A sociedade contemporânea caracteriza-se por uma série de circunstâncias e facilidades para o consumo de bens e serviços. Os consumidores, por vezes, não conhecem todos os produtos que são postos à disposição. O desenvolvimento de mecanismos diferenciados para despertar a atenção dos consumidores potenciais tem sido uma tônica por parte dos fornecedores de bens e serviços.
Existem produtos que tem em essência uma tipologia muito parecida e atinge ao mesmo público alvo, o preço semelhante, a eficiência, a distribuição, a qualidade bem aceita, e por isso o mecanismo de diferenciação passa a ser a forma como este produto é posto no mercado consumidor. O método utilizado para colocar um produto no mercado passa a ser o fator determinante. A publicidade[1] a venda do produto, por vezes passa a ser secundária e o que é repassado ao consumidor é a idéia de uma brincadeira da qual ele fará parte e, ainda, levará consigo o produto desejado como um complemento, e não o fator que faz desencadear o consumo.
Este método faz despertar a criança que existe em cada um de nós, e que ainda é a melhor aliada dos produtores de bens e serviços, sendo assim os mecanismos para atingir a criança (para que ela inicie uma brincadeira ou deixe o seu estado de inércia), ainda é, em essência, o mesmo método que faz despertar os adultos para consumir. Havendo dois produtos muito próximos em qualidade, quantidade, reconhecimento da marca e preço, qual será o produto consumido, o que traz em si algo lúdico que possa despertar o interesse em consumir hoje e amanhã também, e assim, sucessivamente. Inicia-se uma brincadeira de consumo em que o consumidor passa a ter interesse não no produto em si, mais no que vem junto, a diversão a possibilidade de ganhar um prêmio, previamente definido, é o que, na realidade, o despertou para o consumo. A quantidade da aquisição dos bens e serviços ultrapassa a quantidade usualmente utilizada, pois a expectativa de receber um ganho extra faz o consumidor se comportar como o fornecedor quer: aumentando as vendas e o conhecimento do seu produto.
O efeito que produz esta forma de atrair os consumidores faz com que produtos muitas vezes, praticamente desconhecidos, ganhem uma projeção significativa, passando a ser parte da memória individual e coletiva de uma determinada comunidade, propagando-se no tempo e no espaço. Os efeitos são sentidos por um tempo que repercute de maneira a agir não só do indivíduo, mas atinge também a comunidade.
Processos dolosos e atrativos de consumo
A sociedade enfrenta vários momentos de transformação alternando-se em situações mais ou menos visualizáveis, na oportunidade que eles se desenrolam. A partir do momento em que os parâmetros de referência vão criando um sentimento de estagnação e imobilismo, surge a idéia que a transformação se realiza por obra do intangível do mágico[2]. O jogo[3] entra neste aspecto da mágica, da escolha por parte dos deuses[4] de alguns escolhidos que serão os presenteados em razão da sua sorte[5], que nada mais é do que o reconhecimento por parte do divino de algo que a brutalidade da sociedade[6] não confere o devido reconhecimento pessoal[7] .
O jogo traz em si a ilusão[8] de um reconhecimento, via sorte, de algo que a burocracia da engrenagem social[9] não confere oportunidade de reconhecer os verdadeiros dignos de retribuição[10]. A mágica está na correção do erro[11], pois os legítimos vencedores serão protegidos pelo elemento lúdico a sorte que pode também trazer em si um fator de acomodação e expectativa. Acomodação, porque as pessoas não mais precisam lutar para conquistar, mas apostar para ganhar. A expectativa e a adrenalina passam a ser o motor, e as pessoas deixam de atuar, de ter atitude para serem presenteadas e reconhecidas por razões que a própria razão desconhece, a álea. E sob esta expectativa perdem, mas esperando ganhar um prêmio, mesmo que pequeno aqui e agora. A perda não é computada, só o ganho, mesmo que potencial e não-real. O elemento mágico faz parte da nova forma de captar consumidores. A sociedade atual tem sido posta à prova no que se refere as novas formas para seduzir[12] o público consumidor.
As novas maneiras criadas para incentivar o consumo de bens e serviços enfrentam, a cada momento, um novo desafio. O elemento lúdico e o uso do jogo para brincar, incentivar o consumo e presentear aquele que se dispõe a consumir, têm sido uma prática da sociedade contemporânea. O consumo passa a ser um presente que o consumidor se permite e se está pratica vier conjugada com uma brincadeira e a oportunidade de um ganho extra inesperado e potencial, melhor. Pode inclusive ocorrer que o ganho seja visível e palpável, verificável a qualquer um que se disponha a participar da brincadeira.
A magia está na venda de uma ilusão existente no complexo contido em cada ser e a tendência para que um fator irreal, mais potencialmente possível, possa lhe conferir algo que o cotidiano não lhe permite viver. A idéia de algo atingível sem esforço e dedicação compreende o trabalhar a carência da pessoa que, excluída de muitas esferas de relações ou situações, em seu imaginário, só se sentirá incluída se determinado poder econômico lhe permitir atingir. O consumidor deste tipo de meio publicitário passar a construir uma inversão de valores, em que o material poderia lhe preencher o que afetivamente lhe falta, a sensação de ser escolhido e protegido por algo desconhecido, não aferível e verificável. A sorte e a proteção dos deuses, como referem os jogadores, que correm o risco para sentirem a recompensa potencial que faz arriscarem para experimentar mesmo por um breve momento que serão protegidos e escolhidos, entre tantos, para assim ocultarem o sentimento de vazio objeto de tormento há tanto tempo. Via de regra, após uma campanha publicitária, em seguida vem outra e mais outra envolvendo, constantemente, o consumidor em um permanente cultivo da relação fornecedor consumidor.
Nas lendas, verifica-se, muitas vezes, que a magia se cai sobre o feiticeiro, e assim a busca de preenchimento do vazio da maneira fácil e sem um investimento de curto, médio e longo prazo faz causar no pretendente ao uso da magia um prejuízo verificável economicamente e na sua psique, pois, em regra, muitos são os perdedores e poucos os vencedores. O ganho real, sem sombra de dúvidas, reside na maneira de cativar, atrair e seduzir o publico consumidor que nem percebe ou sente a perda econômica e de expectativas, e ainda a compreende como uma diversão descomprometida e sem maiores conseqüências.
A busca incessante de uma recompensa facilitada não é questionada nem discutida, tanto que se cria um contingente de programas hoje chamados de fidelidade, em que o consumidor fiel passa a receber vantagem para consumir sempre o produto de uma certa empresa fornecedora de bens e serviços. Fiel é o consumidor que repetidas vezes busca usar os mesmos fornecedores de bens e serviços e com isso recebe um brinde, um prêmio. Isso ocorre em cinemas, postos de gasolina, vendas de passagens aéreas, aquisição de seguro, e em tantos outros estabelecimentos. A prática de bônus, jogos, sorteios, descontos vinculados a consumo em determinados patamares, descontos especiais em determinados estabelecimentos enfim todas estas técnicas e mecanismos fazem parte de um mesmo raciocínio o comprometimento do consumidor numa conta previamente aferível que atinge os patamares desejáveis pelos fornecedores de bens e serviços.
Dignidade de pessoa humana para a ordem jurídica brasileira
A importância que a sociedade confere à dignidade da pessoa humana nas relações pessoais, privadas e de maneira mais ampla como o macrossistema da cultura social e jurídica enfrentando a sua repercussão concreta e efetiva, está imbricada com a potencialidade que se atribui à capacitação de quem compõe, em última análise, a sociedade. Desta forma, quanto mais protegida a dignidade da pessoa humana mais desenvolvida, culturalmente, a sociedade e mais próxima de uma realização efetiva das possibilidades de seus formadores. Uma sociedade que não perquire, não discute e não confere possibilidades para uma ampliada discussão social e jurídica da importância da pessoa em sua plenitude, e, por assim dizer, integral na perspectiva física e psíquica, deixa de cumprir o seu principal papel: o desenvolvimento integral da pessoa. Razão pela qual se faz indispensável partir do ponto de vista da obra desenvolvida pelo pensamento do filósofo alemão Immanuel Kant que compreende que só aos seres racionais foi conferida a faculdade de se guiar por princípios, refere o autor:
“tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isso é, segundo princípios, ou; só ele tem uma vontade. Como para derivar as acções das leis é necessária a razão a vontade não é outra coisa senão razão prática. Se a razão determina infalivelmente a vontade, as acções de um tal ser, que são conhecidas como objectivamente necessárias, são também subjectivamente necessárias, isso é, a vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, que dizer, como bom”. [13]
Na perspectiva de Immanuel Kant, ao longo de sua obra, pode ser esclarecida a amplitude do papel do ser por meio do seu ato de vontade apontando assim os seus contornos :
“a vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais, e a liberdade seria a propriedade desta causalidade, pela qual ela pode ser eficiente, independentemente de causas estranhas que a determinem; assim como necessidade natural é a propriedade da causalidade de todos os seres irracionais de serem determinados à atividade pela influência de causas estranhas.” [14]
Compreender a dignidade da pessoa humana envolve uma séria discussão no campo das idéias na esfera jurídica constitucional e no campo de todas as relações na esfera do direito infraconstitucional inclusive, além de outras repercussões de pleno desenvolvimento da pessoa na perspectiva física, emocional, intelectual, psíquica e afetiva, porém este estudo não tem esta dimensão e permite-se deixar de enfrentá-la.
Todavia, cabe ponderar que o Código Civil Brasileiro, fruto do projeto coordenado por Miguel Reale poderia ter avançado nesta matéria, provavelmente a melhor opção seria o emprego de uma cláusula geral do direito de personalidade, como procedeu relativamente a um dos seus aspectos, qual seja, o direito ao resguardo da vida privada. Conforme Judith Martins-Costa:
“Poderia assim criar uma ponte com o princípio constitucional da dignidade da pessoa e com os direitos constitucionais sociais, também atinentes às dimensões da personalidade, sendo indiscutível que a atual ênfase numa esfera de valores existenciais da pessoa deve-se, entre outros fatores, à compreensão do papel desempenhado pelos princípios constitucionais no Direito Civil. Estes, para além de constituírem normas jurídicas atuantes nas relações de direito Público, têm incidência especial em todo o ordenamento e, nesta perspectiva, também no direito Civil, disciplina das relações jurídicas travadas entre os particulares entre si.”[15]
O Código Civil de 2002, cuidou da indenização em razão da indevida utilização da imagem[16], porém perdeu a oportunidade para proteger também na perspectiva preventiva. Refere Martins-Costa: “Uma efetiva tutela da imagem é absolutamente necessária num tempo em que a indústria do marketing conduz à decisão de valores do pudor pessoal e da intimidade, em que o totalitarismo das empresas de comunicação tudo transforma em matéria de sua ganância.”[17] Nesta situação uma cláusula geral de proteção à imagem, juntamente com a norma do art. 21 e outra relativa ao direito geral de personalidade por certo encenariam maior flexibilidade e permeabilidade conferidas as relações civis e aos valores constitucionais fundamentais[18]. Conforme Miguel Reale denominou de “valor-fonte” do ordenamento, qual seja, a pessoa humana, considerada em sua dignidade, mas projetando para a fácil construção e desenvolvimento jurisprudencial de novas hipóteses que não se restringe ao reconhecimento dos tradicionais atributos, como a honra, o nome, a imagem, a intimidade e a vida privada, mas tem alargadas possibilidade de contínua expansão.[19]
Na elaboração da lei que resultou no código civil, percebe-se uma inédita proteção à tutela da vida da pessoa natural e ampliação via cláusula geral as atribuições do juiz que adotará as medidas e providências que julgar necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário à inviolabilidade dos direitos da pessoa natural.[20] Com esta possibilidade se enfrentará a seguir a dignidade humana atingida na sua auto-estima por técnicas novas de captar consumidores.
Dignidade da pessoa humana afrontada pelas técnicas de captar consumidores
Na perspectiva de popularizar bens e serviços, os fornecedores lançam mão de uma linguagem diversificada, por vezes, agressiva, que fere a auto-estima dos consumidores e em outros momentos lúdica, disfarçada e dissimulada. Ferir a auto estima ou tratar o consumidor sem os devidos cuidados que a pessoa humana merece como a dignidade, infelizmente, tem sido a tônica da maior parte dos mecanismos de divulgação de produtos ou serviços, que imaginam ser o ícone da beleza, perfeição e sucesso a repetição de alguns modelos, o padrão a ser buscado a qualquer preço por todos. A perda da individualidade e das características pessoais tem sido, por vezes, a marca.
A ânsia de consumir um determinado bem contribui, definitivamente, para alcançar objetivos impossíveis para uma pessoa normal, comum, pois apenas os escolhidos que fazem parte de um pequeno grupo podem ascender ou permanecer em um reduto destinado aos melhores. Inclusive a idéia de pagar, várias vezes, o preço de uma mercadoria de qualidade similar e que atende à mesma finalidade passa a ser mais um requisito para o protótipo de maioral-idiota.
A idéia de ganho fácil e imediato é outra maneira de contagiar o grande público. Compre um bem, brinque e concorra a um prêmio mil vezes maior do que o valor desembolsado para realizar todos os seus desejos, porque a sociedade em que vivemos é dura demais e por meio dos mecanismos já conhecidos você estará sempre a margem dos bens e serviços que só os seres especiais merecem. A correção deste desarranjo só é possível ser desfeita pela sorte, pela mão oculta do destino, da qual o abençoado só poderá desfrutar se tomar uma atitude positiva, qual seja, consumir. Dar oportunidade ao seu destino, e atingir o sucesso não pelo mérito, mas pelo atalho: a sorte.
Não se trata apenas de ver a pessoa do consumidor como um incapaz[21], mas como um débil que participa do circo que o envolve tornando-o palhaço que compra a caneta do sucesso, o carro do ano, a bolsa da moda, o cigarro do machão, o perfume da sedutora, o apartamento no prédio com nome estrangeiro no bairro que é alto, ou tem nome estrangeiro. A sociedade banaliza, a cultura branca torna tudo uniforme. A diversidade cultural, que é a riqueza do nosso país, passa a ser desprezada. Não se explora o singular, a cultura do diferente, pois esta parece pôr em risco o padrão branco de sucesso. Todas as etnias passam a ter os mesmos objetivos de consumo e para realizar os desejos uniformes e construir o reino do céu na terra[22] só há uma forma uma loteria, uma prêmio mágico.
É o uso deste interior bruto, que muitas vezes não chega a ser desvelado conscientemente por muitas pessoas, que faz o jogo iniciar onde o fornecedor finge jogar e o consumidor desavisado joga só, sem um par, e entra no circo montado onde o seu desejo interior de ser um ser singular e diferente se evapora. O consumidor cria a expectativa da realização de um sonho se tiver sorte no jogo. O fornecedor atinge seu objetivo de ampliar os consumidores, não há álea, só lucro, pois a campanha publicitária amplia os horizontes da marca, do produto, do consumo e o público consumidor joga um jogo de cartas marcadas.
Neste misterioso jogo de consumo todos parecem ter os mesmos objetivos de consumo homens, mulheres brancos, negros índios, crianças, jovens e idosos. Cria-se um padrão de sucesso que a pessoa só atingirá se adquirir determinados bens de consumo e fruir de determinados serviços. O padrão de bem-estar e de felicidade é vendido em pílulas por um grupo de informações que chegam por todos os veículos de comunicação. A busca do bem-estar e da felicidade passa sempre pelo verbo comprar. As palavras aconchego e compartilhar vêm ligadas e associadas sempre a um adquirir necessário. A relação que os seres humanos desenvolvem com os objetos é muito peculiar, e esse fenômeno decorre da chamada aprendizagem associativa, segundo Dichter que explica assim:
“…qualquer objeto possuído funciona de certa forma como uma extensão do nosso poder pessoal. Serve portanto para nos fazer sentir mais fortes, compensando até certo ponto o sentimento de inferioriedade que temos diante do mundo que nos ameaça… Agarramo-nos a eles como se fossem expressões tangíveis de nossa coragem, pois ajudam a nos fazer sentir que a base da nossa existência é algo mais do que o estreito andaime da nossa interioridade nua. Quando você vê uma criança agarrar-se a um pedaço de pano ou a uma boneca com toda força você pode começar a entender o poder da posse.”[23]
A sociedade atual inova, rapidamente, em técnicas nas mais diversas áreas tecnológicas, e esse avanço ou mera alteração de técnica só é passível de chegar ao conhecimento do grande público consumidor frente a uma série de técnicas diferentes de divulgação. Os serviços e produtos passam a ser oferecidos das mais diversas maneiras. Preocupado com isso o código de defesa do consumidor inovou e até retomou institutos conhecidos pela história do direito, como a culpa in contrahendo[24], o princípio da boa-fé e a tutela da confiança.
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