Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar o conceito de devido processo legislativo, com marco teórico na teoria de Elio Fazzalari. Em seguida, irá se buscar a compreensão dos atos interna corporis, com o fito de conhecer os limites da atuação do Poder Judiciário, em relação a esses atos, quando da apreciação dos vícios eventualmente emergentes no curso do processo de elaboração das espécies normativas.
Palavras-chave: processo legislativo, devido processo legal, controle judicial do processo legislativo
Resumen: Este estudio tiene como objetivo analizar el concepto de debido proceso legislativo, con el marco teórico en la teoria de Elio Fazzalari. A continuación, se buscará la comprensión de los actos interna corporis, con el objetivo de conocer el límite para la atuación del poder judicial, en relación con estos actos, al evaluar los defectos posibles en el curso del proceso de elaboración de las espécies normativas.
Palabras clave: proceso legislativo, debido processo legal, control judicial del proceso legislativo
Sumário: Introdução. 1 O devido processo legislativo. 1.1 O controle judicial do processo legislativo. 1.1.2 O controle judicial preventivo do processo legislativo. 2 Os atos interna corporis. 2.1 O princípio da separação dos poderes. 2.2 O controle judicial dos atos interna corporis – a posição majoritária do STF. 2.3 Análise dos MS 24.831/DF e MS 31.816/DF: uma nova via interpretativa para a questão. 2.3.1 Do MS 24.831/DF. 2.3.2 Do MS Agr 31.816/DF. Conclusão.
Introdução
A compreensão do devido processo legislativo, de sua natureza jurídica, torna possível uma análise dos elementos normativos que o estrutura, bem como das consequências jurídicas ao desrespeito à sequência de atos que antecedem o provimento desejado, qual seja, o surgimento das espécies normativas.
Vislumbrada uma mácula no curso da produção legislativa, surgem intemperes jurídicas passíveis de aferição pelo Poder Judiciário. Tanto assim, que aos parlamentares é atribuído o direito de ação, manejado perante o Supremo Tribunal Federal, com o escopo de ver assegurado o devido processo legislativo, como expressão de legitimidade das normas produzidas no contexto de um Estado Democrático do Direito.
Torna-se necessário delimitar o alcance da atuação jurisdicional nessa seara, sobretudo em razão da existência de inúmeras violações que se caracterizam como atos interna corporis, ou seja, atos com respaldo em normas de produção exclusiva do Congresso Nacional, como manifestação da autonomia do Poder Legislativo na gerência de seu funcionamento.
Assim, no presente trabalho, buscar-se-á um delineamento dos conceitos necessários à compreensão do limite à atuação judicial apontada, passando-se, em seguida, a uma análise do entendimento esposado pelo Supremo em relação ao tema.
1 O devido processo legislativo: conceito e conteúdo
O desenvolvimento do presente trabalho não prescinde de um claro delineamento do conceito de devido processo legislativo, razão pela qual os esforços estarão direcionados, neste primeiro momento, a tal intento. Antes, todavia, para que se compreenda o que seja devido processo legislativo, é mister descortinar o que seja devido processo legal, uma vez que aquele conceito está estreitamente vinculado a este.
Com o marco teórico na obra de Elio Fazzalari, o processo pode ser concebido como espécie do gênero procedimento em função da participação dos interessados na atividade de preparação do provimento através do contraditório, juntamente com seu autor (LAGES. 2010, p. 62). Onde o procedimento se apresenta como uma sequência de atos previstos e valorados pelas normas (FAZZALARI. 1996, p. 78).
Dentro da ideia de procedimento, tem-se que a validade de cada um dos atos da sequência, inclusive a do ato final da cadeia procedimental, depende da validade dos atos que o precedem, assim como a validade do ato antecedente concorre para a validade dos atos que o seguem. (LAGES. 2010, p. 60).
Busca-se, através do procedimento, considerado como atividade preparatória, a elaboração de um ato, o provimento, que assim se caracterizará quando destinado a provocar efeitos na esfera jurídica dos interessados (administrados, jurisdicionados ou da sociedade) (LAGES, 2001, p. 83)
Como dito, os conceitos de procedimento e processo encontram-se em posição de gênero e espécie. Isso porque, com base na teoria apresentada por Fazzalari, somente há de se falar em processo, se, e somente se, em uma ou mais fases do iter de formação de um ato é contemplada a participação não apenas – e obviamente – do seu autor, mas também dos destinatários dos seus efeitos, em contraditório, de modo que esses possam desenvolver atividade que o autor do ato deve considerar, e cujos resultados ele pode não atender, mas não pode ignorar (FAZZALARI, 1996, p. 82).
Vê-se, portanto, que o elemento caracterizador do conceito de processo reside na existência de um contraditório no curso do procedimento. Compreendido o conceito de contraditório como a igualdade de oportunidades no processo, a oportunidade de igual tratamento, que se funda na liberdade de todos perante a lei (GONÇALVES, 1996, p. 27).
Com base nas considerações feitas, torna-se possível a elaboração de um conceito de devido processo legislativo, que se abebera dos elementos conceituais apresentados pela teoria de Elio Fazzalari.
Deve-se entender o processo legislativo como a sequência orquestrada de atos, pautada em normas jurídicas, com vistas a elaboração de um provimento, qual seja, de uma dada espécie normativa.
A marca distintiva do processo, o contraditório, reside na garantia da participação dos parlamentares nas comissões parlamentares e em plenário (LAGES, 2010, p. 66).
De acordo com Lages (2010, p. 66 e 67), tal redução, no entanto, precisa ser repensada à luz do paradigma procedimental de estado. Deve-se ter em vista, segundo a autora, a participação de outros atores no processo de elaboração das normas, sobretudo naquelas hipóteses em que há atuação direta dos afetados pela decisão, como ocorre com a realização das audiências públicas e a iniciativa popular de lei.
O conteúdo do processo legislativo compreende, assim, todas aquelas normas que estabelecem desde a competência para a iniciativa da elaboração de uma espécie normativa até o provimento que irá concretizá-la no mundo jurídico.
Nesse sentido, como afirma Lages, estabelece a Constituição brasileira, a partir de seu artigo 59, um modelo processual legislativo de observância obrigatória não apenas para os órgãos legislativos da União – a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, os quais compõem o Congresso Nacional –, mas também para os órgãos legislativos dos demais entes da federação: Estados, Distrito Federal e Municípios.
Ainda segundo a autora, a atividade legislativa realizada por esses órgãos ocorre através de um devido processo legislativo, estruturado por princípios constitucionais, de observância obrigatória, sob pena de nulidade do ato produzido (LAGES, 2010, p. 80 e 81).
1.1 O controle judicial do processo legislativo.
Conforme já foi dito, o processo legislativo exige de seus agentes a observância das normas que constituem a cadeia procedimental que levará à concretização do provimento almejado.
Tendo em vista a necessidade de observância da higidez procedimental na elaboração das leis e demais espécies normativas, não raras as vezes, o Poder Judiciário é conclamado a se manifestar, com vistas a extirpar eventuais ilegalidades vislumbradas no iter de produção legislativa.
Traçando-se um recorte no objetivo do presente trabalho, o foco de análise será direcionado à verificação da inconstitucionalidade formal ou nomodinâmica, entendida como aquela que tem defeito desde sua formação, decorrendo da inobservância da regra de competência para edição da norma do ato, ou do vício de competência do órgão de que promana o ato normativo, como, por exemplo, a edição, pelo Estado-Membro, de lei em matéria penal, que viola a regra de competência privativa da União (artigo 22, I, da Constituição Federal), ou a apresentação de projeto de lei de iniciativa reservada, por outro proponente, que acarreta a usurpação de iniciativa, no âmbito do processo legislativo. A inconstitucionalidade formal propriamente dita decorre da inobservância do procedimento legislativo fixado na Constituição. (CARVALHO, 2012, p. 388-389).
A sindicabilidade realizada pelo Poder Judiciário poderá ocorrer em dois momentos distintos: durante o trâmite legislativo ou posteriormente à edição do ato, ou seja, de modo preventivo ou repressivo, respectivamente.
O controle de constitucionalidade repressivo jurídico ou judiciário é aquele em que o próprio Poder Judiciário é quem realiza o controle da lei ou do ato normativo, já editados, perante a Constituição Federal, para retirá-los do ordenamento jurídico, desde que contrários à Carta Magna (MORAES, 2007, p. 682).
No controle judicial repressivo de constitucionalidade a aferição da compatibilidade vertical entre a lei ou ato normativo em face da Constituição ocorre em momento posterior, mediante o manejo de ação direta (controle concentrado de constitucionalidade), ou através de exceção aposta a um caso concreto debatido em uma ação ordinária (controle difuso).
1.1.2 O controle judicial preventivo do processo legislativo
A outra hipótese de atuação do Poder Judiciário com vistas a apartar eventual inconstitucionalidade observada no processo legislativo ocorre em momento anterior à concretização da lei ou ato normativo. Trata-se do controle judicial preventivo de constitucionalidade, que pretende impedir que alguma norma maculada pela eiva da inconstitucionalidade ingresse no ordenamento jurídico. (MORAES, 2007, p. 678).
O controle preventivo encontra estreita ligação com a noção de devido processo legislativo acima delineada, uma vez que a aferição da constitucionalidade feita no curso de elaboração legislativa pretende assegurar a estrita observância das normas que formam o procedimento em contraditório, o qual irá culminar no provimento que se quer alcançar. Vale destacar que não apenas as formalidades dos atos de elaboração deverão ser observadas, como também a possibilidade de efetivação do contraditório no curso da proposta em análise pelo Legislativo.
Nesse sentido, Marcelo Cattoni de Oliveira ensina que dos atos jurídicos que, ao densificarem um modo jurídico-constitucional de interconexão prefirgurada, constituem-se em uma cadeia procedimental. Segundo o autor, essa cadeia procedimental se desenvolve discursivamente, ou, ao menos, em condições equânimes de negociação, ou ainda, em contraditório entre os agentes legitimados, no contexto de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição, visando à formação e à emissão de um ato público-estatal do tipo pronúncia-declaração, um provimento legislativo que, sendo o ato final daquela cadeia procedimental, dá-lhe finalidade jurídica específica. (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006, p. 16)
Dito isso, tem-se que a inobservância do devido processo legislativo pelo desrespeito das normas que o estrutura, irá trazer a possibilidade de se obter junto ao Poder Judiciário uma manifestação acerca da inconstitucionalidade vislumbrada.
A legitimidade para o manejo do direito de ação em face da violação ao devido processo legislativo, conforme entendimento majoritário, é atribuída aos membros do Congresso Nacional. Sublinhe-se a existência de entendimento doutrinário no sentido de que a legitimidade para o exercício do controle preventivo judicial de constitucionalidade deveria ser atribuída a todo cidadão, destinatário final da norma, em conformação com um processo legislativo democrático.
Não obstante, o entendimento majoritário, inclusive respaldado por decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, delimitam o direito de ação nestes casos aos parlamentares, que teriam o direito subjetivo à observância do devido processo legislativo.
Nesse sentido, Alexandre de Moraes (MORAES, 2007, p.697), citando decisão proferida no MS 20.247/DF, ensina que compete ao Poder Judiciário analisar, em sede de mandado de segurança ajuizado por parlamentar, a regularidade na observância por parte do Congresso Nacional de normas constitucionais referentes ao processo legislativo, uma vez que os congressistas têm direito líquido e certo a não participarem de processo legislativo vedado pela Constituição Federal.
2 Atos interna corporis
Dentre os vários atos praticados pelo Poder Legislativo, existem aqueles que dizem respeito ao próprio gerenciamento das casas, sendo reservados ao âmbito decisório congressista, não admitindo, aprioristicamente, a apreciação por qualquer outro Poder.
Como ensina Lages (2010, p. 89), a teoria dos interna corporis acta diz respeito à liberdade de expressão dos parlamentares, à adoção por estes de uma agenda própria, à competência para adotar um código de procedimento parlamentar e, sobretudo, à liberdade para modificá-lo e interpretá-lo.
Francisco Campos (CAMPOS, 1956, p. 119, v. II), entende que interna corporis são todas as regras e disposições interiores ao corpo legislativo, ou seja, as prescrições destinadas a disciplinar o seu funcionamento, sejam elas instituídas no próprio regulamento interno ou na mesma Constituição. Assevera o autor que tais normas somente podem ser interpretadas pelo próprio órgão legislativo, que assume, assim, papel de destinatário e juiz da norma. E continua o autor:
“embora reguladas em leis ou na Constituição, já se acham confiadas à competência de outro Poder, e não se pode admitir, dado o princípio da separação dos Poderes, duas competências atribuídas a Poderes distintos sobre o mesmo objeto [logo] todas as questões relativas ao funcionamento das Assembleias Legislativas hão de ser, forçosamente, por elas próprias resolvidas, antes de tomadas as suas deliberações. À Câmara, pois, desde que lhe cabe deliberar, há de caber, necessariamente, a competência indispensável para verificar a regularidade do processo de suas deliberações.[…]
Uma vez decidida pela Câmara uma dessas questões que lhe são interiores, se se facultasse ao Poder Judiciário abrir nova sindicância sobre a matéria, para rever a decisão, seria reduzir a nada a competência constitucional da Câmara, submetendo-a ao controle do Judiciário, que seria o único juiz da regularidade do processo legislativo, em contravenção ao princípio da autonomia e da separação dos Poderes.”
Conforme ensinamentos de Hely Lopes Meireles (MEIRELES, 1992, p. 609-611), interna corporis são só aquelas questões ou assuntos que entendem direta e imediatamente com a economia interna da corporação legislativa, com seus privilégios e com a formação ideológica da lei, que por sua própria natureza, são reservados à exclusiva apreciação e deliberação do Plenário.
2.1 O princípio da separação dos poderes
Questão de alta relevância que se coloca na doutrina e na jurisprudência diz respeito à possibilidade de os atos interna corporis sofrerem sindicabilidade pelo Poder Judiciário. O tema é bastante polêmico, pois encontra no princípio da separação dos poderes um terreno fecundo para a discussão.
Como já foi dito, os atos interna corporis guardam em si um caráter de exclusividade quanto à destinação e sua interpretação. Isso porque são compreendidos como aqueles atos necessários ao funcionamento independente do Poder Legislativo, razão pela qual não admitiriam interferências externas. Nesse contexto, insere-se o princípio da separação dos poderes como mecanismo de sustentação de tal assertiva.
Como ensina Alexandre de Moraes (MORAES, 2007, p. 385), a separação de poderes consiste em distinguir três funções estatais, quais sejam, legislação, administração e jurisdição, que devem ser atribuídas a três órgãos autônomos entre si, que as exercerão com exclusividade. No Brasil, como ensina Nelson Saldanha (SALDANHA, 1981, p. 21), as constituições republicanas, a partir de 1981 se ativeram pacificamente ao esquema tripartite da separação dos poderes.
Ainda segundo Nelson Saldanha (SALDANHA, 1981, p. 26), o que a divisão ou separação de funções governamentais garante é, em primeiro termo, que se evite a concentração de atribuições. Portanto, o governo autocrático. A separação, cumprida efetivamente como ordenação constitucional, protege os súditos contra o arbítrio e oferece a eles uma visão clara das competências de cada órgão.
E continua o autor:
“ [esse] princípio não configura mais aquela rigidez de outrora. A ampliação das atividades do Estado contemporâneo impôs nova visão da teoria da separação de poderes e novas formas de relacionamento entre os órgãos legislativo e executivo e destes com o judiciário, tanto que atualmente se prefere falar em 'colaboração de poderes' […]. A 'harmonia entre os poderes' verifica-se primeiramente pelas normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente todos têm direito. De outro lado, cabe assinalar que nem a divisão de funções entre os órgãos do poder nem sua independência são absolutas. Há interferências, que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados’’. (SALDANHA, 1981, p. 26)
Com José Afonso da Silva (SILVA, 2009, p. 110) cabe assinalar que nem divisão de funções entre órgãos do poder nem sua independência são absolutas. Há interferências, que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contra pesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados.
2.2 O Controle Judicial dos Atos Interna Corporis no curso do processo legislativo – a posição majoritária do STF
Do conjunto de normas que constitui a cadeia procedimental que irá concretizar o devido processo legislativo, diversas possuem a natureza de atos interna corporis, na medida em que elaboradas pelas respectivas casas legislativas, com vistas à ordenação de seus trabalhos. Tais normas estruturam o processo legislativo, traçando os caminhos a serem perfilhados, desde a propositura do projeto, até o alcance, ao final, do provimento desejado.
O desrespeito das normas que compõem o processo legislativo, como já visto, pode implicar na possibilidade de o Poder Judiciário ser instado a se manifestar, com vistas ao reestabelecimento da legalidade violada.
O entendimento jurisprudencial majoritário, em que pese existir posição diversa na doutrina, é aquele que indica a legitimidade do parlamentar para impetrar mandado de segurança, com objetivo de ver restaurado o devido processo legislativo. É dizer, o controle judicial preventivo exsurge como um direito subjetivo dos membros do Congresso Nacional.
Em que pese a possibilidade do exercício do direito de ação na hipótese ventilada, o STF vem decidindo, majoritariamente, que a violação aos atos interna corporis não se submete à sindicabilidade judicial, na medida em que entendimento contrário poderia significar vulneração ao princípio da separação dos poderes.
Nesse sentido, em sede do MS 20.247/DF, o STF, ao apreciar a pretensão de Senador, com vistas ao desfazimento de ato praticado pela Mesa do Senado Federal, negou a segurança, embasando-se na existência de ato interna corporis, não sujeito à apreciação judicial. No caso concreto, pretendia o Senador impetrante a anexação de uma proposta de emenda constitucional (PEC – 39/79), do qual era signatário, a outra encaminhada pelo Executivo (PEC – 74/80), uma vez que conexa ou análoga a matéria discutida, com base na aplicação analógica do regimento interno da Câmara dos Deputados, ante a ausência previsão normativa comum e também do Senado Federal.
Na decisão, o STF, seguindo o voto do relator, entendeu que:
“Não pode o Judiciário, evidentemente – por maior que seja a extensão que se lhe pretenda outorgar – examinar o mérito de ato dessa natureza, para aquilatar seu acerto ou desacerto, sua justiça ou injustiça. Trata-se de questão interna corporis que se resolve, exclusivamente, no âmbito do Poder Legislativo.”
Seguindo a mesma linha de entendimento, a qual se pauta pela incognoscibilidade dos atos interna corporis pelo Poder Judiciário, é possível citar o MS 21.374/DF, no qual a impetração visava a compelir a presidência da Câmara dos Deputados a acolher requerimento de urgencia-urgentissima para discussão e votação imediata de projeto de resolução de autoria do impetrante.
Na decisão, o STF indeferiu o mandado de segurança, seguindo seu entendimento firmado então, de não deferir segurança contra atos do presidente das casas legislativas, com base em regimento interno delas, na condução do processo de feitura de leis. Em seu voto, o ministro Celso de Mello destacou que:
“Questões interna corporis excluem-se por isso mesmo, em atenção ao princípio da divisão funcional do poder, da possibilidade de tutela jurisprudencial, devendo resolver-se, exclusivamente, na esfera da própria instituição legislativa.
A jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado essa orientação em sucessivos pronunciamentos, nos quais ficou assentado que, em se tratando de questão interna corporis, deve ela ser resolvida, com exclusividade, “… no âmbito do Poder Legislativo, sendo vedada sua apreciação pelo Judiciário” (RJT 102/27, rel. Min. Moreira Alves)
O sentido dessas decisões da corte – a que se pode acrescentar o julgamento plenário do MS n º 20.464-DF, rel. Min. Soares Muñoz (RJT 112/598) – consiste no reconhecimento da soberania dos pronunciamentos, deliberações e atuação dos órgãos do Poder Legislativo, na esfera de sua exclusiva competência discricionária, ressalvadas, para sua apreciação judicial, apenas as hipóteses de lesão ou ameaça a direito.”
Sem distanciar da posição firmada nos exemplos colacionados acima, podemos citar ainda o MS 20. 471/DF, no qual a segurança não foi conhecida por se tratar de matéria relativa a interpretação, pelo Presidente do Congresso Nacional, de normas de regimento legislativo e, portanto, imune à crítica judiciária. Como afiançado no voto do ministro relator Francisco Rezek “tudo mais se exaure no domínio da interpretação de normas de regimento legislativo, constituindo interna corporis, matéria insuscetível de crítica judiciária”.
Este denota ser o entendimento majoritário do Supremo Tribunal Federal, encontrando acolhida, ainda, nos seguintes casos concretos: MS 20.464/DF, MS 21.754 Agr/DF.
2.3 Análise dos MS 24.831/DF e MS 31.816/DF: uma nova via interpretativa para a questão.
O enfrentamento dos interna corporis pelo Supremo Tribunal Federal, como já apontado, tem encontrado esteio majoritário na compreensão de ser vedada a sindicabilidade judicial de atos daquela natureza. Pelos julgados apontados, ficou claro que o STF tem seguido uma limitação à atuação judicial, na medida em que os interna corporis constituem atos de gestão das casas legislativas, razão pela qual a interpretação de tais normas devem ocorrer no seio do parlamento.
Todavia, faz-se imperioso atentar para decisões proferidas pelo Supremo que apresentam uma nova perspectiva para a questão em análise.
2.3.1 Do MS 24.831/DF
O mandado de segurança 24.831/DF foi impetrado por Senadores da República contra omissão atribuída à Mesa do Senado Federal e “que, por alegadamente lesiva a direito público subjetivo das minorias parlamentares, teria frustrado, não obstante a natureza eminentemente constitucional desse instrumento de investigação legislativa, a instauração de inquérito parlamentar destinado a apurar a utilização das ‘casas de bingos” na prática do delito de lavagem de dinheiro, bem assim a esclarecer a possível conexão dessas mesmas ‘casas’ e das empresas concessionárias de apostas com organizações criminosas”.
De acordo com o relatório, a impetração decorreu de inação do Presidente do Senado Federal, que deixou de suprir a omissão dos líderes partidários majoritários, os quais deveriam indicar membros destinados a compor vagas na CPI a ser instalada. Entendeu o Presidente do Senado Federal não lhe assistir qualquer prerrogativa neste tema, uma vez que o Regimento Interno do Senado Federal reserva o exercício desse poder apenas aos líderes dos partidos políticos. Por tais razões, e fundando-se, ainda, na existência de lacuna legislativa, deixou de acolher a questão de ordem mencionada. Como fundamento da impetração reside “na alegação de que existe, no sistema constitucional brasileiro – e em favor das minorias parlamentares – o reconhecimento do direito de oposição e da prerrogativa da investigação parlamentar, especialmente se se considerar, nos termos do art. 58 § 3º da Carta Política, que esse poder – impregnado de irrecusável significação político-jurídica – revela-se oponível, até mesmo, às próprias maiorias parlamentares que atuam no âmbito institucional legislativo.
Em seu voto, o relator, min. Celso de Mello, afastando a alegação da autoridade coatora no sentido de a questão dizer respeito estritamente à interpretação do RISF, e, portanto, não suscetível à apreciação judicial, entendeu existir ofensa a direitos de estatura constitucional, razão pela qual a prejudicial foi afastada. De acordo com o relator, a ofensa ao texto constitucional afasta a alegação de se tratar de interna corporis, legitimando, assim, a atuação do Supremo Tribunal Federal.
Segue o voto com vinco na importância constitucional da questão posta sob a análise do Judiciário e destaca:
“(…) o princípio da separação de poderes não pode ser invocado para estabelecer, em torno de um dos órgãos da soberania nacional, um indevassável círculo de imunidade que torne insuscetível de revisão judicial, atos ou omissões emanados dos órgãos dirigentes das Casas legislativas, ainda mais naquelas situações em que, das condutas impugnadas, derive alegada vulneração a direitos titularizados por membros do Congresso Nacional, mesmo que – tal como sucede na espécie – sejam integrantes dos grupos parlamentares minoritários.
O reconhecimento de imunidade ao controle jurisdicional, tal como pretendido pelo Senhor Presidente do Senado Federal, quando sustenta, sem razão, o caráter “interna corporis” de sua conduta, revela-se conflitante com a própria essência e com os valores que informam o ordenamento constitucional brasileiro.”
E continua mais à frente em seu voto:
“Se é certo, portanto, que os atos “interna corporis” e os de índole política são abrangidos pelos círculos de imunidade que excluem a possibilidade de sua revisão judicial, não é menos exato que essa particular qualificação das condutas legislativas (sejam positivas ou negativas) não pode justificar ofensas a direitos públicos subjetivos que os congressistas titularizam e que lhes conferem a prerrogativa institucional de estrita observância, por parte do órgão a que pertencem, das normas constitucionais pertinentes à organização e ao funcionamento das comissões parlamentares de inquérito.
Não obstante o caráter político dos atos “interna corporis”, é essencial proclamar que a discrição dos corpos legislativos não pode exercer-se – conforme adverte Castro Nunes (“Do mandato de Segurança”, p. 223, 5ª ed.) – nem “(…) fora dos limites constitucionais (…) nem (…) ultrapassar as raias que condicionem o exercício legítimo do poder.”
Rejeitada a questão preliminar, como acima demonstrado, adentrou-se na apreciação do mérito do referido mandado de segurança para, por maioria, dar-lhe provimento, nos termos do voto do relator, assegurando-se à parte impetrante, o direito à efetiva composição da Comissão Parlamentar de Inquérito.
2.3.2 Do MS Agr 31.816/DF
Outro caso posto sob a análise do STF e que indica uma possível via de interpretação para a cognoscibilidade dos atos interna corporis encontra-se na apreciação do agravo de instrumento no mandado de segurança 31.816/DF.
Nos termos do relatório apresentado:
“Trata-se de mandado de segurança impetrado por deputado federal contra ato da Mesa Diretora do Congresso Nacional que aprovou medidas tendentes a submeter à votação o Veto Parcial nº 38/2012, aposto pela Presidente da República ao Projeto de Lei nº 2.565/2011. Sustenta o Impetrante, em síntese, que a votação desse Veto está sendo promovida “com violação ao devido processo legislativo constitucional”, seja porque não atendeu ao disposto no art. 66, §§ 4º e 6º da Constituição (que não prevê regime de urgência e que impõe a observância de um sistema ordenado de votação, impedindo que veto recente seja apreciado antes dos que tem prazo de discussão e votação vencido), seja porque foi descumprido o art. 104 do Regimento Comum (que condiciona a votação à emissão de parecer prévio por Comissão Mista).”
Revisitando o tema relativo ao controle dos atos interna corporis, o relator, Ministro Ricardo Lewandowski, asseverou em sua decisão liminar, contra a qual o agravo em comento foi interposto que:
“(…) São cognoscíveis em sede mandamental as alegações de ofensa à disciplina das regras dos regimentos das Casas Legislativas, sendo certo que pela sua qualidade de normas jurídicas reclamam instrumentos jurisdicionais idôneos a resguardar-lhes a efetividade. Rejeição da doutrina das questões interna corporis ante sua manifesta contrariedade ao Estado de Direito (art. 1º, caput, CF/88) e à proteção das minorias parlamentares.(…)
A leitura do veto parcial nº 38/2012, em regime de urgência, na sessão legislativa de 12.12.2012, violou as disposições regimentais que impedem (a) a discussão de matéria estranha à ordem do dia e (b) a deliberação do veto sem prévio relatório da comissão mista.
Fumus boni iuris e periculum in mora configurados. Medida liminar deferida.”
Em que pese a decisão liminar referida ter sido reformada, sendo o relator voto vencido, inegável que a presente decisão está a demonstrar que há, no próprio STF, direcionamento no sentido de matizar o grau de insindicabilidade dos atos interna corporis. Ora, outro não foi o entendimento do relator, ao deferir a medida cautelar postulada no mandado de segurança, senão aquele de proceder a uma leitura do ato impugnado em face do sistema constitucional brasileiro.
Afastou-se, naquela apreciação liminar o tão sedimentado entendimento da inviabilidade de aferição judicial dos atos interna corporis, com base em afronta ao Estado Democrático de Direito, arrimado no próprio texto constitucional.
Conclusão
De acordo com o que ficou demonstrado, o processo legislativo compreende um conjunto de normas que se sucedem, em uma cadeia de interconexão, na qual a validade da norma seguinte depende da validade daquela antecedente, com vistas à elaboração de um provimento. Todo esse processo, com esteio no marco teórico escolhido, faz-se em contraditório, ou seja, através dos debates entabulados pelos membros do Congresso Nacional na arena política. Assim, que há de se falar em um devido processo legislativo, como espécie de devido processo legal, cujo alicerce encontra-se na própria Constituição.
O conjunto normativo que consubstancia o processo legislativo, ademais das próprias normas constitucionais, é repleto de outras cuja elaboração é exclusiva do Congresso, como são seus regimentos internos, os quais delineiam e gerenciam o funcionamento do parlamento.
Aos parlamentares é assegurado o respeito ao devido processo legislativo, como direito subjetivo protegido, consequentemente, pelo direito de ação, que, não raras as vezes, enseja a impetração de mandados de segurança, no curso do trâmite legislativo, contra atos e omissões tomados na condução do processo.
Diante de tais manifestações do direito de ação, o Supremo, posto a analisar matéria considerada interna corporis, tem decidido no sentido de não ser permitido ao Judiciário a ingerência em temas afetos exclusivamente ao Congresso, como demonstrado nos exemplos trazidos à baila.
Todavia, descortinam-se novas vias interpretativas, no sentido de afastar a teoria dos interna corporis acta para reconhecer a possibilidade de o Judiciário apreciar aquelas matérias, tendo por base elementos estruturantes do próprio Estado Democrático de Direito. É dizer, afasta-se a incognoscibilidade de determinados atos, aprioristicamente apartados da apreciação judicial pelo entendimento majoritário, com base em outros princípios contidos no próprio texto constitucional. Ganha relevo, assim, a noção de devido processo legislativo concebido como instituição constitucional, de observância obrigatória, encontrando no próprio sistema constitucional balizas para assegurar sua higidez. Nesse sentido, bem ilustrados os exemplos colacionados nos MS 24.831/DF e MS 31.816/DF
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