1 Introdução
Após o desmantelamento do principal país socialista, passou-se a entender ser o Estado demasiadamente lento para a satisfação dos interesses sociais. Era o início do fim do Estado providência ou Welfare State que, no afã de satisfazer as necessidades da população de forma assistencialista, redundou em um emaranhado burocrático de pouca eficiência, mormente no que pertine ao chamado Terceiro Mundo.
Dessarte, para os ideólogos da nova Ordem político-econômica – neoliberalismo – o que antes era atribuição do Estado, deveria estar nas mãos da iniciativa privada que, com sua alegada eficiência e rapidez na resolução de problemas, possuía vantagens sobre o aparelho burocrático estatal.
Tal regra é excepcionada por aqueles serviços ditos essenciais à sobrevivência humana – serviços públicos stricto sensu –, que continuariam, na maior parte, sendo atribuição do Poder Público, diretamente ou através de concessões.
Para tanto, a partir da década de 90, no Brasil, ocorreu fenômeno vulgarmente conhecido como “privatização” das empresas, antes de propriedade do Estado brasileiro, onde passaram ao domínio de grandes grupos empresariais, nacionais ou estrangeiros, bem como a transferência da execução do serviço público, restando ao Poder Público a fiscalização do proceder das novas empresas privadas no mercado.
Destarte, o presente estudo tem por escopo analisar os meios constitucionalmente admitidos de fiscalização das empresas que prestam serviços públicos.
Para tanto situaremos a ideologia político-econômica constitucionalmente adotada, mormente após a Emenda Constitucional nº 06 de 15 de agosto de 1995 que, revogando ou modificando alguns dispositivos constitucionais, inseriu novo conjunto de idéias a ser seguido pelo Poder Público no exercício daquele poder fiscalizatório.
Faz-se mister, outrossim, conceituar de forma precisa o instituto da intervenção direta e indireta, e, nesta, a “regulação”, no afã de, ao final, asseverar que, dentro na ideologia acolhida na Constituição de 1988, no caso de intervenção indireta, encontra-se vedada a utilização de “regulamentação”.
Assim é que a criação de autarquias especiais pelo legislador pátrio, a nosso aviso, desbordou do sentido ideológico insculpido na Carta de 1988, sendo que a metodologia aplicada na fiscalização da execução de serviços públicos (luz, água, telefonia, etc.) padece de flagrante incompatibilidade com a Constituição da República em vigor.
2 Da Ideologia Constitucional
2.1 Do conceito de ideologia
É cediço na doutrina especializada ser o termo ideologia polissêmico, onde grassam discussões desde da era grega até os nossos dias.
Konder (2002: 9), em seu A Questão da Ideologia, citando Löwy, dá-nos a idéia da celeuma conceitual:
“Existem poucos conceitos na história da ciência social moderna que sejam tão enigmáticos e polissêmicos como esse de ideologia. Ao longo dos últimos dois séculos ele se tornou objeto de uma acumulação incrível, até mesmo fabulosa, de ambigüidades, paradoxos, arbitrariedades, contra-sensos e equívocos.”
Não obstante tal imprecisão conceitual, forçoso admitir que duas conceituações ganharam foros de cidadania ao longo da história, mormente após Karl Marx, que, se não unificam os autores, tem o privilégio de apontar caminho bipartido que logra certo consenso.
Nessa linha de pensamento, avulta de importância, pelo passo que dá adiante nas discussões sobre o tema (KONDER, 2002: 10), o conceito oferecido por Bobbio (2000: 585) em seu Dicionário de Política, assinalado por Mario Stoppino:
“No intrincado e múltiplo uso do termo, pode-se delinear, entretanto, duas tendências gerais ou dois tipos gerais de significado que Norberto Bobbio se propôs a chamar de ‘significado fraco’ e de ‘significado forte’ da Ideologia. No seu significado fraco, Ideologia designa o genus, ou a species diversamente definida, dos sistemas de crenças políticas: um conjunto de idéias e de valores respeitantes à ordem pública e tendo como função orientar os comportamentos políticos coletivos. O significado forte tem origem no conceito de Ideologia de Marx, entendido como falsa consciência das relações de domínio entre as classes, e se diferencia claramente do primeiro porque mantém, no próprio centro, diversamente modificada, corrigida ou alterada pelos vários autores, a noção da falsidade: a Ideologia é uma crença falsa. No significado fraco, Ideologia é um conceito neutro, que prescinde do caráter eventual e mistificante das crenças políticas. No significado forte, Ideologia é um conceito negativo que denota precisamente o caráter mistificante de falsa consciência de uma crença política.”
Daí se infere que o conceito fraco corresponde a um conjunto de idéias direcionadas a determinado fim, sem que se cogite da realidade social, um conceito neutro, portanto. De outro lado, vislumbra-se que o conceito forte é refúgio ideológico de determinada força política em um específico espaço, precipuamente em Estados divididos em classes, sendo que a utilização da ideologia se dá, neste espaço, pela manipulação da realidade social pela classe dominante em relação à dominada.
Da mesma forma, Chauí (2001: 28), no capítulo “Histórico do Termo”, assevera que a ideologia, para os positivistas, possui dois significados:
“… por um lado, a ideologia continua sendo aquela atividade filosófico-científica que estuda a formação das idéias a partir da observação das relações entre o corpo humano e o meio ambiente, tomando como ponto de partida as sensações; por outro lado, ideologia passa a significar também o conjunto de idéias de uma época, tanto como ‘opinião geral’ quanto no sentido de elaboração teórica dos pensadores dessa época.”
E ainda:
“Além de procurar fixar seu modo de sociabilidade através de instituições determinadas, os homens produzem idéias ou representações pelas quais procuram explicar e compreender sua própria vida individual, social, suas relações com a natureza e com o sobrenatural. Em sociedades divididas em classes (e também em castas), nas quais uma das classes explora e domina as outras, essas explicações ou essas idéias e representações serão produzidas e difundidas pela classe dominante para legitimar e assegurar seu poder econômico, social e político. Por esse motivo, essas idéias ou representações tenderão a esconder dos homens o modo real como suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política. Esse ocultamento da realidade social chama-se ideologia.” (CHAUÍ, 2001: 23)
De efeito, cabe-nos situar que, sem embargo de ser possível um conceito de ideologia como conjunto de idéias concatenadas a um determinado fim, não podemos deslembrar que sua função principal reside no ocultar a realidade social subjacente como meio, em sociedades de classes antagônicas, de dominação, conformação e absorção de princípios e valores da classe dominadora pela classe dominada.
Via de conseqüência, o conceito fraco tem predominado na ciência e na sociologia política liberal burguesa, como fator integrador da sociedade. Ao revés, o conceito forte tem seu predomínio no contexto da tradição teórica da sociologia crítica, de vertente marxista. (WOLKMER, 2000: 95-8)
Sem embargo, a adesão à síntese de conformação sobre os conceitos ofertada por Wolkmer (2000: 108) revelará a necessidade de utilização de ambos os conceitos em harmonia, verbis:
“Trata-se de reapropriar a ideologia ao inverso, ou seja, utilizá-la, funcionalmente, como um ‘instrumental teórico’ capaz de possibilitar uma análise desmistificadora do Estado e do Direito. Esta estratégia ‘contra-ideológica’ não nega a ‘aparência’ e o ‘real’, mas revela os interesses e as contradições que se escondem por trás de uma dada realidade. É a capacitação de apresentar a inversão que ocorre entre as ‘idéias’ e o ‘real’, entre o ‘conteúdo’ e a ‘forma’, entre o ‘falso’ e o ‘verdadeiro’. A importância da utilização do ‘sentido negativo’ [conceito fraco de Bobbio] de ideologia (adotado, via de regra, pela teoria social progressista) consiste em articular a formação de uma consciência crítica capaz de distinguir o ‘nível das aparências’ da ‘realidade subjacente’ que produz aquelas diversas formas ou manifestações reais.”
Forçoso reconhecer que a utilização de um só conceito de ideologia induzirá o pensador a abstrair o primeiro sentido de qualquer texto constitucional que se consubstancia na integração da sociedade em torno de instituições relativamente aceitas em um dado momento histórico.
Conquanto Konder (2002: 164) assevere que, não obstante a linha seguida quanto aos problemas surgidos entre a construção do conhecimento e as condições sociais em que o conhecimento é construído o conceito de ideologia aceito ainda é o marxista, mister fazer coro com Paul Ricoeur, que, nas palavras de Konder (2002: 165), afirma que:
“Certas tomadas de consciência só podem se verificar através de um código ideológico. Nenhum indivíduo e nenhum grupo podem desenvolver uma reflexão total e tematizar tudo como objeto de pensamento. A ideologia, então, desempenha um papel essencial na integração, na constituição de cada grupo, atendendo à sua demanda por uma representação simbólica própria.
“Cada grupo, contudo, como a sociedade como um todo, tem também suas tensões internas, suas contradições. E na hora da tomada de decisões não pode deixar de aparecer o fenômeno da dominação, o exercício da autoridade. A ideologia, então, não pode deixar de assumir também, ao lado da sua função integradora, a dimensão da dissimulação, o caráter de distorção.”
Sem embargo do acerto das palavras, a tragédia social reside, no entanto, quando a autoridade exerce o poder de disseminar a ideologia em seu próprio benefício, ou de sua classe sócio-econômica, desvirtuando o ideal de organização e boa convivência necessários aos grupos sociais.
Com efeito, não é lícito, ou cientificamente aceitável, a utilização de determinado conceito em detrimento do outro, já que, como se tentou demonstrar, estão umbilicalmente ligados em um jogo de variações que somente redundará em conhecimento do real auferindo-se o útil manejo da ideologia em seu duplo aspecto conceitual.
2.2 Da ideologia constitucionalmente adotada
Neste sentido e tendo em vista o alto grau de integração que uma Carta Política encerra em uma comunidade específica, perscrutar a ideologia ínsita na Constituição brasileira de 1988 é fator determinante para a solução dos problemas da intervenção do Estado no domínio econômico, pois que dependerá daquela o grau de atuação deste. (SOUZA, 2003: 322)
Nesse passo, forçoso reconhecer que a ideologia adotada pela Constituição da República, precipuamente após a Emenda Constitucional nº 6 de 1995, traduz-se em uma menor intervenção estatal no domínio reservado à iniciativa privada, qual seja, a atividade econômica. Destarte, força é reconhecer que, até mesmo por disposição constitucional expressa como se demonstrará, o exercício de atividade econômica pelo Estado será excepcional, dentro nos casos previstos na Constituição em numerus clausus.
A outro giro, no entanto, tentou o Legislador Constituinte Originário integrar institutos de matizes ideológicas distintas em um único contexto constitucional que, em razão da contrafactualidade do Direito, consubstanciar-se-ão no devir a ser alcançado por meio das normas e princípios constitucionais, assim como da conformação daqueles princípios que se mostrem antagônicos.
Com efeito, já na sua redação original, o texto constitucional, sem mais delongas, afirma:
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
Da leitura perfunctória do dispositivo transcrito vislumbra-se a clara opção do Legislador Constituinte Originário pelo neoliberalismo, no momento em que reserva a atividade econômica, em regra, à iniciativa privada que, por exceção, será exercida pelo Estado quando necessária aos imperativos de segurança nacional ou relevante interesse coletivo.
Via de conseqüência, Fonseca (1995: 189) assevera a excepcionalidade da atuação do Estado na atividade econômica:
“Donde se deduz que a exploração direta da atividade econômica pelo Estado constitui-se numa exceção. A regra é a de que o Estado não deve atuar diretamente no domínio econômico. A exceção está restrita à necessidade decorrente de dois fatores determinantes: imperativos de segurança nacional e relevante interesse coletivo.”
De seu turno, Souza (2003: 243-4) afirma que:
“Assim, o Poder Econômico Público incumbe-se do controle e da orientação do Poder Econômico Privado, enquadrando-o nos parâmetros da ‘Política Econômica’ traçada de acordo com os princípios da ‘ideologia’ constitucionalmente estabelecida. Concomitantemente, o Estado, embora agente do Poder Econômico Público, submete-se às permissões e limitações desses mesmos ‘princípios’ constitucionais.”
E arremata:
“Temos, portanto, o Estado atuando diretamente na vida econômica, em antagonismo com a sua posição absenteísta, adotada no Liberalismo, que, por sinal, jamais foi tão completa, como alguns insistem em afirmar. Um marcado preconceito liberal, entretanto, no Neoliberalismo, aceita a ação do Estado, embora como ‘exceção’, enquanto a ‘regra’ continuaria sendo a sua não-atuação.” (SOUZA, 2003: 244)
Com efeito, restará ao Estado, mediante intervenção direta ou através de delegação, a atuação econômica nos casos expressamente elencados no dispositivo constitucional transcrito, sob pena de haver intervenção cuja constitucionalidade restará maculada.
Em outras palavras: a economia deverá fluir naturalmente, segundo seus próprios fatores, com mínima intervenção do Estado: está posto o neoliberalismo econômico.
3 Atividade Econômica e Serviço Público: distinção
Fixada que seja a ideologia insculpida na Constituição Federal, mister distinguir, visto a importância que sugere para o presente estudo, atividade econômica stricto sensu e serviço público, espécies do gênero atividade econômica lato sensu. Isto porque diferenciações nos respectivos regimes jurídicos darão ensejo a divergências sobre o modo de intervenção estatal no chamado domínio privado.
Para tanto, devemos nos fixar no conceito de interpretação lógico-sistemática do texto constitucional, segundo a qual se busca o sentido da norma jurídica no cotejar com outros dispositivos do mesmo ou de outro diploma legal, em raciocínio sistêmico. (AZEVEDO, 2002: 37)
Dessarte, tem-se que, no que concerne ao serviço público, a norma constitucional base está inserida no art. 175, que assim dispõe:
Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Assim, como tal dispositivo se encontra inserido no Capítulo I “Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica”, e, ainda, no Título VII “Da Ordem Econômica e Financeira”, resulta que podemos afirmar na linha de Azevedo (2002: 38), que os serviços públicos são espécie de atividade econômica, não obstante ser reconhecidamente corrente minoritária.
“Existe, porém, um elemento implícito que só pode ser descoberto através da interpretação lógico-sistemática, qual seja, o de que todos os serviços públicos são espécies de atividade econômica. Por certo, esta afirmação evidencia uma postura minoritária, onde o conceito jurídico de serviço público tende a ser por demais restrito, se comparado às tradicionais classificações conhecidas nas obras de Direito Administrativo.” (AZEVEDO, 2002: 38)
Vislumbra-se, portanto, que, sendo os serviços públicos espécies de atividade econômica, a distinção destes em cotejo com as atividades econômicas stricto sensu restringe-se à titularidade da atividade e ao regime jurídico ao qual esta atividade se sujeita.[1]
Assim é que todo serviço – e veremos na seqüência quais são – que tenha por titular o Poder Público – consoante dispõe o art. 175 da CF/88 – será considerado serviço público, e sujeito, portanto, ao regime jurídico administrativo de concessões e permissões, caso venha a ser exercido por empresas privadas.
Lado outro, quando a titularidade pertencer à iniciativa privada – o chamado domínio econômico – estaremos perante atividade econômica stricto sensu, submetida, pois, ao regime jurídico de Direito Privado.
Apesar da distinção, não se infere da mesma não poder o Estado praticar atividades econômicas stricto sensu. No entanto, tais práticas deverão se circunscrever aos requisitos expostos no art. 173 da CRF/88, que assim dispõe:
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. (g. n.)
Dessa forma, lícito afirmar que o Estado poderá exercer atividade econômica, no entanto, somente nos casos de segurança nacional e relevante interesse coletivo, que deverão estar previstos em lei. É que, como anteriormente afirmado, a ideologia adotada pela Constituição é o neoliberalismo, onde o Estado deve abster-se da ingerência em segmentos econômicos pertencentes à iniciativa privada.
Sob outro aspecto, também as empresas privadas poderão exercer – e somente exercer – serviços públicos, conquanto, neste caso, tenham que se sujeitar a concessões e permissões, que deverão ser precedidas de licitação (art. 175 CR/88).
Para perquirirmos sobre quais atividades o Estado possui titularidade, temos que partir, por óbvio, do texto constitucional, onde estão previstas as competências das entidades federadas.
No dizer de Azevedo (2002: 44-6):
“Quanto ao sistema de repartição de competências, importa considerar que a Constituição estipulou atividades econômicas, cuja titularidade da prestação pertence à União, aos Estados-Membros ou aos Municípios, segundo a regra jurídica do art. 175. Portanto, tais atividades são consideradas como serviços públicos.
“Desta feita, o art. 21, X, XI e XII, do texto constitucional traz o elenco de serviços públicos, cuja titularidade da prestação pertence à União, podendo a prestação ser delegada à iniciativa privada mediante contratos de concessão ou atos de permissão. Da mesma forma, o art. 25, §§ 1º e 2º, estipulam as atividades econômicas cuja titularidade da prestação pertence aos Estados-Membros, conferindo-se a mesma possibilidade de delegação (da prestação) à iniciativa privada. Por fim, o art. 30, V, estipula as atividades econômicas, cuja titularidade da prestação pertence aos Municípios, conferindo-se, mais uma vez, a mesma possibilidade de delegação (da prestação) aos particulares.”
Assim, patente se mostra que os serviços públicos estão previstos constitucionalmente nas competências administrativas das entidades federadas, sendo que, onde não houver esta previsão, restará à titularidade da iniciativa privada o exercício da atividade econômica. Percebe-se, pois, que, em obediência à ideologia constitucionalmente adotada, as competências do Estado são determinadas por exclusão e expressa previsão constitucional ou legal, sendo o restante (a atividade que não possuir previsão entre as competências estatais) próprio do domínio privado.
Finalmente, cabe tecer considerações sobre as denominadas funções irrenunciáveis do Estado.
Com efeito, Paulo Modesto, citado por Azevedo (2002: 39) afirma existirem, na Constituição, serviços que somente terão natureza pública quando o Estado os prestar. Como exemplos destes temos a “saúde” e a “educação”, que podem ser prestados pela iniciativa privada independentemente do exercício prestacional concomitante do Estado, consistindo um tertium genus de atividade de prestação social quando exercida pelo Estado.
Assim, Azevedo (2002: 39) assevera que:
“Pela interpretação da Constituição é possível demonstrar que os serviços públicos são atividades econômicas. Desta feita, a prestação, pelo Estado, de educação e saúde pública não pode ser serviço público, pois não está presente a relação econômica entre o Estado e os cidadãos. As atividades de prestação de educação e saúde pública são, pois, funções irrenunciáveis do Estado. São atividades não-econômicas cuja prestação estatal tem, por via de regra, o condão de garantir a efetivação de direitos fundamentais consagrados no Texto Maior.”
Feitas as distinções necessárias, poderemos agora avançar no sentido das modalidades de ação do Estado no domínio privado.
4 Modos de Intervenção Estatal
4.1 Na atividade econômica
Mesmo sendo excepcional, é consenso ser mister a efetiva intervenção do Estado no domínio econômico, sob pena de mesmos os princípios (limites) estatuídos na Constituição (art. 170, e incisos) se pulverizarem ou serem distorcidos pelas leis naturais da economia.
Urge, pois, determinar quais as atuações constitucionalmente aceitáveis de intervenção do Estado na economia.
Com efeito, consoante o que dispõe o art. 174 da Constituição Federal, o Estado:
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.
Dessa forma, no que tange às atividades econômicas stricto sensu, estabelecidas as bases sobre as quais o Estado deverá fulcrar sua intervenção na economia, mister afirmar que os meios para a interferência estatal deverão ser reduzidos ao mínimo, sem perturbação do mercado, sob pena de inconstitucionalidade da conduta ou medida tomada. Isto porque sua excepcionalidade deverá ficar restrita, na intervenção direta, à ocorrência de imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse coletivo (art. 173 CR/88); quanto à intervenção indireta, a regular, através de fiscalização, incentivo e planejamento, o exercício dessa atividade pela iniciativa privada.
Como assevera Souza (2003: 245), em suas Primeiras Linhas de Direito Econômico, existem dois tipos de atuação econômica do Estado:
“O primeiro, pelo qual assume as condições de detentor do Poder Público, elaborando a legislação (Legislativo), executando-a na prática de atos econômicos (Executivo), ou aplicando-a e impondo sanções à sua transgressão (Judiciário). Então, estaremos diante das normas de Direito Regulamentar Econômico.
Na segunda, o Estado assume a iniciativa da atividade econômica, pratica-a diretamente, faz-se empresário e, por meio dos organismos criados para esse fim, atua nos setores da economia do país, de modo a cumprir diretamente a Política Econômica a que se propõe. Estamos, então, diante de normas de Direito Institucional Econômico.”
Partindo-se dessa dicotomia, extrai-se que: ou o Estado atua de forma a regular a atividade econômica, ou atua imiscuindo-se na própria atividade econômica, nas hipóteses previstas constitucionalmente.
Fonseca (1995: 198), em escólios, esclarece que:
“Vimos que o Estado pode atuar diretamente no domínio econômico, e pode atuar só indiretamente. No primeiro caso, assume a forma de empresas públicas, nome genérico que compreende no sistema jurídico brasileiro as empresas públicas propriamente ditas e as sociedades de economia mista, assim mencionadas no art. 173, §§ 1º, 2º e 3º, da Constituição Federal. No segundo caso, atuação indireta, o Estado o faz através de normas, que têm como finalidade fiscalizar, incentivar ou planejar; o planejamento, como se verá, é somente indicativo para o setor privado. Esta forma de atuação do Estado está prevista no art. 174 da Constituição Federal.”
Assim, forçoso admitir que o Estado, a par da possibilidade de sua intervenção direta através das empresas públicas lato sensu, poderá, indiretamente, intervir na atividade econômica privada por meio de normas jurídicas.
Sem embargo, na ação do Estado no domínio econômico na forma indireta, a legislação produzida somente poderá ter por escopo a fiscalização, o incentivo ou o planejamento, em outras palavras, se reduzirá ao constitucionalmente previsto para esta modalidade de intervenção.
Partindo-se dessa premissa, ressalta-se inicialmente que o incentivo e o planejamento não poderão se consubstanciar em um conjunto de normas sancionatórias, em razão mesmo de ser tal procedimento contraditória com sua própria natureza.
Com efeito, Fonseca (1995: 201) afirma que o incentivo será retratado pelo Estado quando:
“Ao atuar indiretamente na condução, no estímulo e no apoio da atividade econômica empreendida pelos particulares, o Estado adota determinadas formas de política econômica, peculiares a cada campo de atuação.”
Ao estimular, apoiar o setor privado na economia, fomentando o crescimento ou até mesmo o investimento em determinado segmento econômico, o Estado trabalha à base do consenso, erigido em forma preponderante de atuar na intervenção indireta. Daí por que Fonseca (1995: 203) assevera que:
“Ressalte-se ainda que uma política econômica que consiga a adesão dos setores interessados tem muito maiores probabilidades de sucesso do que uma imposta autoritariamente. Daí por que atualmente os países se voltam para a adoção de políticas econômicas através do consenso.”
A outro giro, o planejamento tem por escopo não apoiar ou estimular determinado setor da economia, porém racionalizar a operacionalização das políticas econômicas levadas a cabo pelo Estado.
Lúcida a intervenção de Fonseca (1995: 203) quando afirma:
“Não se pode desconsiderar a necessidade do planejamento que tem como finalidade conferir racionalidade, coerência às políticas econômicas adotadas. O planejamento tem como finalidade fixar metas que servem de norte para os esforços empreendidos. Somente um planejamento global, que preveja todo o contexto econômico e social, será capaz de conferir coerência e compatibilidade às medidas de política econômica a serem adotadas.”
Como visto, tanto o incentivo como o planejamento, não possuem, em sua inerência, normas jurídicas de caráter sancionatório, privilegiando atualmente o consenso como forma de obter-se sucesso na aplicação das políticas econômicas engendradas.
Na mesma esteira, a fiscalização, autorizada constitucionalmente como forma de intervenção indireta do Estado no domínio econômico, entendemos, não poderá ser formalizada através de leis que prevejam sanções àqueles segmentos do setor privado que não aderirem às políticas econômicas encetadas pelo Poder Público.
Isto porque, não obstante semanticamente indicar um verdadeiro controle na atividade de eventual controlado, o que induziria ao pensamento segundo o qual não obedecida a determinação ínsita em uma específica política econômica poderia o Estado aplicar sanções regularmente previstas, a fiscalização prevista na Constituição possui seus limites na própria ideologia constitucionalmente adotada, haja vista que esta se traduz na menor intervenção do Estado no domínio econômico, como forma de atuação estatal no neo-liberalismo.
Daí por que Souza (2003: 331), ao lançar escólios sobre a regulação, enfatiza que:
“Os ‘objetivos’ da ‘regulação’, portanto, enquadram-se no mesmo sistema operacional da ‘intervenção’. De certo modo, a Regulação afasta-se da forma densamente intervencionista do Estado Bem-Estar, ou das atuações diretas do Estado-Empresário. Orienta-se no sentido do absenteísmo, sem jamais atingi-lo completamente, sob pena de negar a sua existência, por ser, ela própria, uma forma de ‘ação’ do Estado. Afirma-se, para a área em que a livre iniciativa, pela ação privada, ou a livre concorrência em geral, não consegue atender ao ‘interesse público’. Essa satisfação passa a ser atribuída, sob o regime de ‘Regulação’, aos ‘serviços públicos’, ou aos ‘particulares quando ao serviço do público’.
“O tratamento jurídico da ‘regulação’, portanto, há de ser considerado fundamentalmente em termos de ‘graduação’ da ação do Estado, ou seja, da sua presença no domínio econômico, do modo de conduzir a política econômica.”
Extrai-se desses ensinamentos que, posta a ideologia constitucionalmente adotada no neoliberalismo, a interferência estatal deverá ser mínima, no sentido de que sem a qual o próprio mercado se desfaz, restrita somente a garantir os princípios enumerados nos incisos do artigo 170 da CR/88, tais como a soberania nacional, propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, do meio ambiente, reduzir as desigualdades regionais e sociais, promover a busca do pleno emprego e dispensar tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Via de conseqüência, infere-se que toda e qualquer espécie de intervenção indireta do Estado no domínio econômico (atividade econômica stricto sensu) deverá ser por meio de incentivos, estímulos, fomentos e, principalmente, pelo consenso, à adesão sobre a política econômica adotada, em razão de, conduta distinta, ensejar a inconstitucionalidade da lei que a preveja.
4.2 No serviço público
Já no que diz respeito à prestação de serviços públicos, os papéis do Estado e da iniciativa privada se invertem.
Nestes, o Estado tem a incumbência de prestá-los obrigatoriamente, seja de forma direta, seja indireta, por meio de concessões ou permissões – delegações – à iniciativa privada de seu exercício.
Sem embargo de nas hipóteses de serviço público o Estado possuir sua titularidade, e, portanto, ficar sua atuação, bem como dos concessionários e permissionários, sujeita ao regime jurídico de direito público, infere-se que esta atuação, de qualquer forma, como não poderia deixar de ser, deverá ter por norte a ideologia consagrada na Constituição, qual seja, o neoliberalismo.
Conseqüentemente, e da mesma forma que ocorre nas hipóteses de intervenção estatal na atividade econômica, impõe-se uma atuação de mera regulação tão-somente, visto que, por expressa determinação constitucional, a lei que preverá as formas de concessão e permissão – ou seja, as formas de delegação à iniciativa privada do exercício de serviços públicos – está vinculada a:
Art. 175. omissis
Parágrafo Único. A lei disporá sobre:
I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; (g. n.)
Dessarte, a atuação que será exercida pelo Poder Público sobre as delegatárias se restringirá à mera fiscalização, onde, por determinação constitucional, não poderão ser previstos quaisquer tipos de sanções que desborde do enunciado no inciso transcrito.
Em outras palavras: a única espécie de sanção, constitucionalmente aceitável, que poderá ser cominada às delegatárias dos serviços públicos – como vimos, de titularidade do Estado – ficará restrita à rescisão da concessão ou permissão, que vinculará a lei infraconstitucional editada, no caso, a Lei federal nº 8.987/95, que trata do regime das concessões e permissões do Serviço Público, que não poderá, sob pena de clara inconstitucionalidade, prever outras sanções punitivas.
Não se trata de deferir interpretação restritiva ao dispositivo constitucional. Efetivamente, não. Ocorre, na realidade, a utilização de interpretação sistêmica que adere – como não poderia deixar de ser – à ideologia constitucionalmente adotada, segundo a qual, prevalecerá sempre o exercício por empresas privadas, seja nas atividades econômicas stricto sensu, seja na prestação de serviços cuja titularidade pertence ao Estado, ou seja, serviços públicos. Daí hodiernamente se propugnar pela “diminuição” do Estado no domínio privado em todos os aspectos da vida econômica, principalmente através das chamadas “privatizações” que nada mais são que a concretização da excepcionalidade da atuação estatal na atividade econômica (art. 173 CR/88) e a transferência do exercício de serviços públicos para empresas privadas, por meio de concessões e permissões.
Assim, Azevedo (2002: 62-3) argumenta:
“Com o advento do processo de privatização e da Lei das Concessões e Permissões (Lei nº 8.987/95), a prestação dos serviços públicos se apresenta segundo uma nova tendência, baseada na prevalência do processo de delegação por contrato (concessões) ou ato administrativo (permissões), em detrimento da descentralização administrativa.”
Dessume-se que a interpretação que o presente estudo defere ao parágrafo único do artigo 175 nada tem de restritiva, tão-somente acolhe e concretiza a ideologia integracional posta na Constituição.
5 Das Agências Reguladoras
Ao influxo da onda globalizante instaurada aproximadamente no início da década de 1990, o Brasil, além das vendas de empresas públicas lato sensu para a iniciativa privada, utilizou-se dos instrumentos de concessão e permissão como antes nunca visto na história recente do país.
No entanto, não só as idéias de globalização exerceram influência no fenômeno de desestruturação do Estado brasileiro, como também a constatação de que este era ineficiente, moroso e desatualizado para prover as necessidades sociais.
Daí afirmar Azevedo (2002: 112-3) que:
“Este complexo processo de reforma do aparelho estatal deriva, como não poderia deixar de ser, da constatação de que o Estado está´em crise. Segundo Bresser Pereira, a crise do Estado brasileiro, que atingiu seu ápice na década de 80, possui três formas de compreensão: crise fiscal, crise do papel interventor do Estado no econômico e no social, e, por fim, a crise na forma de administrar o Estado. Associado a essas constatações, o autor acrescenta ainda a influência do processo de globalização na autonomia das políticas econômicas e sociais dos estados nacionais.”
Interessa ao presente estudo, dentro na classificação exposta, a crise do papel interventor do Estado no econômico e no social, visto que restará afirmado que a aparição de agências reguladoras se deu exatamente na transformação do Estado de provedor a regulador, e, não como afirmado por Azevedo (2002: 113) regulamentador.
Tal tendência é comprovada pela menor intervenção do Estado brasileiro nas atividades econômicas – incluído, aí, os serviços públicos. (AZEVEDO, 2002: 113)
Tal abstenção estatal, no entanto, não pode ser considerada total, visto que, como dito, houve, na realidade, uma modificação na qualidade da intervenção do Estado no domínio econômico. De efeito, aquele Estado prestador/provedor que teve seu auge na década de 30, mais particularmente no Estado Novo de Getúlio Vargas, era pródigo na criação de pessoas jurídicas de direito público – notadamente autarquias e fundações – para prestação de serviços públicos, quadro que, já mencionamos, na década de 90 irá se transmutar, dando azo à maior utilização do instituto da delegação – concessões e permissões – ficando o Poder Público limitado à fiscalização das concessionárias e permissionárias.
Nesta ambiência constitucional de neoliberalismo, surgem as chamadas agências reguladoras, que, nas palavras de Azevedo (2002: 117) constituem:
“As agências estatais são pessoas jurídicas que integram a chamada Administração Pública indireta. Não são órgãos públicos, mas pessoas jurídicas, i. é., possuem autonomia político-administrativa, financeira e orçamentária em relação à pessoa jurídica do Estado. A expressão agência estatal é, pois, o gênero do qual existem duas espécies: a) agências executivas; b) agências reguladoras.”
Dessarte, segundo a classificação ora exposta, podemos afirmar que as agências executivas são autarquias ou fundações públicas que cumprem metas previstas no respectivo contrato de gestão. Desempenham políticas de governo, trabalhando de acordo com os interesses do grupo político-partidário que ocasionalmente ocupe o Poder, extraindo-se daí que sua autonomia em relação ao Poder Executivo, mais especificamente ao Ministério ao qual está vinculada, é quase nula. (AZEVEDO, 2002: 117-8)
Contrariamente, as agências reguladoras estão mais afetadas às políticas permanentes de Estado, ou seja, não estão vinculadas aos interesses administrativos do grupo político-partidário que ocupe momentaneamente o Poder, e, portanto, não obstante a celeuma que grassa neste particular, possuem maior autonomia em relação ao governo do que as agências executivas. É possível até mesmo vislumbrar distinções no que concerne às atribuições, uma vez que, enquanto as agências executivas têm atribuições mais voltadas à arrecadação de impostos, promoção de seguridade social, dentre outros, as reguladoras respondem pelo controle de preços de atividades econômicas no mercado – como ocorre nos serviços públicos – além da fiscalização quanto à qualidade e adequação dos mesmos. (AZEVEDO, 2002: 119)
Em compêndio, Azevedo (2002: 119) adverte que:
“Em suma, as agências executivas, como o próprio nome sugere, desempenham atividades relacionadas à execução de políticas públicas, i. e., políticas de governo. Já as agências reguladoras se prestam ao desempenho de tarefa específica e permanente, consistente na regulação de atividades econômicas (no caso, os serviços públicos).”
6 Poder Normativo das Agências Reguladoras
Feita a distinção entre as chamadas agências, importa ao presente trabalho exatamente o poder normativo que possuem, sob o ângulo do Direito Econômico, as agências reguladoras, dentro na ideologia constitucionalmente adotada.
Para tanto, imprescindível a precisa distinção entre regulamentação e regulação, expressões muitas vezes admitidas como sinônimas, mas que, na realidade, possuem diferenças que interferem na própria ideologia acolhida na Constituição.
Com efeito, a regulamentação, para Souza (2003: 327) significa:
“Diremos que, ao ‘regulamentar’ a economia, o Estado atua por medidas legais e executivas de fiscalização da prática econômica privada nos mercados, de incentivo a essa atividade por parte da iniciativa privada, suplementando-a e planejando, pela introdução de medidas que vão além do funcionamento auto-regulador do mercado pelas suas próprias forças.”
Podemos afirmar, portanto, que regulamentar a economia seria, em outras palavras, uma intervenção stricto sensu, isto é, uma atuação estatal de forte cunho dirigente no intuito de redirecionar a economia como ela é, e colocá-la como deve ser, dentro da ideologia constitucionalmente adotada. Caracteriza-se pela adoção de medidas fortes no setor econômico, sob pena de aplicação de sanções previstas em lei em caso de descumprimento das políticas econômicas adotada. Tal metodologia fora largamente utilizada pela França no pós-guerra.
Por outro lado, a regulação constitui em intervenção intermediária onde o Estado, não obstante a atuação plena das leis de mercado, interfere para extinguir desvios próprios do livre mercado, sem, no entanto, impingir medidas sancionatórias de quaisquer espécies.
Para Souza (2003: 329):
“– na ‘intermediária’,encontramos as medidas ‘reguladoras’ e ‘controladoras’, por exemplo, a criação de armazéns destinados a cumprir as tabelas, sem fazer concorrência aos particulares. Aqui poderíamos incluir as ‘Agências Reguladoras’.”
No mesmo diapasão, ao definir os objetivos da regulação, Souza (2003: 331) assevera:
“Os ‘objetivos’ da ‘regulação’, portanto, enquadram-se no mesmo sistema operacional da ‘intervenção’. De certo modo, a Regulação afasta-se da forma densamente intervencionista do Estado Bem-Estar, ou das atuações diretas do Estado-Empresário. Orienta-se no sentido do absenteísmo, sem jamais atingi-lo completamente, sob pena de negar a sua existência, por ser, ela própria, uma forma de ‘ação’ do Estado. Afirma-se, para a área em que a livre iniciativa, pela ação privada, ou a livre concorrência em geral, não consegue atender ao ‘interesse público’. Essa satisfação passa a ser atribuída, sob o regime de ‘Regulação’ aos ‘serviços públicos’, ou aos ‘particulares quando ao serviço do público’.
O tratamento jurídico da ‘regulação’, portanto, há de ser considerado fundamentalmente em termos de ‘graduação’ da ação do Estado, ou seja, da sua presença no domínio econômico, do modo de conduzir a política econômica.”
A outro giro, característica importante destes institutos está na sua vinculação com a ideologia constitucionalmente adotada. De efeito, a regulamentação estará mais voltada para o Estado protetor-intervencionista do Welfare State; quanto à regulação, ao Estado neoliberal, o Estado mínimo, cuja interferência privilegiará o consenso em detrimento da aplicação de medidas com caráter sancionatório.
Pelo que foi dito, vislumbra-se claramente que o poder normativo das Autarquias Reguladoras não pode extrapolar o instrumento da mera regulação. Isto porque, uma vez adotada a ideologia do neoliberalismo na Constituição Econômica, entende-se que ao Estado – ou quaisquer de suas pessoas administrativas – compete tão-somente corrigir desvios econômicos que a atividade econômica enseja naturalmente, mediante incentivos, fomento e fiscalização. No que toca aos serviços públicos – principal ponto deste estudo – o Estado, através de suas Agências Reguladoras, somente poderão prever legislativamente uma única sanção, qual seja, a rescisão do contrato de concessão ou a revogação da permissão – pois que esta não se traduz em contrato administrativo, e, sim, em ato administrativo – posto ser a única penalidade prevista constitucionalmente, devendo-se, como já afirmado, em razão da ideologia constitucionalmente adotada, ser tal dispositivo interpretado restritivamente.
Conseqüentemente, importa reconhecer que todas as disposições normativas expedidas através de resoluções pelas Agências Reguladoras transbordam do poder normativo deferido pela Constituição ao Estado na hipótese de serviços públicos delegados, na medida em que estes instrumentos normativos – resoluções – prevejam aplicação de multa nos casos de desobediência as respectivas determinações por parte dos delegatários.
No entanto, forçoso reconhecer que as aplicações de sanções pecuniárias às delegatárias dos serviços públicos se dão pelas respectivas Agências Reguladoras – mormente no que concerne à ANATEL – em virtude de Decreto do Chefe do Poder Executivo federal sob o nº 2.338/97, que determina, no parágrafo único do seu art. 19:
Art. 19. omissis
Parágrafo Único: A competência da Agência prevalecerá sobre a de outras entidades ou órgãos destinados à defesa dos interesses e direitos do consumidor, que atuarão de modo supletivo,cabendo-lhe com exclusividade a aplicação das sanções do art. 56, incisos VI, VII, IX, X e XI da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990.
Assim, de tudo que vimos afirmando, conclui-se que o referido parágrafo do Decreto Presidencial, bem como quaisquer dispositivos legais que prevejam aplicação de medidas sancionatórias às delegatárias – com exceção da rescisão do contrato de concessão ou revogação da permissão – parece-nos incompatível com a Constituição Econômica, no exato sentido de que optou a Carta Política pelo neoliberalismo como ideologia norteadora do seu dever ser, o que, por via de conseqüência, vinculará o agir dos Poderes constituídos na medida em que somente poderão utilizar do instrumento da regulação para corrigir desvios ensejados pela natural atividade econômica lato sensu, sempre por meio de fiscalização que se traduzirá em mera interferência nas atividades da iniciativa privada, nada além.
7 Conclusão
Em síntese, podemos afirmar que, eis que adotada pela Constituição a ideologia neoliberal, nas atividades econômicas lato sensu, especificamente nos serviços públicos, resta afastada a utilização de regulamentação como instrumento de política econômica própria do Estado intervencionista do Welfare State, incumbindo ao Poder Público tão-somente uma intervenção caracterizada pela interferência regulatória com o escopo de corrigir desvios ensejados pela natural atividade a cargo da iniciativa privada. Certo ou errado, aqui entendemos não ser o ambiente correto para tal discussão, porquanto não é lícito ao jurista por em dúvida a ideologia constitucionalmente acolhida.
De qualquer forma, voltando ao problema central, temos que a regulação a cargo do Estado deverá se dar, no pertinente à atividade econômica stricto sensu, através de incentivos, planejamentos, fomentos e fiscalização, esta não ultrapassando aqueles; quanto aos serviços públicos, como espécie de atividade econômica lato sensu, o Estado somente poderá prever, na sua atividade legiferante, e mesmo assim através de lei formal, a rescisão do contrato de concessão ou a revogação da permissão concedida, sob pena de clara incompatibilidade material com as diretrizes econômicas previstas constitucionalmente.
Alfim, afirmamos ser as resoluções das Agências ou os decretos presidenciais de clara inconstitucionalidade quando prevejam aplicação de medidas sancionatórias às delegatárias dos serviços públicos.
Promotor de Justiça. Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça. Membro da Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade da Procuradoria-Geral de Justiça de Minas Gerais. Mestre e Doutor em Direito. Membro do Conselho Editorial da Revista De Jure do Ministério Público de Minas Gerais. Coordenador Editorial do periódico MPMG Jurídico. Professor de Graduação e Pós-Graduação lato sensu. Autor do livro Constituição e Políticas Econômicas na Jurisdição Constitucional
Advogada especializada em Direito de Empresa e Relações de Consumo, Especialista em Direito Processual pela PUC-BH, Mestranda em Direito Privado, Membro da Comissão de Defesa do Consumidor – OAB/MG, associada BRASILCON
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