O crime de divulgação de pornografia infantil pela internet – breves comentários à Lei 10.764/03

Foi
publicada (no DOU do dia 13/11) a Lei Federal 10.764, de 12.11.2003, que
atualizou e alterou alguns dispositivos do Estatuto da Criança e Adolescente
(Lei 8.069/90), modificando a estrutura e conceituação legal e passando a
prever penas mais severas para alguns crimes contra crianças e adolescentes. Em
particular, a Lei altera o art. 241 do ECA, que trata do crime de produção e
divulgação de imagens de menores em cenas de sexo explícito. A norma foi
originária de projeto de lei (n. 135/99) de autoria da Senadora e atual
Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva (PT/AC), e tramitou na Câmara dos
Deputados sob o número n. 5.460/01, com redação final aprovada em plenário no
dia 30/07. Retornando ao Senado, foi apreciado e aprovado em 21/10.

Trata-se de
um pacote legislativo[1]
que visa a adequar a proteção legal das crianças e adolescentes às mudanças
sociais, especialmente contra crimes e abusos sexuais, que têm aumentado de
proporção. A proteção das crianças é assunto que ganha cada vez mais atenção da
nossa sociedade e, por decorrência, dos nossos legisladores. Com toda razão,
sobretudo quando novas tecnologias favorecem a prática de crimes dessa
natureza. Durante a discussão do projeto, a deputada Maria do Rosário (PT-RS)
apresentou estatísticas preocupantes: em maio deste ano, a Interpol, sediada em
Madri, fez chegar à Polícia Federal brasileira a indicação de 272 sites,
com origem no Brasil, onde eram exibidas fotografias de adultos explorando
sexualmente crianças e adolescentes. Um convênio (protocolo de cooperação
técnica) entre o Ministério Público do Rio Grande do Sul, o Ministério Público
Federal, a Interpol, a Polícia Federal e outros organismos revelou que, em
2002, houve 1.245 denúncias de páginas na Internet contendo material de
pornografia infantil. De janeiro a 31 de maio do corrente ano, houve 401
denúncias de páginas contendo esse tipo de material[2].
A deputada Telma de Souza (PT-SP) afirmou que o universo da pedofilia precisa
ser encarado com muita seriedade. “Não é apenas aquele que pratica o ato
sexual com crianças ou adolescentes que deve estar sujeito às penalidades
previstas, mas também aquele que mantém e veicula, principalmente pela
Internet, fotos e vídeos que fazem proliferar a pedofilia em proporções
indescritíveis”, disse ela.

O ECA –
Estatuto da Criança e do Adolescente, que é de 1990, precisava realmente ser
atualizado. Na época de sua edição, a Internet (em especial o seu canal gráfico
– a World Wide Web ou WWW) ainda não era uma realidade com a
popularização que alcançou nos dias de hoje. A redação original do seu art. 241
previu pena (reclusão de um a quatro anos) somente para o ato de “fotografar ou
publicar cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou
adolescente”. A não tipificação exata, indicando os meios da publicação,
poderia servir como porta aberta para a impunidade. Pela nova redação, quem
“apresentar, produzir, vender, fornecer, divulgar ou publicar, por
qualquer meio de comunicação, inclusive Internet, fotografias ou imagens com
pornografia ou cenas de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente”,
estará sujeito a reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. O art. 241, assim, passa a abranger de
modo específico a pornografia infantil na Internet.

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Muito apropriado. A rede mundial tem
sido um ambiente extremamente favorável à proliferação da pornografia e, de um
modo ainda mais sensível, tem servido como campo fértil para a disseminação da
“pedofilia”[3].
Os pedófilos têm se utilizado da Internet para trocar fotos e imagens que
descrevam práticas sexuais com menores pré-púberes, não somente para
simplesmente extravasar suas (doentias) fantasias sexuais e até mesmo para
difundir uma espécie de filosofia pedófila. Por sua vez, o Estado tem um
interesse direto na repressão da pedofilia, quer seja ela a prática
direta de um ato de abuso sexual contra menores, seja quando representa uma
perpetuação ou um incentivo a esse tipo de crime – o que ocorre quando imagens
de crianças molestadas sexualmente são divulgadas. Muitas pesquisas sugerem que
a divulgação de “pornografia infantil”[4]
contribui para o aumento de crimes sexuais contra menores.

A nova redação do art. 241 não
alcança as “simulações” de pornografia infantil, isto é, ela só tipifica a
disseminação de imagens que sejam efetivamente a reprodução de cenas que
envolvam a participação real de menores. Durante a tramitação do projeto pela
Câmara, o relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Redação (CCJR),
Deputado Carlos Biscaia (PT-RJ), ofereceu subemenda em forma de substitutivo
que propunha uma redação diferente a esse artigo, de maneira alcançar também a
utilização de imagens contendo sexo explícito que não utilizassem crianças
reais (fruto da técnicas de computação gráfica ou através do emprego de adultos
com aparência infantil). O substitutivo acrescentava um parágrafo (3o.)
ao art. 241, definindo pornografia infantil como “qualquer representação, por
qualquer meio, de criança ou adolescente no desempenho de atividades sexuais
explícitas ou simuladas …”[5].
Pretendia assim, como se disse, criminalizar a chamada “pornografia infantil virtual”,
entendida esta como o material visual que aparenta descrever cenas de menores
envolvidos em relações sexuais explícitas, mas que na verdade é produzido sem a
participação efetiva de uma criança (menor de 18 anos). Esse adendo, no
entanto, foi suprimido quando o projeto retornou ao Senado para reapreciação.

A não inclusão da “pornografia
infantil virtual” no descritor normativo do crime do art. 241 traz duas
conseqüências. A primeira é evitar que a regra possa ser acusada de
inconstitucionalidade, por conflito com o princípio da liberdade de
expressão
(art. 5º, IV, VI, VIII e IX, da CF). Nos EUA, por exemplo, uma lei de 1996 (Child Pornography
Prevention Act
)[6] tentou
expandir o conceito de pornografia infantil para nele incluir qualquer
descrição visual que seja ou aparente ser de um menor engajado em
conduta sexual explícita. A Suprema Corte invalidou a lei, por considerar que
ela dava margem à proibição de material cuja produção não utilizasse
efetivamente crianças. A Corte recorreu ao princípio do freedom of speech,
encapsulado na Emenda n. 01 da Constituição norte-americana, que inspirou e
corresponde ao nosso princípio constitucional da liberdade de expressão[7]. É claro que a nossa jurisprudência em torno desse
princípio é mais restritiva do que a norte-americana, que lhe atribui maior
largueza. Mas a supressão produzida na redação quando o substitutivo retornou
ao Senado evita esse tipo de discussão.

A outra conseqüência é que a não
tipificação da “pornografia infantil virtual” pode dificultar a
persecução criminal, em casos de efetivo crime de disseminação de material
pedófilo. Uma vez identificados os autores do ato produção ou divulgação do
material na Internet, estes podem, durante o procedimento judicial, alegar que
não se trata de imagens ou representações de crianças reais e, assim, escapar à
condenação. Esse tipo de alegação, como estratégia de defesa, tem o efeito de
lançar sobre os ombros da Promotoria o ônus processual da prova do crime, isto
é, a obrigação de provar que o material eventualmente apreendido trata-se
efetivamente de pornografia infantil, fruto da reprodução de um abuso
sexual perpetrado contra uma criança. Prova técnica desse tipo sempre será de
difícil produção e a conseqüência, como se disse, pode ser a absolvição dos
incriminados. A solução seria a lei transferir para a defesa o onus probandi,
nessas hipóteses[8].

A Lei Federal 10.764 ainda produziu
outras alterações no art. 241 do ECA. Foi mais além, prevendo a mesma pena (de
reclusão de 02 a
06 anos e multa) para quem “assegura os meios ou serviços para o armazenamento das
fotografias, cenas ou imagens” (inc. II do par. 1o.) ou ainda
“assegura, por qualquer meio, o acesso, na rede mundial de computadores ou
internet, das fotografias, cenas ou imagens” (inc. III do par. 1o.)
de sexo explícito produzidas com a participação de crianças ou adolescentes.

Pela
redação desses dois dispositivos, fica claro que o legislador pretendeu
responsabilizar o provedor de serviço de hospedagem de página web e o
provedor de serviço de acesso à Internet, sempre que contribuam para a
disseminação de pornografia infantil. Não somente o praticante direto do ato,
mas também aquele que fornece os meios técnicos para sua realização incorre no
mesmo tipo penal. Assim, por exemplo, quando um provedor sabidamente fornece os
meios para a transmissão de uma mensagem de e-mail contendo pornografia
infantil pratica conduta típica (descrita no inc. III do par. 1o.).
O mesmo ocorre quando hospeda conscientemente página web contendo esse
tipo de material (inc. II do par. 1o.). Mas é preciso salientar que
a configuração dessa modalidade do crime – de fornecimento dos meios técnicos
para a sua realização – somente se configura quando o provedor tem conhecimento
da natureza do material que ele está transportando ou hospedando. Se ele
desconhece que uma página eletrônica contendo pornografia infantil está
hospedada em seu sistema informático, ou que estão se servindo dele para o
envio de material dessa natureza, não pode ser responsabilizado por esses atos.

Por uma
questão de ordem prática[9],
não se pode atribuir ao provedor o dever de vigilância sobre o material que
hospeda ou que trafega em seu sistema. A responsabilidade dele nasce a partir
do momento em que toma conhecimento, por ato próprio ou por comunicação de
terceiro, da existência do material ilícito hospedado em seu sistema. Se não
toma qualquer providência, impedindo o acesso ao material pornográfico ou
cessando a transmissão das mensagens, ou ainda comunicando sua existência às
autoridades competentes, aí sim pode ser responsabilizado nas mesmas penas do
praticante originário do ato.

 

Notas:

[1] A
Lei 10.764 também modificou a estrutura e aumentou as penas de outros crimes,
tais como facilitação e envio de criança ou adolescente para o exterior (art.
239); emprego de criança ou adolescente em representação teatral, televisiva,
cinematográfica ou fotográfica (art. 240); venda ou fornecimento a menor de arma,
munição ou explosivo (art. 242); e venda a menor de produtos que possam causar
dependência física ou psíquica (art. 243).

[2]
Esses dados foram reproduzidos em artigo de Omar Kaminski (Pornografia infantil
– Projeto que inclui a Internet é votado na Câmara) publicado no site Consultor
Jurídico (www.conjur.com.br) ,
em 09.07.03.

[3] O
Dicionário Aurélio descreve pedofilia como a “parafilia representada por
desejo forte e repetido de práticas sexuais e de fantasias sexuais com crianças
pré-púberes; perversão sexual que visa a criança”.

[4]
Assim entendido o material visual que retrata crianças e adolescentes em
práticas libidinosas ou de cunho sexual explícito.

[5] A
redação do § 3º do substitutivo: “Para fins desta Lei, considera-se pornografia
qualquer representação, por qualquer meio, de criança ou adolescente no
desempenho de atividades sexuais explícitas reais ou simuladas ou qualquer
representação dos órgãos sexuais de uma criança para fins predominantemente
sexuais.” (NR)

[6] O texto pode ser encontrado em: http://www.politechbot.com/docs/cppa.text.html

[7]
Para completa informação sobre esse julgamento, sugerimos a leitura de artigo
anterior de nossa autoria – “A questão da Pornografia Infantil Virtual – A Lei dos EUA aue tentou
combater sua difusão” -, publicado no site Infojus – http://www.infojus.com.br/webnews/noticia.php?id_noticia=1816&

[8]
Para uma melhor compreensão dessa questão, sugerimos a leitura de artigo
anterior de nossa lavra – “Questões técnicas dificultam condenações por crimes
praticados na Internet” -, que pode ser encontrado em http://www.infojus.com.br/webnews/noticia.php?id_noticia=1955&  .
Ainda recomendamos a leitura de um outro – “O ‘PROTECT Act’ – a lei americana de proteção às crianças na Internet
(parte II)”, disponível em: http://www.infojus.com.br/webnews/noticia.php?id_noticia=1891&
.

[9] É
reconhecido que os provedores de acesso à Internet ou que atuam fornecendo
serviços de webhosting (hospedagem) não têm condições de fiscalizar o
conteúdo dos milhões de páginas que hospedam ou dos milhões de mensagens de e-mail
que trafegam diariamente em seu sistema.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Demócrito Reinaldo Filho

 

Magistrado em Pernambuco.

 


 

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Equipe Âmbito Jurídico

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