Resumo: O presente ensaio se propõe a fazer uma abordagem de alguns dos principais instrumentos passíveis de serem utilizados numa futura reforma do sistema tributário brasileiro, com vistas a torná-lo mais justo e equânime. O povo brasileiro anseia por uma profunda reestruturação dos pilares da tributação no país, o que não pode ser feito sem prestigiar os princípios da isonomia e da capacidade contributiva, bem como a ideia de justiça fiscal. Nesse contexto, busca-se analisar os referidos institutos, de forma detalhada, a fim de que se possa compreender sua relevância e, assim, atestar a urgência de sua crescente implementação como pilares do sistema tributário pátrio.
Palavras-chave: sistema tributário brasileiro – princípio da isonomia – princípio da capacidade contributiva – justiça fiscal
Sumário: Introdução. Desenvolvimento. 1. O Princípio da Isonomia e a Capacidade Contributiva. 2. A justiça fiscal. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Num país em que é imensa a desigualdade social, incessante deve ser a busca por instrumentos de diminuição das disparidades. Todavia, contraditoriamente, é consabido que a carga tributária brasileira incide principalmente sobre o consumo da população menos favorecida. Daí porque muito se tem falado na necessidade de promover uma reforma no sistema tributário brasileiro. Neste contexto, assume grande relevância o estudo dos princípios da isonomia e da capacidade contributiva, bem como da ideia de justiça fiscal, instrumentos que são capazes de contribuir para a implementação de uma estrutura de tributação mais justa e equânime.
O presente trabalho se propõe justamente a fazer uma abordagem profunda, embora sem pretensão de ser exauriente, dos princípios da isonomia e da capacidade contributiva e da justiça fiscal. Para tanto, fundamental é a análise do conceito dos referidos institutos, valendo-se, para tanto, do escólio de respeitáveis doutrinadores, buscando-se, outrossim, construir um entendimento mais abrangente, crítico e consciente dos mesmos.
Em verdade, tais institutos estão intimamente relacionados, de modo que é mister estudá-los conjuntamente. Isso porque, em último grau, a justiça fiscal nada mais é do que uma oneração equitativa dos contribuintes, na proporção de sua capacidade contributiva. Em outras palavras, é a concretização do princípio da igualdade em matéria de arrecadação tributária, visando a suprir as necessidades do Estado sem sobrecarregar a população. Assim, a aplicação da capacidade contributiva é um eficiente meio de promover a justiça fiscal, o que, por sua vez, tem como consequência a redução das desigualdades sociais, em obséquio ao princípio da isonomia.
DESENVOLVIMENTO
1. O Princípio da Isonomia e a Capacidade Contributiva
A Constituição de 1988, ao dispor, no art. 5º, caput, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, consagra, em termos amplos, o princípio da igualdade ou da isonomia, segundo o qual todo e qualquer brasileiro tem o direito de ser tratado pela lei de forma equânime, observados os parâmetros fixados pelo ordenamento jurídico. A igualdade que a Constituição busca promover objetiva, precisamente, que casos iguais recebam o mesmo tratamento e que hipóteses distintas sejam tratadas de maneira desigual. Sob esta perspectiva, a desigualdade na lei restará configurada quando uma determinada norma dispensar, de forma não razoável, ou mesmo arbitrária, tratamento igual a pessoas em situações diversas ou tratamento diferente a pessoas que se encontram na mesma condição.
Conforme a doutrina de Alexandre de Moraes, o princípio da igualdade opera em dois planos distintos. De um lado, dirige-se ao legislador, ou ao próprio Poder Executivo, a fim de impedir a edição de leis, atos normativos ou medidas provisórias, respectivamente, que confiram, injustificadamente, tratamento diferente a cidadãos que estejam em situação idêntica. E, por outro lado, visa a assegurar uma aplicação igualitária, pelo intérprete da norma, dessas leis e atos normativos, vedando, com isso, que haja qualquer distinção em atenção ao sexo, à religião, à ideologia política e filosófica, à raça, ou à classe social[1]. Acrescenta o constitucionalista, ainda, que não se pode olvidar que o particular também deve observância ao princípio da igualdade, já que é inconcebível que alguém pratique condutas discriminatórias, preconceituosas ou racistas. É tanto que, caso assim proceda, ficará o indivíduo sujeito à responsabilização penal e civil.
Conclui-se, por conseguinte, que eventual tratamento normativo diferenciado somente será compatível com a Constituição se houver uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim perseguido. E, em sendo assim, como bem sintetiza Hugo de Brito Machado, a verdadeira igualdade reside na proporcionalidade[2], que nada mais é que aplicar critérios racionais e lógicos aos casos concretos, em detrimento de parâmetros subjetivos.
Em matéria tributária, o princípio da isonomia é consagrado no art. 150, II, da CRFB/88, que assim preceitua, com destaques da transcrição:
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;[…]”
Pertinente é a observação que Luciano Amaro faz sobre o dispositivo supracitado, ao pontuar que ele institui não só a igualdade perante a lei, mas também a igualdade perante o legislador. Neste sentido, explana que “nem pode o aplicador, diante da lei, discriminar, nem se autoriza o legislador, ao ditar a lei, a fazer discriminações”[3]. Destarte, pode-se dizer que, em último grau, visa o princípio da igualdade à garantia do próprio indivíduo no bojo do ordenamento jurídico, livrando-o de possíveis perseguições e favoritismos. Em termos práticos, ensina o ilustre doutrinador, quanto à igualdade formal, que
“[…] a igualdade é uma garantia do indivíduo e não do Estado. Assim, se, diante de duas situações que merecem igual tratamento, a lei exigir tributo somente na primeira situação, não cabe à administração fiscal, com base no princípio comentado, tributar ambas situações; compete ao indivíduo que se ligue à situação tributada contestar o gravame que lhe esteja sendo cobrado com desrespeito ao princípio constitucional. Não pode a analogia ser invocada pela administração para exigir o tributo na situação não prevista (CTN, art. 108, § 1º)”.[4]
Alerta Victor Uckmar, no entanto, que
“A existência de desigualdades naturais justifica a criação de categorias de contribuintes sujeitos a diferente tratamento fiscal sempre que ocorram as seguintes circunstâncias: a) todos os contribuintes compreendidos na mesma categoria devem ter idêntico tratamento; b) a classificação em diversas categorias deve encontrar fundamento racional em diferenças reais; c) a classificação deve excluir toda discriminação arbitrária, injusta ou hostil contra determinadas pessoas ou categorias de pessoas; d) a diferença deve comportar uma justa igualdade, sob o aspecto equitativo; e) a diferença deve respeitar a uniformidade e a generalidade do tributo.”[5]
Como visto, o princípio da igualdade está estreitamente ligado à ideia de proporcionalidade. Na seara tributária, esta relação se dá de forma ainda mais intensa, a ponto de a igualdade ser entendida como justiça tributária. Em consequência, tem-se que, quanto à questão da tributação, o princípio da isonomia acaba se confundindo, por vezes, com o da capacidade contributiva. A rigor, porém, o princípio da capacidade contributiva consubstancia algo diverso do princípio da igualdade, sendo aquele, na verdade, corolário lógico deste. É que, como esclarece Hugo de Brito Machado, a capacidade contributiva é apenas um dos critérios de valoração do princípio da isonomia[6].
Resta claro, portanto, que o princípio da capacidade contributiva, pelo qual os impostos devem ser proporcionalmente graduados de acordo com a capacidade econômica do contribuinte[7], não deve ser concebido como mera forma de exteriorização, no Direito Tributário, do princípio geral da igualdade. Corrobora esta tese o fato de existir um preceito constitucional consagrando precisamente o princípio da capacidade contributiva, ao passo que há menção expressa ao princípio da isonomia noutros dispositivos constitucionais, indicando, destarte, que o próprio constituinte estabeleceu esta diferenciação entre os dois princípios. O art. 145, § 1º, da CRFB/88, assim enuncia, in verbis:
“Art. 145. Omissis
§ 1º – Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. […]”
Pertinente crítica à redação do mencionado dispositivo é veiculada por Ives Gandra Martins, que observa que, apesar da imperfeição linguística do parágrafo, que pode suscitar interpretações diversas, a expressão “sempre que possível” refere-se tão somente ao caráter pessoal dos tributos, e não à sua capacidade econômica. Assim, sustenta o doutrinador que a interpretação mais coerente, levando-se em consideração os demais princípios regedores do sistema tributário, é aquela segundo a qual a capacidade contributiva deve sempre ser respeitada, sob pena de restar configurado o confisco, forma clássica de desrespeito ao princípio da capacidade contributiva[8].
Corrobora o referido entendimento a constatação de que enquanto, de fato, nem sempre se mostra possível atribuir a um imposto caráter pessoal, a graduação dos impostos conforme a capacidade econômica do contribuinte é sempre factível. Discorda deste posicionamento, outrossim, Luciano Amaro, para quem a oração “sempre que possível” cabe como ressalva tanto para a personalização, como para a capacidade contributiva, pois “não se pode ler, no preceito constitucional, a afirmação de que os impostos devem observar a capacidade econômica, mesmo quando isso seja impossível”[9].
Discute-se, ademais, quais critérios devem ser levados em consideração para aferir a capacidade contributiva do contribuinte. Fatores como a renda pessoal, o patrimônio e o consumo têm sido apontados como sinalizadores do grau de capacidade contributiva. No entanto, nenhum destes critérios, isoladamente, é capaz de satisfatoriamente mensurar esta capacidade. Sobre o tema, salienta Hugo de Brito Machado que há quem sustente a tese de que a capacidade contributiva deve ser medida pela 'renda monetária líquida', por ele definida como a renda monetária deduzida da quantia considerada como o mínimo indispensável à subsistência do contribuinte e de sua família. Conclui o eminente tributarista, contudo, que melhor é aferir a capacidade contributiva atentando para vários aspectos, dentre os quais merecem destaque a renda monetária, o patrimônio e o consumo[10].
Luciano Amaro ensina, de forma esclarecedora, que a adequação do imposto à capacidade contributiva do contribuinte encontra expressão no princípio da proporcionalidade, segundo o qual o gravame fiscal deve ser diretamente proporcional à riqueza evidenciada em cada situação impositiva[11]. Ele ressalta, porém, que a mera ideia de proporcionalidade expressa apenas uma relação matemática entre o crescimento da base de cálculo e o do imposto, ao passo que a capacidade contributiva reclama mais do que isto, pois exige que se afira a justiça da incidência em cada situação isoladamente considerada, e não somente a justiça relativa entre uma e outra das duas situações. Sendo assim, “o princípio da capacidade contributiva, conjugado com o da igualdade, direciona os impostos para a proporcionalidade, mas não se esgota nesta”[12].
Vale salientar, por fim, que o princípio da capacidade contributiva somente pode ser compreendido como manifestação exata da isonomia quanto aos tributos com finalidade eminentemente fiscal. Isto porque, quanto aos tributos com fins extrafiscais, a observância deste princípio é mitigada – e não completamente excluída, já que o “mínimo vital” sempre deverá ser preservado – diante da necessidade de perseguir outros objetivos, de modo que, “em razão da extrafiscalidade, autorizada está a prescindibilidade da graduação dos impostos consoante a capacidade econômica do contribuinte, para que se atinjam finalidades outras que não a mera obtenção de recursos, homenageadas pela ordem constitucional”[13]. Assim, no bojo de uma tributação extrafiscal em que se busque, por exemplo, assegurar a função social da propriedade, proteger o meio ambiente ou incentivar a cultura, pode o Poder Público derrogar parcialmente o princípio da capacidade contributiva, sem que isto importe em ofensa ao princípio da isonomia.
2. A justiça fiscal
O significado e a abrangência do termo “justiça fiscal” não são pacíficos na doutrina. O próprio conceito de justiça, por si só, tem gerado intensos debates, mormente de cunho filosófico, desde a antiguidade. Daí porque, apesar de não ser o foco do corrente estudo, não se pode discorrer acerca da justiça fiscal sem que antes se faça breves considerações sobre a ideia de justiça em sentido amplo. Salienta-se, no entanto, que tal tema demanda, dada a sua alta complexidade, uma análise muito mais detida e aprofundada, mas, como este não é o objeto deste trabalho, o que se pretende é tão somente elucidar os aspectos necessários a uma melhor compreensão da noção de justiça fiscal.
Platão relaciona o conceito de justiça ao comportamento do ser humano, de modo que sua ideia de justiça acaba assumindo um viés antropológico, a partir da análise do que seria o comportamento do homem justo e do homem injusto. Ademais, virtude, verdade e felicidade, em Platão, são adjacentes à ideia de justiça. Sobre o tema, elucidativa é a seguinte passagem, presente num de seus diálogos:
“Os homens afirmam que é bom cometer a injustiça e mau sofrê-la, mas que há mais mal em sofrê-la do que bem em cometê-la. Por isso, quando mutuamente a cometem e a sofrem e experimentam as duas situações, os que não podem evitar um nem escolher o outro julgam útil entender-se para não voltarem a cometer nem sofrer a injustiça. Daí se originaram as leis e as convenções e considerou-se legítimo e justo o que prescrevia a lei. É esta a origem e a essência da justiça: situa-se entre o maior bem – cometer impunemente a injustiça – e o maior mal – sofrê-la quando se é capaz de vingança. Entre esses dois extremos, a justiça é apreciada não como um bem em si mesma, mas porque a impotência para cometer a injustiça lhe dá valor.”[14]
Aristóteles, a seu turno, identifica, no quinto capítulo da obra Ética a Nicômaco, várias espécies de justiça: justiça doméstica, justiça política, justiça como parte da virtude, justiça corretiva, justiça distributiva, justiça legal. Assim, conforme a concepção aristotélica, a justiça não é vista em si mesma, mas sim de forma contextualizada, sempre se devendo considerar os polos da relação. Para iniciar seu estudo, o filósofo parte da seguinte premissa:
“[…] todos os homens entendem por justiça aquela disposição de caráter que torna as pessoas propensas a fazer o que é justo, que as faz agir justamente e desejar o que é justo; e do mesmo modo, por injustiça se entende a disposição que as leva a agir injustamente e a desejar o que é injusto.”[15]
Interessa aqui, no entanto, aquilo que ele entende como justiça distributiva, nos seguintes termos:
“Em toda espécie de ação em que há o mais e o menos também há o igual. Se, pois, o injusto é iníquo, o justo é equitativo, como, aliás, pensam todos mesmo sem discussão. E, como o igual é um ponto intermediário, o justo será um meio-termo. […] O justo, por conseguinte, deve ser ao mesmo tempo intermediário, igual e relativo (isto é, para certas pessoas). […] Eis aí, pois, o que é justo: o proporcional; e o injusto é o que viola a proporção.”[16]
Por outro lado, enquanto para Aristóteles a justiça poderia ser ruim tanto por sua falta, como pelo excesso, sendo necessário, portanto, buscar um equilíbrio, uma justa medida, para Platão, assim como ocorreria quanto à virtude, quanto mais justiça o homem praticar, melhor. Isto porque, entende Aristóteles que “se o injusto é em alguns casos bom, então o que é justo também é em alguns casos mau; e, se o que acontece justamente é em alguns casos mau, também o que acontece injustamente é em alguns casos bom”[17]. Percebe-se, pois, que Aristóteles relativiza a ideia de justiça, relacionando o seu conteúdo às peculiaridades do caso concreto. Sob esta ótica, é preciso buscar qual é o melhor caminho em atenção a cada situação, porque a aplicação da justiça nem sempre seria a melhor escolha[18].
O fato é que, apesar de ser possível afirmar que o conceito de justiça é o mais fundamental do Direito, trata-se, também, de seu conceito mais abstrato[19], possuindo um conteúdo valorativo altamente indeterminado. Para que um ordenamento jurídico possa ser tido como justo, é preciso que seja orientado por princípios que permitam a instituição de regras, critérios e padrões. Assim, os princípios funcionam como parâmetros que norteiam o aplicador do direito, permitindo que haja generalidade sem arbitrariedade, ao criarem uma medida uniforme. A consagração de princípios por um ordenamento, portanto, visa a sanar os problemas que poderiam decorrer da impossibilidade de o legislador prever e regular todas as situações possíveis, evitando lacunas e proporcionando um tratamento isonômico e imparcial aos destinatários da lei.
A existência de princípios, porém, é somente o pressuposto básico da justiça, porque realiza apenas a justiça formal. É que, para que haja justiça material, não basta que todos sejam tratados pela lei da mesma forma, sendo necessário também que os princípios que inspiraram a criação da norma e os critérios nela fixados sejam igualmente justos. Tais critérios, por exemplo, não podem dar margem a favorecimentos e discriminações infundados e irrazoáveis, sob pena de a norma ser considerada injusta. Neste sentido, ensina Weiss que “as pequenas regras excepcionadoras ou formalistas são usadas para produzir privilégios tributários, afastando os grandes princípios, como a generalidade e a capacidade contributiva”[20]. Assim, é possível a previsão legal de um discrímen, uma benesse, ou mesmo um privilégio, desde que haja justificava plausível para tanto, de modo que, mediante uma aparente discriminação, esteja sendo perseguido um fim maior.
É de se ressaltar, por fim, que não existe um critério de justiça uniforme, ou seja, aplicável a todo e qualquer ramo do Direito. É necessário, portanto, que cada um desses ramos busque realizar a justiça elegendo os seus próprios critérios. E mesmo que muitos princípios sejam aplicáveis a vários ramos do Direito, acabarão por se manifestar de maneira peculiar no âmbito normativo de cada um, ensejando, justamente, a positivação de critérios específicos.
Tecidas essas breves considerações gerais, passa-se à análise de conceitos mais específicos, trazendo a ideia de justiça para o campo do Direito Tributário. Sérgio Ricardo Ferreira Mota adverte, de logo, que as ideias de justiça fiscal e de justiça tributária não se confundem, adotando, pois, a classificação proposta por Samuel da Silva Mattos, em sua tese de doutorado[21]. Para ele, a justiça pública subdivide-se em três espécies: a justiça fiscal, a justiça tributária e a justiça social. Assim, enquanto a justiça fiscal se realizaria precisamente no momento da elaboração do orçamento público, ao buscar um equilíbrio entre a receita e a despesa, a justiça tributária consistiria num sistema normativo tributário justo, com base nos princípios e regras previstos na Constituição.
A justiça social, por sua vez, relaciona-se com a destinação atribuída à renda arrecadada, de modo que se efetivaria mediante a aplicação desses recursos com maior ênfase nos mais necessitados, e em menor grau quanto aos mais abastados. A problemática da justiça social se tornou um dos temas mais relevantes da atualidade, tendo, inclusive, sido inserida na Constituição de 1988. Da leitura do art. 193, da CRFB/88, depreende-se que a ordem social nacional tem a justiça social como um de seus objetivos. A expressão injustiça social, a seu turno, refere-se a situações em que o indivíduo se depara com privações e vulnerabilidade social. Sendo assim, “entende-se como injustiça social todo acontecimento capaz de atingir a dignidade humana, dentre elas a pobreza, a concentração de renda e a exclusão social”[22], bem como o não acesso a serviços públicos básicos, como educação e saúde. Observa-se, então, que as ideias de justiça social e de justiça fiscal estão intimamente relacionadas, à medida que a tributação pode gerar injustiças sociais ao afastar a participação da sociedade na construção de uma política tributária socialmente justa[23].
Clovis Ernesto de Gouvêa entende por justiça fiscal a distribuição equitativa da carga tributária, na justa medida imprescindível à prestação dos serviços públicos pelo Estado, respeitada a capacidade contributiva de cada um dos indivíduos componentes do universo econômico nacional[24]. Esta definição é a que melhor se amolda àquela justiça fiscal que o sistema tributário pátrio deve buscar realizar e, por isso, será aqui adotada. Portanto, em último grau, a justiça fiscal nada mais é do que uma oneração equitativa dos contribuintes, na proporção de sua capacidade contributiva. Em outras palavras, é a concretização do princípio da igualdade em matéria de arrecadação tributária, visando a suprir as necessidades do Estado sem sobrecarregar a população.
A justiça fiscal deve ser o valor supremo de um Estado Democrático de Direito, que depende de impostos para se manter, e também do conjunto de contribuintes que o integra[25]. Sabe-se que o dever fundamental de pagar impostos alcança toda a sociedade e entes privados – já que “a tributação é fato jurídico-econômico-social que transcende a vontade individual”[26] –, mas a capacidade que cada um tem de suportar a carga tributária imposta pelo Estado é diferente. A busca pela justiça fiscal, vale frisar, norteou a elaboração da Constituição vigente, consoante se depreende do vigoroso discurso do constituinte Osmundo Rebouças, ainda na fase de reuniões das subcomissões da Assembleia Nacional Constituinte:
“Outro objetivo que nós queremos alcançar aqui é o de fazer mais justiça fiscal com o nosso sistema tributário. Tributar ganho de capital com mais vigor, é introduzir na Constituição a possibilidade de se estabelecer imposto sobre patrimônio líquido das pessoas físicas, ou seja tributar esses nababos, essas fortunas exageradas que hoje são verdadeiros emirados, pessoas que não sabem o que possuem, nada pagam da riqueza acumulada. Nos ganhos de capital também temos muito a avançar. […] Existem verdadeiras injustiças fiscais. Nós temos de aproveitar a ocasião histórica da Constituição e lutar para corrigir essas distorções, que são revoltantes.”[27]
O livre desenvolvimento econômico e a liberdade de iniciativa, pressupostos básicos do modelo capitalista de produção, têm como consequência a desigual distribuição de riquezas, gerando as chamadas classes econômicas. Há várias outras facetas da desigualdade – de gênero, racial, regional, etc. –, que, juntas consideradas, culminam no gênero “desigualdade social”. É com este quadro de desigualdades que o Direito Tributário se depara e é neste contexto que o sistema tributário pátrio deve almejar uma repartição da carga tributária mais adequada, tendo como consequência uma melhor distribuição da renda e da riqueza, e representando um avanço na concretização do ideal de justiça fiscal.
Salema Ferreira adverte que “a tributação, como papel ativo do Estado, quando indevidamente gerida, pode permitir e induzir a notável redução da renda, aumento da pobreza e da concentração de renda, que implicam na miséria geradora de males sociais, talvez, insolúveis”[28]. Neste ponto, é interessante transcrever um trecho do comentário de Virgílio Guimarães, membro da Assembleia Nacional Constituinte, instalada em 1987, numa das reuniões da Subcomissão de Tributos, Participação e Distribuição das Receitas:
“O mesmo raciocínio desenvolvo com relação aos impostos sobre patrimônio, que também é uma forma de ensejar justiça fiscal. Sempre que o assunto é discutido, como agora, surgem algumas dúvidas. […] O essencial é haver uma deliberação política no sentido de reverter a estrutura tributária brasileira a fim de torná-la socialmente mais justa. […] Parece-me que uma questão central seria a decisão política: Qual vai ser nossa orientação nosso direcionamento, se é para uma mentalidade mais fiscalista ou de justiça social?”[29]
De toda forma, o fato é que, a fim de efetivar o princípio da igualdade em matéria tributária, a justiça fiscal pressupõe que a carga total de tributos seja distribuída equitativamente entre os cidadãos, na medida da capacidade contributiva de cada um, de forma que os ricos contribuam proporcionalmente mais que os pobres, observados os limites impostos pelo sistema constitucional tributário à oneração fiscal do contribuinte. É mister, destarte, que os encargos tributários sejam igualmente suportados pelos cidadãos, de forma a serem sentidos por cada contribuinte na mesma intensidade, afinal, “o tributo representa modalidade de intervenção estatal na riqueza individual e não pode ser mero mecanismo de atribuição onerosa da carga tributária à sociedade”[30].
CONCLUSÃO
Com a desproporcional oneração dos cidadãos mais pobres, a forma como se encontra estruturada a tributação no Brasil fomenta o agravamento do problema da concentração de renda, separando cada vez mais os dois extremos. Assim, justiça fiscal mostra-se como verdadeiro clamor num país em que a parcela menos favorecida da população é a fonte por excelência dos recursos que financiam o aparato estatal. Neste contexto, deve-se buscar construir um sistema tributário mais justo – em que os pobres paguem menos impostos, principalmente sobre o consumo, e que os ricos contribuam mais, tanto sobre a renda, como sobre acumulação de riquezas – e que prime pela observância dos princípios da isonomia e da capacidade contributiva.
Conclui-se, pois, que a justiça fiscal pressupõe a utilização da política tributária como instrumento de atenuação das desigualdades sociais, por meio da adequada distribuição da carga tributária entre os contribuintes. Neste diapasão, quanto maior for a riqueza acumulada do indivíduo e a sua capacidade de produzir mais riqueza, ou seja, quanto maior a capacidade econômica, mais ele deverá contribuir para arcar com as despesas públicas.
Por fim, ressalta-se que uma justa tributação, além da adequada repartição da carga tributária, exige que o ônus imputado ao contribuinte seja socialmente justo, o que é verificado quando há estreita observância ao caráter pessoal do tributo e à capacidade contributiva individual, que, como visto, está no cerne do princípio da isonomia tributária. Daí porque a política tributária deve se valer não só dos mecanismos já consagrados de promoção da justiça fiscal, como a tributação direta, a seletividade e a progressividade, mas também de novos e eficazes instrumentos, sempre na busca de um sistema tributário mais justo e equânime.
Advogada. Graduada pela Faculdade de Direito do Recife. Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp
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