Histórico
Este estudo discute a valoração da pessoa portadora de deficiência e a sua inserção no mercado de trabalho, buscando perquerir, sob o aspecto histórico e legislativo, acerca das posições sociais que o cidadão portador de deficiência vem ocupando nos diversos grupos humanos ao longo do tempo.
O repúdio preconceituoso ou a segregação caridosa vem cedendo passo à compreensão de que a limitação para o trabalho não se constitui como um estigma intransponível, mas, ao contrário, como um aspecto meramente instrumental, cuja superação é mister que se faça por meio da ação social e estatal.
Deve a sociedade propiciar prioritariamente os meios aptos a inserir o portador de deficiência no convívio social, valorizando o seu trabalho e as suas qualidades pessoais.
Trataremos da evolução histórica do assunto e da legislação brasileira, que progrediu da visão meramente assistencial do problema, para o compromisso institucional de habilitar e reabilitar o portador de deficiência para o trabalho.
Na antiguidade remota e entre os povos primitivos, o tratamento destinado aos portadores de deficiência assumiu dois aspectos básicos: alguns os exterminavam, por considerá-los grave empecilho à sobrevivência do grupo e, outros, os protegiam e sustentavam para buscar a simpatia dos Deuses, ou como gratidão pelos esforços dos que se mutilaram na guerra.
Exemplo dos povos avessos aos deficientes, são os Sirionos (antigos habitantes das selvas da Bolívia), que por suas características de povo semi-nômade não se podiam dar “o luxo” de transportar doentes e deficientes, abandonando-os à própria sorte e os Balis nativos da Indonésia), que eram impedidos de manter contatos amorosos com pessoas muito diferentes do normal. Os astecas também segregavam, em campos semelhantes a jardins zoológicos, os deficientes, por ordem de Montezuma, para que fossem ridicularizados.
Os hebreus, viam na deficiência física, ou sensorial, uma espécie de punição de Deus e impediam qualquer portador de deficiência de ter acesso à direção dos serviços religiosos.
A Lei das XII Tábuas, na Roma antiga, autorizava os patriarcas a matar seus filhos defeituosos, o mesmo ocorrendo em Esparta, onde os recém-nascidos, frágeis ou deficientes, eram lançados do alto do Taigeto (abismo de mais de 2.400 metros de altitude, próximo de Esparta).
Há, como dizíamos, exemplos opostos, de povos que sempre cuidaram de seus deficientes, ou outros que evoluindo moral e socialmente, mudaram de conduta.
Os hindus, ao contrário dos hebreus, sempre consideraram os cegos, pessoas de sensibilidade interior mais aguçada, justamente pela falta da visão, e estimulavam o ingresso dos deficientes visuais nas funções religiosas.
Os atenienses, por influência de Aristóteles, protegiam seus doentes e os deficientes, sustentando-os, até mesmo por meio de sistema semelhante à Previdência Social, em que todos contribuiam para a manutenção dos heróis de guerra e de suas famílias. Assim também agiam os romanos do tempo do império, quiçá, por influência ateniense. Discutiam, estes dois povos, se a conduta adequada seria a assistencial, ou a readaptação destes deficientes para o trabalho que lhes fosse apropriado.
Um exemplo mitológico da concepção anti-assistencialista e profissionalizante é a figura de Hefesto, que na obra “Ilíadas” de Homero, se apresentava como detentor de grande habilidade em metalurgia e em artes marciais, a despeito de sua deficiência nos membros inferiores.
Durante a Idade Média, já sob a influência do cristianismo, os senhores feudais amparavam os deficientes e os doentes, em casas de assistência por eles mantidas.
Progressivamente, no entanto, com a perda de influência do feudalismo, veio à tona a idéia de que os portadores de deficiência deveriam ser engajados no sistema de produção, ou assistidos pela sociedade, que contribuia compulsoriamente para tanto. Em 1723, na Inglaterra, fundou-se a Work House, que se destinava a proporcionar trabalho aos deficientes, mas foi ocupada pelos pobres que alijaram os primeiros daquele programa.
Na França, institui‑se, em 1547, por Henrique II, assistência social obrigatória para amparar deficientes, por meio de coletas de taxas.
Mas foi com o Renascimento que a visão assistencialista cedeu lugar, definitivamente, à postura profissionalizante e integrativa das pessoas portadoras de deficiência. A maneira científica da percepção da realidade daquela época derrubou o piegas estigma social que influenciava o tratamento para com as pessoas portadoras de deficiência e a busca racional da sua integração se fez por várias leis que passaram a ser promulgadas.
Na Idade Moderna (a partir de 1789), vários inventos se forjaram com intuito de propiciar meios de trabalho e locomoção aos portadores de deficiência, tais como a cadeira de rodas, bengalas, bastões, muletas, coletes, próteses, macas, veículos adaptados, camas móveis e etc.
O Código Braile foi criado por Louis Braile e propiciou a perfeita integração dos deficientes visuais ao mundo da linguagem escrita.
São exemplos de portadores de deficiência que se destacaram ao longo da história recente, apesar de seus limites físicos ou sensoriais, justamente superando-os e demonstrando a adaptabilidade humana às adversidades, desde que se viabilizem meios para tanto o compositor Ludwig Van Beethoven, que tinha impedimentos no sistema auditivo, o escritor português cego, Antonio Feliciano de Castilho, o escultor brasileiro, Antônio Francisco Lisboa (Aleijadinho), Lord Byron, grande poeta e herói da guerra de libertação da Grécia e Helen Keller, nos Estados Unidos.
O despertar da atenção para a questão da habilitação e da reabilitação do portador de deficiência para o trabalho, aguçou-se a partir da Revolução Industrial, quando as guerras, epidemias e anomalias genéticas, deixaram de ser as causas únicas das deficiências e o trabalho em condições precárias passou a ocasionar os acidentes mutiladores e as doenças profissionais, sendo necessária a própria criação do Direito do Trabalho e um sistema eficiente de Seguridade Social, com atividades assistenciais, previdenciárias e de atendimento da saúde, bem como a reabilitação dos acidentados.
Fundaram-se organismos nacionais de apoio a portadores de deficiência, nos séculos XIX e XX, entre os quais o Relief of Ruptured and Criplled , atual Hospital de Manhattan, Society and Home for Cripples, na Dinamarca.
A OIT destinou ao assunto duas Recomendações (n1 99 de 1955 e n1 168 de 1983) e uma Convenção ( n1 159 de 1983).
Conceito de pessoa portadora de deficiência para os efeitos do Direito do Trabalho
A Convenção da OIT n1 159, de 1983, ratificada pelo Brasil através do Decreto Legislativo n1 51, de 28 de agosto de 1989 conceitua o portador de deficiencia no art. 11, da seguinte forma: “Para efeitos da presente Convenção, entende-se por ‘pessoa deficiente’ todo indivíduo cujas possibilidades de obter e conservar um emprego adequado e de progredir no mesmo fiquem substancialmente reduzidas devido a uma deficiência de caráter físico ou mental devidamente reconhecida”.
O conceito em questão ressalta o caráter funcional das deficiências físicas ou sensoriais, estabelecendo a Convenção o dever dos países signatários de se engajarem em atividades de integração e de fornecerem instrumentos que viabilizem o exercício das atividades profissionais para as pessoas que deles necessitem.
A legislação brasileira atual e o trabalho do portador de deficiência
A Constituição de 1988, é a primeira Carta Constitucional que enfatiza, sobremaneira, a tutela da pessoa portadora de deficiência no trabalho. O art. 71, inciso XXXI, preceitua: “proibição de qualquer discriminação no tocante a salário ou critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência”. Este dispositivo é de vital importância, como se vê, pois a nação brasileira assume o compromisso de admitir o portador de deficiência como trabalhador, desde que sua limitação física não seja incompatível com as atividades profissionais disponíveis.
O art. 37, inciso VIII, também da Constituição Federal, determina que: “A lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”.
Na esfera privada, também se institui a obrigatoriedade de reserva de postos a portadores de deficiência. A Lei n1 8.213/91, fixa os seguintes percentuais: “A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção:
-até 200 empregados ………2%
-de 201 a 500 empregados ….3%
-de 501 a 1.000…………..4%
-de 1001 em diante ……….5%
A Lei n1 8.112, neste diapasão, impõe que a União reserve, em seus concursos, até 20% das vagas a portadores de deficiências, havendo iniciativas semelhantes nos Estatutos Estaduais e Municipais, para o regime dos servidores públicos.
O art. 203, inciso IV, da Constituição inclui entre os deveres da assistência social: “a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária”.
O inciso V, do mesmo artigo dispõe que os deficientes e idosos incapazes de se manter, pelo próprio trabalho ou por auxílio da família, terão direito a uma renda mensal vitalícia equivalente a um salário mínimo, mediante regulamentação de norma específica, que veio pela Lei n1 8.742, de 7 de dezembro de 1993 (art. 21, inciso V, arts.. 20, 21 e parágrafos).
O art. 208, inciso III, da Constituição, arrola entre os deveres do Estado na órbita da atividade educacional, a oferta de escolas especializadas para portadores de deficiência.
O art. 227, também da Constituição, grande monumento da doutrina da proteção integral da criança e do adolescente, no inciso II, fala na: “Criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos”.
Regulamentando o dispositivo acima, a Lei n1 7.853, de outubro de 1989, cria a CORDE (Coordenação Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência), estabelece mecanismo de tutela dos interesses difusos das pessoas deficientes, pelo Ministério Público, impõe a priorização das medidas de integração dos deficientes no trabalho e na sociedade, institui as Oficinas Protegidas de Trabalho e define como criminosa a conduta injustamente discriminatória de deficientes no trabalho.
Finalmente, o ECA, em seu art. 66, também obriga a que a sociedade brasileira atente para a proteção do trabalho do adolescente deficiente, o que faz com acerto, posto que duplas são as peculiaridades do adolescente portador de deficiência, as quais suscitam necessidade mais intensa de proteção, para que se lhe possibilite a integração adequada na sociedade, afastando-o da política de caridade meramente assistencial, que o impelirá inexoravelmente à marginalidade.
É com esta intenção, que a Lei do Estágio amplia o estágio profissionalizante às escolas especiais de qualquer grau.
O direito à profissionalização assume, aqui, papel imprescindível de socialização do portador de deficiência, eis que suas limitações para o trabalho se constituem em barreiras, tão somente, instrumentais, mesmo que seja ele portador de deficiência física, mental, ou sensorial. Todas elas são superáveis, desde que se rompam os preconceitos atávicos, herdados, talvez, das concepções antigas dos povos primitivos, de que o portador de deficiência é um “pecador punido por Deus”, que deve ser segregado.
Cabe ao Direito do Trabalho despir-se destes preconceitos e buscar, cientificamente, a compreensão dos reais limites dos deficientes para, cumprindo seu papel histórico, garantir-lhes condições de igualdade plena aos demais trabalhadores.
Procurador da Fazenda Nacional
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