Há
um provérbio que diz: “O que torna uma resolução tão difícil é não sabermos o
que queremos e o quanto queremos”. No caso dos policiais grevistas eles sabem
muito bem o que querem: melhor remuneração e melhores condições de trabalho.
Quem não está sabendo o que fazer são os Governos
estaduais e o Central. Na era da globalização, em razão dos variados e
múltiplos conflitos de interesses, é preciso que as instituições e os
governantes se modernizem. Aliás, ou se atualizam ou perecem
!
Dentre
as doze características que bem definem, na atualidade, o processo de
globalização, Ramonet –
que é professor em Paris e especialista em geopolítica –
chama a atenção para as profundas mudanças que estão ocorrendo nas relações de
poder e de autoridade. O poder até agora era essencialmente vertical,
hierárquico e autoritário. Ocorre que todas as instituições estão se
democratizando e desse modo a autoridade é exercida
cada vez mais horizontalmente. O poder está deixando de ser hierárquico e
graças às técnicas de comunicação, está se convertendo a cada instante num
exercício consensuado. O poder faz aquilo que já se
sabe que será aceito.
Nesse
contexto, quem continua sendo autoritário e inflexível está predestinado a
sofrer ou a provocar graves conseqüências. Estão incluídos nesse rol, segundo o
autor citado, a Igreja Católica, os Exércitos e as Polícias. Por razões óbvias,
faltou mencionar o governo da Bahia, que se mostrou enormemente incompetente
para lidar com a greve dos policiais, deixando que a situação de insegurança
atingisse níveis intoleráveis, só comparados a uma guerra civil. Quantas
mortes, roubos e estupros teriam sido evitados se os códigos mentais já não
fossem os do tempo da ditadura ou dos “coronéis”?
Já
se fala numa rebelião militar coletiva e nacional, cujas drásticas
conseqüências (sobretudo para a governabilidade do país) ninguém sabe
prognosticar com exatidão. E chegaremos ao caos total e absoluto se nossos
governantes não atuarem com lucidez e rapidez. O governador de Alagoas, por
exemplo, mostrou-se muito mais hábil que o baiano. Se é
certo que ele conclamou o general Alberto Cardoso a autorizar a
intervenção do Exército, não menos correto é que o ouviu com grande atenção e
começou a negociar. Pode não ser a definitiva, mas achou-se uma solução. Os
policiais voltaram ao trabalho. Conclusão: negociação e prudência são as
palavras de ordem.
Os
ortodoxos, os Governadores e os editoriais tendencialmente
repressivos arrepiam-se e quase explodem de tanta indignação e estupefação, mas
deveriam aprender com as lições da nossa História: quando ofereceram a Milton Campos um trem cheio de policiais para resolver uma
greve de ferroviários que não recebiam salários há alguns meses, o sábio
mineiro disse: é melhor mandarem um trem pagador!
Para
os que não querem encontrar nenhuma solução (leia-se: para os que querem ver o
circo pegar fogo), é mais do que suficiente proclamar que a greve da Polícia
Militar é ilegal e inconstitucional (há, aliás, expressa vedação no art. 142, §
3º, IV, da Constituição Federal) e que o motim é crime militar e deve ser
punido exemplarmente. Fecha-se com isso qualquer espaço para o diálogo (tal
como fizerem, majoritariamente, os Governadores na reunião com o Presidente da
República).
Mas
essa é uma postura exageradamente arriscada, porque a greve dos policiais é
legítima. Formalmente contraria o Direito, mas substancialmente é justa, é
humanitária, mesmo porque há uma gritante disparidade de ganhos entre os
policiais: nas forças armadas o maior salário é doze vezes maior que o de
quem ganha menos. Nas polícias estaduais essa diferença, em muitos casos, é
muito maior. Em Nova York,
só para se ter uma idéia, não passa de cinco vezes. Considerando-se todo o
território brasileiro, há policiais que ganham dez
vezes mais que outro para desempenhar o mesmo serviço, as mesmas funções.
Que
bom seria se divulgassem no Brasil que detrás da famigerada operação Tolerância
Zero acham-se não só melhores condições de trabalho, informatização da
polícia, esportes para os jovens, recolhimento dos mendigos etc., senão, sobretudo, um considerável aumento salarial dos policiais
(o patamar mínimo em Nova
York é de dois mil e trezentos dólares).
Se
o cerne da nossa questão, assim, é a legitimidade da reivindicação dos
policiais (que não estão pedindo vida nababesca nem mansão cinco estrelas,
senão o que todo ser humano, por natureza, é digno de ter: moradia, plano
de saúde, escola para os filhos, alimentação e transporte), soam como
irreais idéias como (a) criação de uma guarda nacional, (b) recuperação da
subordinação das polícias militares ao Exército, (c) reformas constitucionais,
(d) unificação das polícias, (e) militarização das guardas municipais etc.
Se querem desfocar
ou migrar o problema, esses são indiscutivelmente os caminhos. Mas quem assim procede
deveria desde logo assumir sua parcela de responsabilidade pelo desmoronamento
social e democrático que certamente advirão.
No
Estado Constitucional e Democrático de Direito nunca devem ser usadas medidas
autoritárias e repressivas quando desnecessárias ou desproporcionais ou
injustas. O discurso da violência (que agrada e enriquece muitos setores da
mídia) deve ser substituído pelo da pacífica convivência. É preciso mostrar,
principalmente aos policiais, que no regime democrático, conduzido por civis, o
único espaço que subsiste é o de soluções não violentas nem arbitrárias. Esse é
o momento de o poder civil, enfocando as questões sociais e humanas dos
policiais, ensinar-lhes mais uma extraordinária lição de humanismo, civilidade
e transcendentalidade, mesmo porque agora eles estão
fazendo uma greve justa mas no dia-a-dia distribuem
castigos e sofrimentos inúteis (Gabriel, O Pensador, diria: porradas,
porradas) para boa parcela da população mais humilde (só em São Paulo, a
polícia matou mais de sete mil pessoas na década de 90).
Os
estrategistas do poder deveriam atentar para o seguinte: os motins dos
policiais, que estão contando com a ajuda de suas mulheres, acham-se para as
iniqüidades salariais e distributivas brasileiras como o grito de Gênova contra
o G-8 está para o processo de globalização regido pela nefasta, inconseqüente e
destrutiva ideologia neoliberal. Dos seis bilhões de habitantes do planeta,
somente um bilhão vive dignamente; outros cinco bilhões passam necessidades ou
estão abaixo da linha da pobreza. Isso deveria evidentemente
preocupar-nos a todos. O processo de globalização em curso não integra os
pobres nem os excluídos. Pelo contrário, aumenta seu número a cada dia.
Que
o Exército deva contar com “poderes de polícia” nas situações emergenciais (de
intervenção), até porque, nessa contingência, ele defende a lei a e a ordem
(CF, art. 142), parece não haver nenhuma dúvida (resultado da pesquisa da Globo News sobre o tema: 68% disse sim). Mas
isso não resolve nada, mesmo porque continua o discurso da violência, da
militarização e da verticalização. O poder civil
revela absoluta incompetência (devendo ser sumariamente destituídos os seus
detentores) quando, sem nenhuma imaginação e criatividade, se vale de
“soluções” “militares” ou “penais” para os problemas humanos e sociais.
Ademais: no dia em que o Exército começar a matar policiais
militares nascerão no Brasil os grupos guerrilheiros paramilitares. Aliás, é o
único item que nos falta para igualarmos aos sofrimentos dos nossos irmãos
colombianos.
O
governo central não pode tratar o gravíssimo problema dos policiais amotinados
com formalismos jurídicos ou com atos paliativos e puramente simbólicos. Não se
trata câncer com aspirina. Com a segurança pública não se brinca. Tampouco o governo
tem o direito de se comportar uma vez mais de forma incompetente, adotando
“soluções” “militares” para problemas humanos e sociais. A crise das polícias, como todas as crises, estão dando aos governantes mais uma
chance de mostrarem que uma nação séria e construtiva é constituída de decisões
prudentes e criativas. Mas para chegar lá, é preciso começar reconhecendo
coisas muito simples como: “em casa que falta pão todo mundo briga e ninguém
tem razão”.
Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri
Mestre em Direito Penal pela USP
co-editor do site www.ibccrim.com.br e
Diretor-Presidente do Centro de Estudos Criminais (www.estudoscriminais.com.br).
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