Sumário: 1. Afetividade e estado de filiação: adoção de fato. 2.Adoção póstuma. 3. Reconhecimento da adoção de fato após a morte do adotante. Considerações finais. Referências bibliográficas.
Resumo: A presente pesquisa trata da possibilidade do reconhecimento da adoção de fato após a morte do adotante. Tem por escopo demonstrar a importância do tema e a sua viabilidade, não obstante a falta de previsão legal acerca da situação fática. Para tal, leva em consideração a demonstração do estado de família das partes e não a mera declaração de vontade em juízo. O estudo em tela foi pautado em fontes bibliográficas, tais como livros, artigos publicados em meio digital e jurisprudência.
Palavras-chave: Adoção – Adoção de fato – Adoção póstuma – Direito de Família – Sucessão.
INTRODUÇÃO
Ainda com a evolução do instituto da adoção ao longo dos anos na legislação e nos costumes brasileiros, não há uma cultura voltada para o verdadeiro intuito da adoção, que é atender aos interesses daquele que não tem o amparo da família biológica. É comum que se procure recém nascidos e crianças que se pareçam fisicamente com aqueles que assumirão o estado de ascendentes do adotado. Algumas pessoas ainda procuram suprir a impossibilidade de, biologicamente, serem pais, esquecendo que a adoção é ato supremo de demonstração de amor e liberalidade, onde o que se terá em troca é amor incondicional. E para isso, não importa se o adotado tem um ou dez anos, é loiro ou negro, tem olhos claros ou não. Basta apenas que se adote e que se ame. Ainda, a morosidade do judiciário e a obediência à lista de habilitação para adotar fazem com que muitas crianças percam a oportunidade de crescerem no seio de uma família, haja vista o fato de ainda haver grande preconceito em relação à idade. Pecou o legislador ao pouco mencionar sobre a adoção póstuma, uma vez que não há idade ou tempo para ser reconhecido como filho e para ser amado e amparado.
1. Afetividade e estado de filiação: adoção de fato.
A adoção de fato pode ser entendida como aquela em que há a posse do estado de filiação, mas não há regularização, juridicamente falando, de tal situação. Há os laços afetivos que unem pais e filhos, imitando a família natural, tal como aludem os juristas que deve ser a adoção. As partes assumem, na relação afetiva, estado de ascendente e descendente de primeiro grau, um em relação ao outro, mas sem documentos que atestem o parentesco. O indivíduo é, factualmente, inserido no seio familiar. Acerca do tema, expõe o Dr. Paulo Luiz Netto Lôbo:
“A posse do estado de filiação constitui-se quando alguém assume o papel de filho em face daquele ou daqueles que assumem os papéis ou lugares de pai ou mãe ou de pais, tendo ou não entre si vínculos biológicos. A posse de estado é a exteriorização da convivência familiar e da afetividade, (…) devendo ser contínua.”[1]
Do exposto, conclui-se que não se pode negar a parentalidade quando, aos olhos da sociedade, alguém assume o papel de pai de um indivíduo. Tal vínculo não pode ser transitório. Se a adoção é irrevogável, não se poderia comparar uma situação de fato a uma jurídica se não houvesse semelhança entre estas. O fato de alguém se declarar pai e, no dissabor de um momento, simplesmente escusar-se das responsabilidades que voluntariamente assumiu, não faz do indivíduo “alguém que um dia foi pai”. A vinculação, ainda que na ausência de sentença que declare a adoção, há de constituir-se em uma verdade social. Ensaia o magistrado Lourival Souza:
“A figura do filho de criação sempre esteve presente em nossa cultura e em nossas famílias. O termo ‘criação’ desponta aqui como afeição, adoção, aceitação, sustento e guarda. Pode ser um parente distante ou o filho da empregada de confiança, ou um órfão, o filho da comadre, de um amigo pobre, de qualquer origem, enfim. Basta que se faça a opção de criar e ele será ungido com os cuidados de um filho. Ao longo do tempo, principalmente em se tratando de uma comunidade interiorana, esse filho passa a ser conhecido na cidade inteira, podendo até receber um apelido que o identifique com o seu pai ou com sua mãe, como José de Maurício, Maria de Creuza, ou qualquer outro indicativo da família que o abriga. Em casa, ele recebe todo o afeto que é dedicado aos filhos consangüíneos como amor, assistência material, lazer, tudo. (…) O mais importante é que os pais adotivos, que fizeram livremente a opção de receber esse filho, mantenham tal vínculo até a morte. Se o tratamento que é dispensado ao filho consangüíneo é o mesmo dado ao seu irmão de criação, não há como negar essa relação filial e admitir as suas conseqüências, notadamente sob a perspectiva da igualdade constitucional”.[2]
Para que a situação de fato possa ser reconhecida como realidade socioafetiva, além da continuidade, deve haver publicidade, já que não basta apenas intitular-se pai, mas é necessário como tal agir aos olhos da sociedade; e ausência de equívoco, não deixando margem às dúvidas quanto ao papel assumido. Desta feita, resta ao de fato adotado apenas a condição jurídica de filho, advinda de um eventual processo de adoção.
Somando-se à intenção dos envolvidos na relação de afeto, especialmente no que tange ao intento do adotante com relação ao adotado, na adoção de fato se fazem presentes amor, responsabilidade, cuidado, reciprocidade de afeto, compatibilidade emocional e tantos outros sentimentos e fatores que não cabem ao legislador prever ou medir, pois vão além do que cabe ao Direito analisar.[3] Negligenciar o afeto de tais relações não é apenas negar direitos, mas também a existência de fatos; pode-se afirmar que é negar a própria realidade brasileira.
2.Adoção póstuma.
De acordo com a legislação pátria, póstuma denomina-se a adoção na qual, antes de efetivada, ou seja, antes de prolatada a sentença constitutiva, falece o adotante no curso do processo. Para tanto, exige a lei que o adotante tenha em vida inequivocamente manifestado a vontade de adotar, bem como é necessário que preencha os requisitos necessários para que possa ser deferida a adoção.[4] Os dispositivos anteriores referentes ao instituto da adoção não mencionavam a adoção póstuma, não podendo ser deferida a adoção a quem não estivesse vivo.
A capacidade jurídica finda com a morte da pessoa natural. Falecendo o sujeito de direito no curso de um processo, abre-se o incidente de habilitação, nos termos do Art. 1.060 do Código de Processo Civil vigente.[5] Numa situação diversa, deveria o processo ser extinto. No caso da adoção, o direito é personalíssimo, indisponível e imprescritível, permanecendo o de cujus como titular da ação. Deverá o processo correr normalmente até a sentença definitiva, pois o requisito essencial para assegurar a adoção póstuma já foi concretizado, ou seja, a manifestação da vontade de adotar já foi concedida pelo de cujus no início do processo. Não há previsão legal no sentido de iniciar-se o processo de adoção após a morte do adotante que não tenha, em juízo, declarado sua vontade no sentido de efetivar a adoção, pois não estaria presente, de acordo com o legislador brasileiro, o requisito “declaração de vontade” exigido para deferimento do pedido de adoção.
Excepcionalmente, no caso de adoção póstuma, os efeitos do instituto não passam a valer quando da sentença proferida, mas retroagem à data do falecimento do adotante, já que esta é a data da abertura da sucessão. Se não acontecesse, o filho adotado não seria herdeiro necessário e não concorreria à herança, caso em que o preceito constitucional que veda distinção entre filhos restaria desrespeitado, e não se apresentariam, em tal relação, os efeitos da adoção, que tornam adotante e adotado herdeiros necessários recíprocos. Mas só há retroatividade efetiva após o trânsito em julgado da sentença.
O legislador pátrio não faz menção à hipótese de o adotando morrer no curso do processo. Por interpretação análoga, deve ser reconhecida a adoção, respeitando-se o direito à filiação e tornando o adotante herdeiro do adotado, tal qual determina a lei, no que tange à reciprocidade dos direitos sucessórios.
3. Reconhecimento da adoção de fato após a morte do adotante.
José Luiz Mônaco da Silva, em artigo sobre o assunto, expõe sua opinião a respeito de que a doutrina e o julgador não devem considerar apenas o processo de deferimento da adoção propriamente dito, mas qualquer que seja o procedimento e, principalmente, a declaração, em vida, do desejo de adotar. Exemplifica o jurista:
“Imaginemos, por hipótese, a seguinte situação: A e B, casados entre si há mais
de 25 anos, ele com 47 anos, ela com 46, têm a guarda, apenas de fato, de um garoto
de 7 anos, órfão de pai e mãe. O menino é tratado como se fosse filho do casal; por
diversas vezes, em conversas com parentes e vizinhos, os guardiões manifestaram – de forma inequívoca – o desejo de adotá-lo. O varão, aliás, contratou seguro de vida e instituiu como beneficiários a mulher e o menor; ademais, inscreveu o infante como seu dependente perante o órgão previdenciário; os filhos biológicos do casal, já maiores, têm pleno conhecimento da pretensão dos pais. Entretanto, quando o casal se encontra na iminência de formalizar o pedido de adoção, o varão vem a falecer em acidente automobilístico. A viúva, então, ingressa com pedido de adoção em nome dela, pleiteando, quanto ao falecido, a aplicação do disposto no art. 42, § 2º, do ECA. Ora, seria justo indeferir essa adoção, acalentada há anos pelo casal, só porque o varão não chegou a formalizar o pedido em juízo? Responde-se com um sonoro não. Com efeito, uma terrível injustiça seria praticada caso a adoção, na hipótese aventada, não pudesse contar com o amparo do Poder Judiciário. Apenas a viúva teria seu nome grafado do novo assento de nascimento do menor (art. 47, § 1º, do ECA), em substituição ao assento cancelado, como se o adotado fosse filho de mãe solteira”.[6]
Depreende-se da opinião do jurista supramencionado que deve prevalecer a total proteção ao menor apregoada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, devendo o Poder Público levar em consideração os quesitos fáticos mais que os jurídicos, visando os interesses do adotando e respeitando a vontade, ainda que não formalmente declarada, nos termos da lei, do de cujus. Liborni Siqueira, acerca da polêmica, afirma que deverá haver certa elasticidade na interpretação visando a proteção integral, valendo como fundamento para deferir o pedido: documentos e testemunhas, entre outros.[7]
Das opiniões analisadas, resta saber que o mais significativo não é a declaração de vontade perante o Judiciário, mas sim a inequívoca manifestação ante os fatos e à sociedade, que deve ser comprovada nos autos do processo de reconhecimento da adoção fática. Em consonância, decidiu o Superior Tribunal de Justiça pelo deferimento da adoção póstuma, mesmo sem haver declaração de vontade perante órgão judicante antes do falecimento do adotante. In verbis:
“Ementa – Adoção póstuma. prova inequívoca. – O reconhecimento da filiação na certidão de batismo, a que se conjugam outros elementos de prova, demonstra a inequívoca intenção de adotar, o que pode ser declarado ainda que ao tempo da morte não tenha tido início o procedimento para a formalização da adoção. – Procedência da ação proposta pela mulher para que fosse decretada em nome dela e do marido pré-morto a adoção de menino criado pelo casal desde os primeiros dias de vida. – Interpretação extensiva do art. 42, § 5º, do ECA. – Recurso conhecido e provido.”[8]
A Promotora de Justiça Marlusse Pestana Daher denomina esta situação de adoção nuncupativa.[9] Nuncupativo, de acordo com o Dicionário Houaiss, significa “feito oralmente e não por escrito; nomeado oralmente (diz-se de herdeiro); que é só de nome, não real, nominal”.[10] Aduz-se, do vernáculo, que é a adoção nuncupativa aquela oralmente declarada, sem respaldo jurídico. Pode ser considerada uma relação de fato na qual um indivíduo toma, por espontânea vontade, outro como seu herdeiro e assim o trata durante toda a vida. A Promotora Daher compara-a tanto ao casamento nuncupativo quanto à união estável, nestes termos:
– Quem nuncupativamente convola núpcias, transforma em seu herdeiro necessário aquele que aceita como cônjuge, ainda sem o fazê-lo perante autoridade judiciária; [11]
– Se assumir o estado de família de cônjuge perante a sociedade, sem que tal união seja registrada em cartório competente, faz do convivente herdeiro, assumir o estado de ascendente e de descendente, ainda que não reconhecida pelo judiciário como determina a lei, deveria fazer daqueles que figuram tal situação fática, herdeiros necessários recíprocos.[12]
Eis, ipsi literis, a opinião da jurista:
“Se pelas características e pela semelhança com a prestação da reverência recíproca devida e cumprimento dos deveres de respeito e fidelidade mútua erigiram a união estável à condição de entidade familiar, será sua correspondente na relação entre pais e filhos a reconhecer entre estes o vínculo parental. Adota nuncupativamente quem no exercício pleno de sua capacidade de decidir, mediante qualquer forma, declara ser pai de uma criança socialmente reconhecida como seu filho.”[13]
Se a legislação admite que o casamento, um dos atos mais solenes do direito, se perfaça pela simples assunção do estado marital, sem que documentação jurídica haja dessa união, é uma insensatez não reconhecer que um laço tão ou ainda mais forte que o amor entre um casal não possa da mesma forma ser demonstrado e consolidado ante a sociedade e o Sistema Judiciário.
Se a adoção é instituto revestido de irrevogabilidade, não cabe ao Estado ou ao legislador revogar os laços de afeto da situação fática. A ação de adoção ajuizada após o falecimento do adotante pode e deve prosperar se as provas produzidas nos autos atestarem o estado de parentesco assumido.
Considerações finais.
A adoção é o vínculo jurídico que confere parentesco civil entre as partes. Vem a ser modalidade artificial de filiação, que busca imitar a filiação biológica. Acarreta conseqüências de ordem pessoal, afetiva e patrimonial. Integra totalmente o filho adotivo à família substituta, inclusive conferindo direitos sucessórios recíprocos entre as partes.
O instituto da adoção passou a elencar a legislação pátria tão somente no ano de 1916, passando por mudanças legais e culturais até os dias presentes. O grande marco foi a promulgação da Constituição Federal de 1988, que reconheceu os vários tipos de entidades familiares e tornou iguais, perante a lei, os filhos, sejam eles adotados ou não. Atualmente, o instituto está regulado tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente como no Código Civil. A Constituição Federal faz referência aos laços adotivos, mas não disciplina o instituto. A Carta Magna brasileira veda quaisquer distinções aos filhos, sendo todos eles iguais aos olhos da lei e, principalmente, assim considerando-os a Lei Maior aos olhos do coração.
É dever da família e do Estado atender às designações legais e prover o total protecionismo reservado às crianças e aos adolescentes. A adoção é o laço jurídico que substitui o consangüíneo da relação de filiação. O afeto é mais forte e duradouro do que a juridicidade atribuída às relações de filiação advindas de uma sentença constitutiva.
Pode não haver em curso processo de adoção, mas pode haver o pedido de guarda judicial, tutela ou curatela, que deveria a lei entender como procedimento bastante, estando presentes os outros requisitos, para que fosse reconhecida a adoção póstuma.
Os efeitos da adoção, no caso do reconhecimento póstumo, retroagem à data do falecimento do adotante, uma vez que esta é a data da abertura da sucessão e o adotado é herdeiro necessário do adotante. Só há retroatividade efetiva quando do trânsito em julgado da sentença que reconhece a adoção.
Nuncupativa é a adoção feita oralmente, sem respaldo jurídico. De fato, há a adoção, mas esta não existe no mundo jurídico até que seu reconhecimento seja postulado em juízo. A figura da adoção de fato sempre esteve presente na cultura brasileira. Quando alguém diz que “criou uma pessoa”, está afirmando que assumiu a paternidade daquele indivíduo.
São pressupostos para o reconhecimento jurídico da situação de fato: a continuidade, a publicidade e a sócioafetividade. Ao se deparar com um pedido de reconhecimento póstumo de uma adoção de fato, deve o julgador levar em conta os fins sociais a que se destina a lei, e lembrar sempre que os interesses do adotado devem prevalecer, visando o seu bem-estar.
Não cabe à lei julgar ou menosprezar o afeto cultivado por toda uma vida. Se a própria Lei Fundamental declarou que não há distinções entre os filhos, nenhum outro Diploma Legal pode fazê-lo, pela ausência de reconhecimento legal da relação, se está presente a verdadeira paternidade. Filho é aquele que nasce do coração.
Bacharela em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2007); Escrivã da Polícia Civil do Estado de Pernambuco; Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Cândido Mendes (RJ); pós-graduanda em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Gama Filho (RJ); pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal Militar pela Universidade Cândido Mendes (RJ); graduanda em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7399915688574739
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