestador de serviços”[58].
Como decorrência imediata do tipo de contrato de que se utilizam (de adesão[59]), os contratos de consumo e, dentre eles, o de seguro, realizam-se por meio das chamadas cláusulas gerais dos contratos[60], que consistem em “estipulações feitas por um dos futuros contratantes, denominado predisponente ou estipulante (unilateralidade), antes, portanto, do início das tratativas contratuais (preestabelecimento), que servirão para reger os negócios do estipulante relativos àquela área negocial (uniformidade), sendo que o intento do predisponente é no sentido de que o futuro aderente aceite os termos das cláusulas sem discutir seu conteúdo e alcance (rigidez), e, ainda, que essa forma de contratação possa atingir indistintamente o contratante que quiser aderir às cláusulas gerais (abstração), vale dizer, que possa haver circulação em massa desses formulários onde estão contidas as cláusulas gerais para que as contratações se dêem em massa”[61].
A autora portuguesa Maria Clara Lopes[62], ratificando nosso entendimento, assim se manifesta: “As clausulas dos contratos de seguro inseridas nas Condições Gerais e Especiais das respectivas Apólices, porque elaboradas, pelas seguradoras, sem prévia negociação individual, com os respectivos destinatários, cabem efectivamente no conceito de ‘clausulas contratuais gerais’ previsto no artigo 1º do Decreto-Lei nº 446/85”.
A questão decisiva que ensejam as cláusulas predispostas no contrato de adesão é a de se evitar a ocorrência de cláusulas abusivas que atinjam negativamente o consumidor. O também jurista português António Miranda Pinheiro dos Santos[63], destaca neste tocante o item 5 da exposição de motivos do retrocitado Decreto-Lei n. 446/85 de seu país, que em parte transcrevemos: “Em última análise, as padronizações negociais favorecem o dinamismo do tráfico jurídico, conduzindo a uma racionalização ou normalização e a uma eficácia benéficas aos próprios consumidores. Mas não deve esquecer-se que o predisponente pode derivar do sistema certas vantagens que signifiquem restrições, despesas ou encargos menos razoáveis ou iníquos para os particulares”.
E foi justamente isso que buscou evitar o art. 51, do Código de Defesa do Consumidor, ao eivar de nulidade as cláusulas contratuais que atentem contra os interesses e direitos dos consumidores, sendo certo que o rol ali descrito é exemplificativo, por não contemplar todas as formas pelas quais podem se manifestar. Ressalte-se que “as cláusulas abusivas não se restringem aos contratos de adesão, mas a todo e qualquer contrato de consumo, escrito ou verbal, pois o desequilíbrio contratual, com a supremacia do fornecedor sobre o consumidor, pode ocorrer em qualquer contrato, concluído mediante qualquer técnica contratual. O CDC visa a proteger o consumidor contra as cláusulas abusivas tout court e não somente o aderente do contrato de adesão”[64].
Há que se observar, finalmente, os princípios gerais a que estão subordinados os contratos de consumo, neles incluído o contrato de seguro, apostos no Código de Defesa do Consumidor: boa-fé (art. 51, IV) e in dúbio pro consumidor[65] (art. 47). Integra este elenco, a nosso ver, o princípio da função social do contrato, conforme amplamente exposto alhures.
Doutor em Direito pela PUC/SP
Mestre em Direito pela UFG
Professor da UIT
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