1- Introdução
Em meio a toda uma polêmica sobre a questão da titularidade da Investigação Criminal no sistema processual penal brasileiro, vem a lume a Lei 12.830/12 que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia.
Tendo em vista o contexto em que surge a referida legislação faz-se necessário salientar o entendimento deste autor acerca da celeuma criada sobre a investigação criminal levada a efeito pelo Ministério Público ou outras instituições.
Em primeiro lugar é preciso ressaltar que o só fato de existir esse dissenso entre as instituições, essa divisão deletéria dos organismos estatais que têm em comum a missão de assegurar a legalidade, a liberdade e outros bens jurídicos tutelados, é altamente lamentável.
Embora o que se vá dizer neste momento já se tenha tornado uma espécie de bordão que beira ao clichê, nunca é demais lembrar que enquanto o Estado se divide o crime se organiza ou, se não chega a se organizar, ao menos cada infrator cuida de assegurar sua impunidade sem se preocupar em denegrir ou atrapalhar os outros, o que já é uma grande vantagem!
A nova lei remexe em duas questões básicas, uma mais genérica e outra específica, quais sejam:
a)A questão da exclusividade das Polícias Civil e Federal para a investigação criminal (genérica);
b)O problema da possibilidade ou não de investigação criminal capitaneada pelo Ministério Público (específica).
Antes, portanto, de entrar no estudo dos dispositivos da Lei 12.830/13 é preciso abordar, ainda que sucintamente, esses questionamentos e dar-lhes respostas adequadas.
Quanto à questão da exclusividade da atribuição para a investigação criminal, já é razoavelmente assentada sua inexistência. Mesmo no que tange à Polícia Federal para a qual é prevista a “exclusividade” do exercício da função de Polícia Judiciária da União, não se pode olvidar a existência de outros órgãos com poderes investigatórios, inclusive criminais. A exclusividade dada à Polícia Federal é a do exercício de “Polícia Judiciária” e não necessariamente o de exercer todas as investigações possíveis no âmbito federal. Trocando em miúdos, não pode haver outra “Polícia Judiciária” da União, mas não se diz nada a respeito do exercício de investigações criminais por outros órgãos, desde que legalmente previstas e reguladas.
Sem pretender que a legislação ordinária se sobreponha à constitucional, o que seria o cúmulo do absurdo, é preciso acenar com o artigo 4º., Parágrafo Único, CPP que estabelece “in verbis”:
“A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.
Parágrafo Único – A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função”. [1]
Não se trata de sobrepor o Código de Processo Penal à Constituição Federal, mas simplesmente de constatar que a Carta Magna não traz em seu bojo qualquer impedimento à recepção do dispositivo supra transcrito. Dessa maneira, torna-se cristalino que não há exclusividade estabelecida nem na Constituição, nem na legislação ordinária para a atividade de investigação criminal.
É apenas uma questão de fato que as Polícias Judiciárias dos Estados e da União realizam a grande maioria senão por vezes a totalidade das investigações criminais, o que pode dar essa aparência enganosa de exclusividade. Mas, isso não se refere à lei e sim à estrutura estatal das instituições. Se o que ocorre de fato tivesse o condão de moldar a interpretação legal, então, por exemplo, nossa execução penal seria regida pelo “Princípio da Desumanidade” (sic); a população não teria direitos à saúde, educação e segurança pública de qualidade; o uso e posse de drogas estaria permitido, senão também seu comércio; o Jogo do Bicho não seria contravenção; a administração pública seria regida pelo “Princípio do Desperdício” (sic), da “Ineficiência” (sic) e, quem sabe, da “Improbidade” (sic).
Por outro lado é preciso reconhecer que o Fato influi e deve influir no Direito, aliás, como já desde antanho têm apontado as teorias culturalistas onde se encontram as abordagens tridimensionais (1940) tais como, em solo pátrio, a de Miguel Reale. [2] Assim também é preciso trazer à baila a linha de pensamento do “Realismo Jurídico”, defendida entre outros pelo Dinamarquês Alf Ross. [3]
Chama-se a atenção para esse ponto porque o fato de que a grande maioria das investigações seja realizada pelas Polícias Judiciárias, não só no Brasil, mas em todo o mundo. O fato de que em qualquer lugar que seja dotado de um processo penal minimamente garantista e eficiente existe uma fase pré – processual de filtro para futura ação penal, na qual há intensa participação da Polícia Judiciária, está a apontar clara e induvidosamente para a relevância e imprescindibilidade dessa instituição, sem necessariamente significar que seja ela, por lei, incumbida com exclusividade da investigação.
Essa observação, por incrível que pareça, precisa ser feita porque em meio a uma verdadeira guerra de vaidades institucionais (e a vaidade ou orgulho é um pecado capital) tem sido comum o ataque belicoso, calunioso e falseado que dá a entender que as Polícias Judiciárias não são relevantes ou não cumprem com suas funções, apresentando outras instituições (v.g. o Ministério Público) como supostos “salvadores da pátria”.
É sintomático desse estado de coisas o nível rasteiro que se tem imprimido às discussões acerca da PEC 37, por exemplo, apelidando-a de “PEC da Impunidade”. Nessa guerra de vaidades a ira (outro pecado capital) que obnubila o pensamento faz com que se olvide a existência de presídios e cadeias superlotados de condenados pela Justiça Criminal, condenações estas que advieram de investigações criminais, em sua quase totalidade, levadas a efeito pelas Polícias Judiciárias. Também obscurece a consciência de que há milhares e milhares de Mandados de Prisão a serem cumpridos, que se o fossem imediatamente, nem sequer haveria espaço físico para acomodar tantos condenados. Mandados estes também, em sua quase totalidade, oriundos de investigações produzidas pelas Polícias Judiciárias. De que impunidade se estaria falando então? Talvez da imensa cifra negra constatada pelos estudos de criminologia? Sim, há muitos crimes que ocorrem e sequer são investigados, mas não o são pela Polícia, nem pelo Ministério Público ou quaisquer outros órgãos. A Cifra Negra é um fenômeno fisiológico do Sistema Penal no Brasil e no mundo que pode ser conceituado como "um campo obscuro da delinqüência", consistindo na "existência de um bom número de infrações penais, variável segundo a sua natureza, que não seria conhecido 'oficialmente', nem detectado pelo sistema e, portanto, tampouco perseguido". [4] Ou seria da chamada cifra dourada, que "representa a criminalidade de "colarinho branco", definida como práticas anti – sociais impunes do poder político e econômico (a nível nacional e internacional), em prejuízo da coletividade e dos cidadãos e em proveito das oligarquias econômico – financeiras"? [5] Mas, novamente se trata de sintoma encontrável na fisiologia de qualquer Sistema Criminal. Sintoma este de responsabilidade não somente da natureza seletiva ínsita ao Direito Criminal, mas também das próprias instituições que compõe todo o sistema de persecução penal, não somente as Polícias Judiciárias, mas também as Polícias Preventivas, o Ministério Público e o Judiciário, afora outras instâncias sociais e governamentais.
Se há, como realmente há, uma imensa cifra negra e outra dourada, mesmo que se considere, por exemplo, que o Ministério Público não possa investigar, assim como ocorre induvidosamente com o Judiciário pelos Princípios da Inércia e da Imparcialidade, qual seria a justificativa para que esses órgãos, diante de tal situação não exerçam seus poderes incontestes de requisição e então solucionem essa lacuna?
Por outro lado, se o Ministério Público pode investigar e o tem feito, inobstante as variadas discussões a respeito da legitimidade de sua atuação, então por que essas cifras não se reduzem? Por que eminente e tradicional político paulista investigado diversas vezes pelo Ministério Público e até preso provisoriamente segue impune, livre e acobertado pelo Princípio da Presunção de Inocência? O que aconteceu, por exemplo, nesse caso? Qual foi a diferença entre a suposta incapacidade das Polícias Judiciárias e os especiais dotes dos órgãos de investigação do Ministério Público? Por que nem a Polícia, nem o Ministério Público conseguiram prender definitivamente ou condenar? Talvez pela inocência? Talvez pela incompetência generalizada, onde o roto fala do esfarrapado? Talvez pela extrema astúcia do infrator? Sabe-se lá!
A vaidade e a ira cegam ao ponto em que as instituições, como se diz popularmente, “dão tiros nos próprios pés”. Senão vejamos: quando se afirma que a investigação pela Polícia Judiciária não é eficiente ou suficiente, pretendendo jogar nas costas largas desse órgão toda responsabilidade por mazelas seculares, o que permanece oculto é que um Inquérito Policial, por exemplo, tem andamento o tempo todo sob os olhos do Ministério Público e do Judiciário. Pelo menos de trinta em trinta dias o Inquérito passa pelo Fórum com pedido de dilação de prazo, quando o Ministério Público tem vista dos autos, bem como o Judiciário. Tanto o Ministério Público como o Judiciário têm poderes de “controle externo” (o primeiro) e correicional (o segundo) sobre a Polícia Judiciária. Então, se a investigação criminal por parte da Polícia Judiciária não anda bem, se é mal direcionada, se apresenta indícios de parcialidade, se é morosa sem justificativa plausível, a culpa é somente da Polícia Judiciária? Onde fica a parcela de responsabilidade do Judiciário e do Ministério Público nessa situação? Por que ela é simplesmente afastada dos debates? Por que um órgão como o Ministério Público vem se apresentar como o “salvador da pátria” se investigar, quando já tem em suas mãos poderes para requisitar, para colocar investigações eventualmente descarriladas em seus devidos trilhos por meio do controle externo? E, principalmente, por que não faz isso já que é o “salvador da pátria”? A verdade é que longe, muito longe de expressar a velha cantilena das antigas missas em latim “mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa”, hoje, pessoas e instituições preferem a chamada “Filosofia de Homer Simpson”: “se a culpa é minha, eu ponho em quem eu quiser”!
De outra banda o Ministério Público, no que diz respeito à probidade administrativa e ao combate a crimes e irregularidades da administração pública tem um instrumento poderoso na Ação Civil Pública e no Inquérito Civil, onde não há qualquer sombra de dúvida quanto ao seu poder investigatório. É dotado de instrumentos aí bem mais eficientes para o combate da corrupção e isso já há muitos e muitos anos. Então por que não solucionou ainda essas questões? Por que boa parte dos Inquéritos Civis são arquivados sem base sequer para iniciar a ação? Por que muitas ações redundam em nada? Será a instituição incompetente (no sentido vernacular)? Será inquinada por vícios como a corrupção? Em meio às discussões onde se perde o norte devido à vaidade e à ira, é comum essa espécie de troca de farpas em que os dois lados saem lascados e têm a ilusão de estarem ganhando alguma coisa ao denegrirem e serem denegridos. Alguém já disse que na guerra não há vencedores jamais, mas ninguém aprende nunca!
Há corrupção, negligência, ingerência política e incompetência na Polícia? Sim. Há corrupção, negligência, ingerência política e incompetência no Ministério Público? Sim. Há corrupção, negligência, ingerência política e incompetência no Judiciário? Sim. E nos demais órgãos governamentais que se podem envolver em apurações criminais é diverso? Não.
Essas afirmações significam então que as instituições mencionadas são corrompidas? São um prenúncio apocalíptico? É claro que não. Qualquer instituição humana tem suas falhas e mazelas. Quando esses órgãos que deveriam atuar em conjunto em busca da satisfação da Justiça e da defesa da sociedade passam a se digladiar com ofensas recíprocas, usando novamente de um dito popular, estão a “cuspir para cima” e é em si mesmos que toda a gosma vai cair e escorrer.
Cria-se inclusive um clima de desinformação que rapidamente se expande pela massa ignara e leiga quanto aos trâmites de uma persecução penal ao ponto de que dia desses este autor presenciou uma entrevista em que um popular, contaminado pela mais profunda ignorância, ao ser indagado sobre o poder investigatório do Ministério Público, formulou em resposta uma pergunta digna de um beócio:
“Mas, se o Ministério Público não puder investigar, então quem vai investigar”? (sic).
Ora, quem sempre investigou: a Polícia! Quem investiga naquele momento em que a pergunta – resposta é formulada! Isso dá uma ideia da situação de absoluta imbecilização em que se encontra a população diante dessa questão. Imbecilização produzida pela disseminação de informações desencontradas intencionais de parte a parte sem a mínima intenção de esclarecer, mas sim de obscurecer cada vez mais a consciência das pessoas.
O clima criado por ambas as partes é de parcialidade, de postura defensiva e, o que é pior, de disseminação de informações inverídicas, de criação de um clima de terror, de falsificação da realidade com rascunhos de paraísos e infernos artificiais que somente iludem os leigos, criam imbecis engajados em causas sobre as quais somente têm informações distorcidas. O debate fica preso na questão de quem deve ou pode investigar, enquanto problemas muito mais relevantes são deixados de lado. Essas questões dizem respeito às condições dadas à investigação, seja ela levada a efeito por quem quer que seja.
Um exemplo típico de embate inútil, mas mais que isso, contraproducente mesmo, é a ideia de tornar o Inquérito Policial um pressuposto necessário para o Processo Criminal, diversamente do que hoje ocorre quando uma das características desse procedimento é sua dispensabilidade. Este autor é Delegado de Polícia, mas não é imbecil e, acima de tudo, é estudioso do Direito e cidadão brasileiro. Por isso não compreende como pode prosperar uma ideia como essa, que somente pode trazer mais morosidade ao que já é moroso por natureza. Se hoje um Promotor, tendo em mãos informações necessárias para ofertar denúncia (indícios suficientes de autoria e prova do crime), pode elaborar sua peça e esta ser recebida, sem a formalidade de ter de primeiro requisitar um Inquérito Policial, o qual será despachado pela Autoridade Policial, registrado em livros, autuado e relatado para depois retornar ao Fórum, numa perda de tempo de aproximadamente uns 3 meses, por que se iria criar essa espécie de obstáculo agora? Este autor quando recebe por vezes requisições de Inquéritos Policiais em que a prova é meramente documental e já está produzida integralmente com totais condições de denúncia direta pelo Ministério Público, sente uma profunda melancolia pela perda de tempo e recursos que desse procedimento automatizado resulta. E querem transformar isso em lei! Pelo amor de Deus!
Mas, tudo isso é fruto de uma guerra de vaidades, de uma busca insensata para legitimar e demonstrar a utilidade das instituições envolvidas quando, na verdade, é insofismável a importância de todas elas. Quem pode questionar a utilidade da Polícia em geral e da Polícia Judiciária em particular? Ou do Ministério Público? Ou do Judiciário? Há uma irracionalidade que perpassa todo esse embate de egos pessoais e institucionais, irracionalidade essa comum a qualquer desentendimento sem justificativa que, na linguagem policial tem recebido um nome interessante: “desinteligência”. É realmente um nome muito bom para isso tudo. Uma grande, ingente “desinteligência” no sentido mesmo da falta de inteligência que contamina e domina por todos os lados. É a burrice imperando com sua imponência de orelhas compridas e apontadas para o céu longínquo, onde devem estar as virtudes necessárias para sua superação, longe, bem longe…
A Polícia quer exclusividade nas investigações, o Ministério Público quer investigar. Não é que a Polícia esteja com sobra de recursos humanos e materiais para a execução de seus fins, prescindindo de qualquer auxílio, nem que o Ministério Público esteja dando conta tão sobejamente de todas as suas variadas funções a ponto de estar sobrando tempo, recursos humanos e materiais para se imiscuir em investigações criminais. Não, nada disso. Mas, cada um se agarra doentiamente ao seu naco de suposto poder e retesa os músculos e range os dentes.
Cada um dos contendores se apresenta como o portador de um “mundo melhor”, de uma “solução miraculosa” para todos os males que assolam a pátria.
Neste ponto é preciso recordar que sempre que alguma pessoa ou grupo se intitulou como “salvador da pátria”, como “portador da fórmula para um mundo melhor”, o que resultou não foi nenhuma salvação e nada de bom. Esse é sempre o começo para a concentração de poderes em alguém ou em alguma instituição e, em seguida, para a destruição de todo o edifício de garantias individuais existentes ou pretendidas. Os exemplos históricos são abundantes: líderes carismáticos como Adolf Hitler, Mao Tse Tung, Fidel Castro, Josef Stalin, Vladimir Ilitch Lênin, Benito Mussolini ou instituições como a Igreja na Inquisição; o Partido Comunista na antiga União Soviética; o Exército Vermelho na União Soviética; o Khmer Vermelho de Pol Pot no Camboja; o Partido Nazista, Nazi ou Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, dentre outros. O resultado é sempre o mesmo: concentração de poder, abuso, violações de Direitos Humanos, morte, destruição. Por isso, um conselho sábio: quando alguém ou alguma instituição aparecer na sua frente dizendo que vai construir um mundo melhor, fuja como o demônio foge da cruz, se esconda debaixo da cama, faça qualquer coisa, mas jamais acredite bovinamente nessa espécie de discurso.
Como já externado em outro trabalho, [6] este autor não considera adequada a investigação criminal conduzida pelo Ministério Público por uma série de questões de ordem puramente jurídica, as quais se enumera a seguir sem adentrar em desenvolvimento que não cabe neste momento:
a) O óbice da legalidade consistente no fato concreto de que não existe lei alguma que regule essa espécie de investigação. É indefensável pretender que uma Resolução (Resolução 13/06 do Conselho Nacional do Ministério Público) possa fazer as vezes de “lei” processual penal, a qual é de competência privativa da União através de “Lei Federal” (artigo 22, I, CF). Portanto, não se pode admitir que um órgão estatal de tamanha relevância e dignidade atue à margem da lei e da Constituição, ou seja, atue “marginalmente”. E não se pode imaginar que eventual arrimo constitucional para esse suposto poder investigatório ministerial seja suficiente para que o órgão o coloque em prática sem uma lei que o regulamente. É sabido, até por um jejuno primeiro anista de Direito, que a Constituição Federal não é Código de Processo Penal. Se essa atribuição pode ser extraída do texto constitucional, então se deve primeiro promulgar uma lei que regulamente a investigação ministerial para depois poder realizá-la de forma legítima.
b) A questão da imparcialidade, consistente no fato de que em um sistema acusatório ideal é desejável que sejam separadas as quatro funções da persecução penal, quais sejam: investigação, acusação, defesa e julgamento. Então é desejável que um órgão isento faça a investigação, outro formule a convicção sobre a denúncia ou não, outro exercite a plena defesa e um último profira a decisão do caso. A confusão de funções cria desequilíbrio e exige do homem (v.g. do Promotor) aquilo que somente se pode esperar de deuses. E tem sido muito comum que o mesmo Promotor que investiga formule a peça acusatória e siga no processo até o fim. Note-se, inclusive, que isso entra em colisão com disposição expressa do Código de Processo Penal vigente. Segundo o artigo 252, II, CPP, o Juiz fica impedido de processar e julgar uma causa onde tenha atuado anteriormente na qualidade de Autoridade Policial. Pois bem, as mesmas normas de impedimento e suspeição servem para o Ministério Público nos termos do artigo 258, CPP. Portanto, se o Promotor era Delegado do mesmo caso, não pode nele atuar. Por que poderia investigar na qualidade de Promotor e ele mesmo acusar? Seria a Súmula 234 do STJ um permissivo, na medida em que afirma que a “participação” do membro do Ministério Público na fase investigatória não o impede ou torna suspeito para a denúncia? A resposta óbvia é que não. A Súmula trata somente da participação, pois que o Ministério Público sempre “participa” da fase investigatória (v.g. manifestações em pedidos de prazo durante todo o andamento do feito; manifestações em prisões provisórias e outras medidas cautelares; requerimentos de diligências ou cautelares na fase investigatória; eventuais acompanhamentos de diligências policiais tais como interrogatórios e oitivas de testemunhas juntamente com o Delegado que preside o feito; acompanhamento facultativo previsto na Lei de interceptações telefônicas quanto a essas diligências etc.). Mas, “participar” não é o mesmo que “conduzir” ou “presidir”, muito menos ser a Autoridade Policial ou alguém que atua tal e qual.
Essas parecem ser as duas principais motivações jurídicas para o impedimento de uma investigação ministerial no atual estado da arte da legislação brasileira.
Não obstante, se algum dia for satisfeita a legalidade, ou seja, promulgando-se uma legislação autorizadora e reguladora da Investigação Ministerial, não se vê qualquer óbice a que mais um órgão atue na repressão à criminalidade. Agora, um requisito que se considera imprescindível é que o Promotor que investiga não seja o mesmo que formula o juízo de convicção para a acusação ou arquivamento e muito menos o que prossiga no processo.
Por que ao invés de perpetuar esse embate retratado, por exemplo, na PEC 37, visando impedir o Ministério Público de investigar, não se concentram as forças em legalizar essa investigação, em normatizá-la adequadamente, inclusive prevendo seus limites e controles externos? Por que não se prevê legalmente e se institucionaliza a viabilidade de investigações paralelas entre as Polícias Civil e Federal e o Ministério Público ou em conjunto, sempre preservando a imparcialidade deste último, mediante o impedimento para o futuro processo. A previsão de atuações conjuntas e a formação de eventuais “forças – tarefa” para casos mais complexos seria muito bem vinda, ensejando uma aproximação das instituições no interesse público, ao reverso da atual situação de hostilidades recíprocas.
Seria uma legislação como essa prejudicial às investigações já levadas a efeito à fórceps pelo Ministério Público? Não. Bastaria que fosse prevista sua aplicação “ex nunc”, validando as investigações já realizadas e inclusive reconhecidas como legítimas pelo STF. Embora este autor discorde dessa posição do Pretório Excelso, o fato é que ela existe e, portanto, pode salvar a investida do Ministério Público na seara investigativa, procedida, na visão deste subscritor, de forma ilegal. Mas, a visão deste subscritor não apaga as decisões do STF.
Ainda nessa toada de correção de rumo no debate sobre a investigação criminal seria de grande interesse público que o enfoque pudesse finalmente ser voltado para, como já se afirmou acima, as condições de investigação e não para quem deve ou pode investigar. Nesse passo, as instituições e pessoas que a compõem deviam unir esforços e não se digladiar. Deveriam usar de toda sua força política para ensejar a melhoria das condições materiais, pessoais e de garantias a todo aquele incumbido da presidência de uma investigação criminal. Esse esforço deve ser conjunto porque o interesse é comum, mais que isso, visa o bem comum.
É preciso otimizar os recursos humanos e materiais da Polícia Científica para que cada vez mais as perícias possam trazer elementos para a elucidação criminal e cada vez menos o suspeito seja tomado como fonte de extração de provas e informações. Todos os órgãos incumbidos da investigação criminal precisam ter pessoal suficiente para conduzir com qualidade seus trabalhos, devendo inclusive ser-lhes oportunizada uma formação contínua com treinamento, especializações, centros de apoio operacional etc. É imprescindível investir em inteligência, na formação de uma rede de informações disponível para todos os órgãos policiais e investigativos de forma compartilhada e alimentada conjuntamente, bem como de abrangência nacional e não compartimentalizada em cada órgão policial ou unidade da federação.
Finalmente, faz-se mister que se tome consciência de que ao invés de contrapor aos Delegados de Polícia a fragilidade da falta de garantias asseguradas ao Ministério Público e ao Judiciário para o exercício de suas nobres e árduas funções, se deveria empreender uma incansável luta para a conquista dessas mesmas garantias, a fim de que a investigação criminal, seja levada a efeito por quem quer que seja, tenha condições de estar liberta de ingerências e pressões externas. Não obstante, tenha-se em mente o fato de que não são garantias que formam o caráter das pessoas. Um covarde treme oculto num “bunker” indevassável somente premido pelo barulho das bombas que estouram lá fora sem a mínima chance de atingi-lo. Um corrupto se vende, sempre por mais do que vale, mesmo recebendo um estipêndio nababesco para o exercício correto de suas funções. Mas, mesmo assim, as garantias constitucionais estabelecidas aos Juízes e Promotores em muito poderiam colaborar para ensejar uma atuação mais segura e tranquila das Autoridades Policiais, o que certamente redundaria num trabalho de investigação melhor, já que exercido com enfoque somente na investigação em si e não ainda tendo de driblar pressões e ingerências de todas as espécies, afora os riscos já ínsitos à atividade policial.
Dessa forma, não é com a ruptura e o dissenso, mas com a união em torno de boas condições para a prática investigatória que se deve trabalhar, usando do poder de convencimento, da influência política (no bom sentido) dos órgãos policiais, ministeriais e do judiciário, irmanados para a consecução do bem comum.
É com esse espírito que se passa a seguir a analisar os dispositivos da novel Lei 12.830/13.
2-BREVES COMENTÁRIOS SOBRE A LEI 12.830/13
“Art. 1º. Esta Lei dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia”.
Ao contrário do que se poderia defender na continuidade de uma interminável e irracional “desinteligência” sobre a titularidade e exclusividade da investigação criminal no Brasil, entende-se que o dispositivo sob comento deixa claro que não está a revogar tacitamente por incompatibilidade o Parágrafo Único do artigo 4º., CPP antes transcrito neste texto. Não há previsão de exclusividade da investigação criminal pelo Delegado de Polícia. Muito ao reverso, ao afirmar a lei que ela dispõe sobre “a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia” e não que dispões sobre o Inquérito Policial ou a investigação criminal, após indicando seu único possível presidente como sendo o Delegado, está a indicar mais que cristalinamente que outras espécies de investigações podem existir paralelamente à policial presidida pelo Delegado. Isso também se afere pela redação da sua ementa quando afirma: “Dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia”. Ora, se essa lei dispõe sobre a investigação conduzida pelo delegado especificamente só pode ser porque existem ou podem existir outras modalidades de investigações conduzidas por outras autoridades.
Assim sendo, embora com as reservas quanto à investigação criminal pelo Ministério Público acima já expostas, há que se concluir que a Lei 12.830/13 não é óbice à regulamentação futura por lei federal da investigação ministerial ou de outro órgão qualquer criado para tanto. [7]
Em suma, entende-se que a Lei 12.830/13 disciplina alguns aspectos importantes de uma espécie do gênero investigação criminal, que é aquela conduzida por Delegado de Polícia. Essa espécie de investigação criminal, seja através do Inquérito Policial, seja por meio do chamado Termo Circunstanciado, é a mais comumente vista, mas não é a única viável em nosso ordenamento jurídico, nem o passa a ser com o advento da legislação ora comentada.
“Art. 2º. As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado”.
Num primeiro aspecto é assustador que se viva num país onde é necessária uma lei para dizer o óbvio. Mas, é assim mesmo. Quanto mais atrasado o grau de civilização mais necessidade se tem de regulamentar milimetricamente a tudo. Precisamos, por exemplo, que um Estatuto nos diga que devemos respeitar os idosos, as crianças e os adolescentes. Necessitamos de uma lei que nos indique que a violência doméstica contra a mulher é uma aberração que merece reprimenda. Olhando por esse prisma até que não é tão deprimente que tenha sido necessária tanta discussão e a edição de legislação para reconhecer em texto legal a natureza jurídica da atividade do Delegado de Polícia. Ora, de que outra natureza poderia ser essa atividade exercida exclusivamente por Bacharéis em Direito? De qualquer forma é fato que agora está posto em lei e também na Constituição do Estado de São Paulo em seu artigo 140.
Outra obviedade que foi necessário transcrever em letra de lei é que a atividade de Polícia Judiciária exercida pelo Delegado é “essencial” tal como ocorre com a advocacia, com o Ministério Público e com o Judiciário. A essencialidade da atividade de Polícia Judiciária se demonstra por si mesma no dia a dia, no Direito Comparado, onde não se encontra lugar civilizado que não seja dotado de uma Autoridade de Polícia Judiciária. A função de apuração das infrações penais e auxílio ao Judiciário no exercício, por exemplo, de cumprimento de Mandados de Prisão e outras diligências é obviamente essencial. Mas, agora, já que vivemos sob o jugo de uma ignorância endêmica com a qual alguns se aprazem, é bom que a lei tenha deixado isso bem claro.
Finalmente, o dispositivo estabelece que as funções de polícia judiciária e apuração de infrações penais exercidas pelo Delegado de Polícia “são exclusivas de Estado”. É aqui determinada a indelegabilidade dessa função a particulares, à iniciativa privada, o que, diga-se de passagem, seria o cúmulo do absurdo. Seria mesmo inimaginável que a atividade de investigação criminal pudesse ser exercida num futuro medonho por empresas particulares, ainda que sob concessão estatal. Trata-se de função típica de Estado da qual não se pode abrir mão jamais.
É interessante, porém, notar que a Lei 12.820/13 não entra em colisão com a existência dos chamados “Detetives Particulares”, pois que suas prerrogativas são bastante limitadas e nunca puderam se sobrepor ou mesmo coexistir paralelamente às atribuições da Polícia Judiciária.
“§1º. Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.”
Esse parágrafo reforça a tese já bem estruturada com o advento da Lei de Drogas (Lei 11.343/06 – artigo 48, § 4º.), de que a expressão “Autoridade Policial” se refere ao Delegado de Polícia Civil ou Federal, sendo os demais policiais “Agentes da Autoridade”. Afinal, na Lei de Drogas, a elaboração do termo circunstanciado é deferida à “Autoridade de Polícia Judiciária” que jamais pode ser outra senão o Delegado de Polícia. [8] Dessa forma o § 1º. acima transcrito reforça esse entendimento, impedindo que o Inquérito Policial ou o Termo Circunstanciado sejam presididos por outros policiais como, por exemplo, as Polícias Militares, Rodoviárias etc. [9]
Mas, nem mesmo esse § 1º. tem o poder de conceder exclusividade ao Delegado de Polícia quanto à investigação criminal em geral. Ele deve ser interpretado sistematicamente com o artigo 1º. e a própria ementa da lei, conforme acima já consignado. E essa interpretação não colide com a alegação supra do impedimento do exercício de investigação de Polícia Judiciária por parte de outros órgãos policiais, tais como a Polícia Militar, eis que a tal conclusão se chega por interpretação e aplicação da norma constitucional pertinente, qual seja, o artigo 144, CF, que determina claramente as atribuições de cada órgão policial, não havendo previsão de atividade de polícia judiciária para outros órgãos que não as Polícias Civil e Federal.
Assim sendo, é admissível que uma legislação venha a regular, por exemplo, a investigação criminal ministerial, mas não o é para uma eventual investigação criminal levada a efeito pela Polícia Militar, pela Polícia Rodoviária Federal ou pela Polícia Ferroviária. Para isso seria necessário mudar a Constituição primeiro. No que tange ao Ministério Público a questão é de imprevisão constitucional e inexistência de legislação ordinária permissiva e regulamentadora. Quanto às demais policiais antes citadas o problema é que a própria Constituição lhes limita claramente o âmbito de atuação. O óbice constitucional expresso à investigação ministerial inexiste. Ele pode derivar da busca de um processo acusatório ideal, mas isso pode ser contornado pela regulamentação cautelosa da lei ordinária, impedindo o Promotor – Investigador de atuar como Promotor – Acusador ou aquele que forma ou afasta a “opinio delicti”, preservando a imparcialidade do “parquet”.
“§2º. Durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos”.
Esse § 2º. não traz nenhuma grande novidade ao mundo jurídico, pois que trata da atividade de investigação já comumente e tradicionalmente deferida às Autoridades Policiais, inclusive nos termos dos artigos 6º. e 7º., CPP até mais detalhadamente. O dispositivo, por óbvio, não vem a excepcionar as chamadas reservas de jurisdição constitucional e legalmente previstas. Por exemplo, continua o Delegado necessitando de ordem judicial para a realização de busca e apreensão domiciliar fora das exceções constitucionalmente previstas; o mesmo se pode dizer das interceptações telefônicas, quebras de sigilos bancário e fiscal etc.
“§3º. (VETADO)”
Na redação projetada estabelecia o § 3º. que “o delegado de polícia conduzirá a investigação criminal de acordo com seu livre convencimento técnico – jurídico, com isenção e imparcialidade”.
As “Razões do Veto” são assim expostas na Mensagem 251/13:
“Da forma como o dispositivo foi redigido, a referência ao convencimento técnico – jurídico poderia sugerir um conflito com as atribuições investigativas de outras instituições, previstas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal. Dessa forma, é preciso buscar uma solução redacional que assegure as prerrogativas funcionais dos delegados de polícia e a convivência harmoniosa entre as instituições responsáveis pela persecução penal”.
Essa motivação da Presidência da República para o veto retrata uma consonância com o posicionamento defendido neste texto que busca uma irmanação e convivência harmoniosa entre as instituições, ao reverso de uma “quebra de braço” constante enquanto a criminalidade corre às soltas.
Efetivamente já havia comentários de que o § 3º. permitiria aos Delegados de Polícia a recusa ao cumprimento de cotas ministeriais, bem como requisições desse órgão ou mesmo judiciais, desde que com a devida fundamentação. Essa espécie de postura somente prejudica o interesse social e fomenta uma contenda medíocre e mesquinha entre as instituições. Portanto, o perigo ínsito nesse dispositivo foi em boa hora afastado pelo bem posto veto presidencial.
Não obstante, é preciso dizer que o Delegado de Polícia deverá sim atuar sempre de acordo com o seu convencimento técnico – jurídico de forma fundamentada, isenta e imparcial. Mas, isso não implica e nem mesmo que o dispositivo não houvesse sido vetado implicaria, em poder recusar-se ao cumprimento de cotas ministeriais ou de requisições ministeriais ou judiciais. A Lei 12.830/13 não poderia colidir com o Código de Processo Penal e muito menos com a Constituição Federal, onde se prevê prerrogativas ao Judiciário e Ministério Público na investigação, tais como as acima expostas.
Segundo bem expõe Sannini, comentando o então projeto:
“Considerando que o Delegado de Polícia possui uma formação essencialmente jurídica, devendo ser bacharel em Direito, sendo submetido a concursos públicos extremamente rígidos, assim como Juízes, Promotores, Defensores Públicos etc., é dever da Autoridade de Polícia Judiciária analisar o fato criminoso sob todos os aspectos jurídicos. Mais do que isso, na condução da investigação, que objetiva a perfeita elucidação dos fatos, o Delegado de Polícia pode coordenar as diligências de maneira discricionária, de acordo com a necessidade para a formação do seu convencimento sobre o caso. No mesmo sentido e reforçando o exposto nesse ponto, lembramos que a Constituição do Estado de São Paulo garante em seu artigo 140, §3°, que aos Delegados de Polícia é assegurada independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária.
Isso não significa, todavia, que a Autoridade Policial possa se eximir de atender uma requisição feita pelo Ministério Público. Muito pelo contrário. Como titular da ação penal, o Ministério Público pode requisitar diligências que sejam imprescindíveis para o exercício desse mister. O Delegado de Polícia, por sua vez, deve acatá-las não por subordinação ao Ministério Público, mas por respeito ao princípio da legalidade, que deve pautar toda a investigação criminal”. [10]
É bem lembrada pelo autor a independência funcional concedida aos Delegados de Polícia pela Constituição do Estado de São Paulo, segundo seu artigo 140, §3º., de forma que a livre convicção fundamentada está garantida, inclusive por norma legal, mas não implica em autorização e muito menos incentivo ao conflito entre os organismos estatais e desobediência às normas legais e constitucionais.
“§4º. O inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei em curso somente poderá ser avocado ou redistribuído por superior hierárquico, mediante despacho fundamentado, por motivo de interesse público ou nas hipóteses de inobservância dos procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a eficácia da investigação”.
O § 4º. é uma garantia do Delegado de Polícia, mas, antes de tudo, é uma garantia da sociedade, contra eventuais manipulações da fase investigatória. Pode-se afirmar que consolida um “Princípio do Delegado Natural”, assim como há o “Princípio do Juiz Natural” e, como sua derivação, ao menos segundo a maioria da doutrina e da jurisprudência, o “Princípio do Promotor Natural”.
A partir de agora a avocação ou redistribuição discricionária, sem qualquer justificativa, não pode ser levada a efeito pela hierarquia superior da Polícia Civil ou Federal. A avocação ocorre quando uma Autoridade Policial hierarquicamente superior àquela que dá andamento ao feito por atribuição natural, chama para si o Inquérito ou outro procedimento (v.g. Termo Circunstanciado) e ela mesma (autoridade superior) passa presidi-lo. Na redistribuição essa autoridade superior irá retirar do Delegado Natural o procedimento e repassá-lo a outro Delegado designado para prosseguir nas apurações. Tudo isso, a partir de agora, somente pode ser levado a termo mediante a devida fundamentação, ou seja, a indicação transparente dos motivos que levam a essa alteração da atribuição natural. Ademais, a lei já estabelece quais espécies de motivação podem justificar a avocação ou redistribuição:
a) Motivo de interesse público – a expressão é criticável porque tendente a uma polissemia, a um leque por demais amplo de interpretação. No entanto, é de se frisar que não bastará como fundamento a mera repetição da expressão “interesse público”, sendo necessário que a Autoridade superior indique concretamente os fatos que constituem esse “interesse público”, inclusive para que tal ato administrativo não seja nulo e para que possa adequadamente ser questionado no Judiciário por quem quer que tenha interesse (partes envolvidas na investigação, Ministério Público enquanto fiscal da lei e responsável pelo controle externo da polícia, Juiz Corregedor, Corregedoria Interna da Polícia, qualquer pessoa do povo).
b) Inobservância de procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a eficácia da investigação – Na verdade é perceptível que o caso ora exposto estaria abrangido pelo motivo de interesse público acima arrolado. No entanto, o legislador o previu separadamente. A norma deve ser interpretada também como um norte que não serve por si só, pela mera repetição da dicção legal, para a fundamentação do ato administrativo. No caso, a autoridade superior deverá indicar claramente qual o procedimento previsto em regulamento que está sendo inobservado e que pode trazer prejuízos concretos para a investigação. É notável que essa norma depende da conjugação com todo um aparato de normas administrativas e mesmo processuais penais que exercerão uma função de complemento. O maior cuidado a ser tomado em ambos os casos de avocação ou redistribuição consiste na tênue barreira entre a correição de condutas investigatórias inadequadas por violarem o interesse público ou infringirem normas procedimentais e a indevida intromissão na livre convicção jurídica fundamentada dos Delegados de Polícia oficiantes nos feitos respectivos. Exemplificando, não se poderá avocar ou redistribuir um feito porque não se concorda com a tipificação dada pela Autoridade Policial natural (v.g. um caso muito comum hoje da discussão em casos de acidente de trânsito com morte entre a tipificação de homicídio culposo ou doloso com dolo eventual). Outra situação que não justifica a avocação ou redistribuição é a indevida intromissão na decisão soberana do Delegado natural quanto ao ato de indiciamento, inclusive em interpretação sistemática com o § 6º. do mesmo artigo, o qual será mais adiante comentado. Em suma, a avocação ou redistribuição deve ser excepcionalíssima e levada a efeito somente em casos gravíssimos de nítido desvio de conduta funcional, atuação parcial ou outras infrações graves.
Em qualquer caso a decisão da autoridade superior estará sujeita a revisão pelo Judiciário por meio de Mandado de Segurança que pode ser manejado pelo próprio Delegado Natural, pelo Ministério Público de ofício ou mediante provocação de qualquer do povo, pelas partes envolvidas na investigação, valendo-se do Ministério Público ou mesmo de Advogado constituído. Também se entende que, embora a lei não deixe claro, o Juiz Corredor de Polícia Judiciária poderá, “ex officio” intervir no caso e, ouvido o Ministério Público, declarar nulo o ato administrativo infundado e inclusive promover, pelas vias adequadas, a responsabilização criminal e administrativa da autoridade superior responsável. Da mesma forma a própria Corregedoria interna da Polícia poderá avaliar o ato administrativo e, se o caso, determinar, fundamentadamente sua anulação e o retorno à Autoridade natural, decisão esta que, por seu turno, também estará sujeita ao crivo do Judiciário nos mesmos termos acima descritos. Obviamente que se a Corregedoria assim entender, necessariamente irá promover também a investigação criminal e administrativa pertinente contra a autoridade superior que agiu ao arrepio da lei.
Outra questão interessante, considerando a possibilidade futura de investigação ministerial é saber se o Promotor poderia avocar ou redistribuir o feito investigatório presidido pelo Delegado Natural. A resposta não demanda maiores esforços. O Ministério Público é órgão estranho à Polícia Judiciária, tanto que é responsável tão somente por seu controle “externo”. Não há relação de subordinação ou hierarquia administrativo – funcional entre Promotores e Delegados. Dessa forma é cristalino que o Promotor jamais pode ser considerado o “superior hierárquico” de que fala a lei, não tendo poderes de avocação ou redistribuição direta. Ao Ministério Público nesses casos caberiam duas alternativas: a realização de investigações paralelas às da Polícia Judiciária ou então a provocação da autoridade hierarquicamente superior a fim de que esta, fundamentadamente, avoque ou redistribua o feito. No caso dessa segunda opção e negativa da autoridade superior, caberá ao Ministério Público, enquanto fiscal da lei e controlador externo da atividade policial, o manejo do Mandado de Segurança perante o Poder Judiciário, a provocação da atuação do Juiz Corregedor de Polícia Judiciária e inclusive da Corregedoria Interna da Polícia.
“§ 5º. A remoção do delegado de polícia dar-se-á somente por ato fundamentado”.
De nada adiantaria a garantia contra a avocação e redistribuição infundadas se houvesse a possibilidade de remoção da própria Autoridade Policial. Nesse caso bastaria trocar a mobilização do feito pela remoção da Autoridade Policial Presidente.
Portanto, o § 5º. complementa o seu antecedente e traz consigo uma importantíssima garantia que se constitui quase no ideal que seria a inamovibilidade. Pode-se afirmar que o dispositivo sob comento cria uma espécie de inamovibilidade relativa para o Delegado. Isso porque nessa carreira as promoções muitas vezes implicam em transferência, de modo que a garantia ainda pode facilmente ser driblada com ares hipócritas de benefício, mediante a promoção não requerida. Para que essa garantia se transforme um dia em efetiva inamovibilidade basta que a promoção na carreira de Delegado se dê em conformidade com o que ocorre nas demais carreiras jurídicas de Promotor e Juiz, ou seja, mediante inscrição voluntária. Hoje, mesmo com o disposto no § 5º., bastaria promover determinado Delegado e o transferir para outra unidade adequada à sua categoria para facilmente ludibriar a lei e, consequentemente, a sociedade.
Ademais, diversamente do parágrafo anterior o dispositivo não indica claramente em que deve consistir esse fundamento da remoção. Não obstante, parece que a interpretação sistemática entre os parágrafos 4º. e 5º. deve ser levada a efeito necessariamente, de modo que somente por razões excepcionais que justifiquem a remoção no interesse público concretamente demonstrado se poderá procedê-la. Esse ato estará também, como o anterior, submetido à avaliação de sua legalidade por todas as instâncias anteriormente mencionadas e mediante os mesmos mecanismos protetivos.
“§6º. O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante a análise técnico – jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias”.
Finalmente uma norma processual trata com um pouco mais de cuidado do ato do indiciamento, promovendo uma garantia expressa ao indivíduo quanto à necessidade de sua fundamentação na penumbra do disposto no artigo 93, IX, CF. Fala-se em penumbra em alusão à teoria americana da “Penumbra Doctrine” ou “Penumbra Theory” (normalmente traduzida no Brasil como “Teoria da Penumbra”), segundo a qual as garantias constitucionais não se reduzem somente à sua expressão lingüística estrita, mas produzem uma espécie de “sombra” ou “penumbra” mais abrangente a gerar um campo de irradiação de maior amplitude do que aquele que poderia ser aferido pela simples interpretação gramatical do texto.
O marco do § 6º. sob comento tem o potencial de alterar a interpretação jurisprudencial corrente sobre a questão do indiciamento. Tem sido usual a denegação de ordens de Habeas Corpus contra atos de indiciamento com a repetição da seguinte fórmula: “o formal indiciamento não constitui constrangimento ilegal” (v.g., HC 990080856057 SP, Relator Péricles Piza, 28/11/2008). Tais decisões são acertadas e devem continuar prevalecendo, considerando o fato de que o indiciamento é o simples externar da convicção da Autoridade Policial quanto às suas suspeitas em relação à autoria delitiva, não havendo nele qualquer carga acusatória que somente se concretizará com a elaboração e o recebimento de eventual denúncia que pode inclusive jamais ocorrer, já que nem o Ministério Público, nem o Judiciário estão atrelados à convicção do Delegado de Polícia. Ocorre que em certos casos concretos pode haver sim constrangimento ilegal no ato do indiciamento. São casos extremos como, por exemplo, o indiciamento por fato claramente atípico, o indiciamento com base em tipo legal revogado com “abolitio criminis”, por crime claramente prescrito ou quando se operou obviamente a decadência etc. Agora mais um caso se assoma a essas hipóteses de possibilidade excepcional de concessão de Habeas Corpus contra o ato de indiciamento, qual seja, sempre que esse indiciamento seja procedido sem a devida fundamentação pela Autoridade Policial nos estritos termos do artigo 2º., § 6º. da Lei 12.830/13. Na verdade essa hipótese já deveria ser reconhecida anteriormente com base na penumbra do artigo 93, IX, CF, mas agora a previsão legal é explícita na legislação ordinária, obrigando induvidosamente às Autoridades e se constituindo em expressão do direito de defesa do indiciado na fase pré – processual que, como se sabe, não contém a ampla defesa, mas já apresenta diversas oportunidades de manifestação defensiva.
Nunca é demais lembrar que a fundamentação pode ser sucinta, mas não pode se reduzir à menção ao dispositivo legal ou sua mera transcrição. Deve a Autoridade Policial indicar concretamente os elementos de convicção existente nos autos quanto à autoria, materialidade e outras circunstâncias que a levaram à convicção jurídica da necessidade de indiciamento.
É importante salientar que a irregularidade do indiciamento sem devida fundamentação, embora passível de correção via Habeas Corpus, não ensejará quaisquer consequências no futuro Processo Penal. Isso porque, como se sabe, o indiciamento não exerce qualquer função relevante na fase judicial.
Outro aspecto que o dispositivo deixa claro, agora em termos legais, é que o ato de indiciamento é “privativo do Delegado de Polícia”. Isso vem a corroborar a jurisprudência já assentada no STJ acerca da ilegalidade do chamado “indiciamento extemporâneo ou intempestivo” quando tal ato é executado por requisição judicial ou ministerial após o encerramento das investigações pelo Delegado de Polícia sem indiciamento, sendo que na fase processual há denúncia e seu recebimento. Ora, o processo não anda para trás e sim para frente. O Estado – Polícia já deixou consignada sua manifestação e o ato de indiciamento nesses casos não passa de constrangimento ilegal inútil processualmente falando e usurpação funcional que já vinha sendo coibida pelo STJ. [11] Esse é mais um caso de cabimento de Habeas Corpus contra o ato ilegal de indiciamento, com a diferença de que a autoridade coatora não era até então o Delegado de Polícia, mas sim o Juiz ou o Promotor que requisitaram a medida.
Neste caso, a partir da Lei 12.830/13 o Delegado de Polícia não somente poderá como deverá negar-se a cumprir determinações externas de indiciamento contra sua convicção jurídica. A ordem será a partir de agora, com sustento não somente na jurisprudência firmada pelo STJ como na legislação expressa (artigo 2º., § 6º., da Lei 12.830/13), manifestamente ilegal e se a Autoridade Policial a cumprir deverá então fundamentar sua eventual alteração de convicção. Fundamentando ou não passará, ao cumprir a ordem, na prática de ato que é de sua atribuição privativa, a ocupar o posto de autoridade coatora em eventual ação de Habeas Corpus. Se antes o Delegado atuava por mera determinação do Ministério Público ou do Juiz devido a seus poderes requisitórios, agora esses poderes, nesse caso específico, deixam de existir, e a Autoridade Policial atua por sua conta e risco, devendo fundamentar sua decisão. De qualquer modo, se trata de uma decisão sua e que a coloca na posição de eventual autoridade coatora.
“Art. 3º. O cargo de delegado de polícia é privativo de bacharel em Direito, devendo-lhe ser dispensado o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os advogados”.
A lei determina que o cargo de Delegado de Polícia é privativo de Bacharel em Direito em boa sistemática com seu artigo 2º., que confere às funções de Polícia Judiciária e apuração das infrações penais “natureza jurídica”. No mesmo diapasão já estabelecia anteriormente o artigo 140, § 4º., da Constituição do Estado de São Paulo que o Delegado de Polícia não somente deverá ser Bacharel em Direito, mas também contar com, no mínimo, dois anos de atividades jurídicas.
Em coerência com essas exigências que em nada diferem daquelas estabelecidas para as demais carreiras jurídicas, determina a lei, consequentemente, o “mesmo tratamento protocolar” dos magistrados, membros da Defensoria Pública, do Ministério Público e Advogados.
Isso significa que o tradicional pronome de tratamento utilizado para a referência aos Delegados de Polícia em correspondências a eles dirigidas ou mesmo em atos interpessoais formais, que era de Vossa Senhoria, passa a ser Vossa Excelência, que se refere a “altas autoridades”. [12]
Essa medida adotada pela Lei 12.830/13, embora pouco ou nada relevante quanto à eficiência da atividade policial judiciária, vem a corrigir uma prática desigual injustificada no que tange ao tratamento protocolar dispensado aos Delegados de Polícia ao longo do tempo. Como visto acima, a ocupação da carreira evoluiu para os mesmos requisitos, já há muito tempo, exigidos para os magistrados, promotores etc. O exercício do cargo de Delegado de Polícia implica na responsabilidade e na prática de um poder – dever de alta relevância, tanto é fato que numa cidade interiorana, por exemplo, pode-se facilmente indicar as autoridades mais importantes como sendo o Prefeito, o Juiz, o Promotor e o Delegado, mas até então somente tinham o tratamento pronominal de “Excelência” os três anteriores, o que não se justifica e nem se justificava.
Não há dúvida, portanto, que a alteração legal diz respeito a esse novo pronome de tratamento. Para confirmar essa conclusão basta consultar, por exemplo, o “Curso de Protocolo e Cerimônia” do Copemditur – Departamento de Recursos Didáticos, ligado à União Européia, onde consta a definição de “tratamento protocolar” ou “protocolo” como “uma regra cerimonial diplomática ou palatina estabelecida por decreto ou por costume”, [13] neste caso específico, por lei. Tanto é fato que a mesma obra, em seu seguimento, passa a destacar a importância da obediência às regras protocolares de tratamento “previstas em lei” ou assentadas no “meio social”, cuja desobediência revela “ignorância ou educação deficiente”. [14]
“Art. 4º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.
Como se vê a Lei 12.830/13 não conta com período de “vacatio legis”, entrando em vigor de imediato tão logo publicada.
3-CONCLUSÃO
A Lei 12.830/13 vem a lume como um bom instrumento de aprimoramento e garantia de uma investigação criminal isenta e de qualidade. As garantias dispostas ao Delegado de Polícia no exercício de seu cargo não são pessoais, assim como não o são as garantias constitucionais dos magistrados e promotores de justiça. Tratam-se da criação de condições mínimas de segurança para o exercício de funções tão relevantes como a investigação criminal, o processo e julgamento e a titularidade da ação penal pública respectivamente. Frise-se, porém, conforme se destacou no decorrer do texto, que a legislação ainda é insuficiente, especialmente no que diz respeito às garantias para o exercício do cargo de Delegado de Polícia.
Espera-se, sinceramente, que essa legislação possa ser um marco para um futuro de congraçamento entre as instituições governamentais envolvidas na persecução criminal, buscando cada qual o cumprimento harmônico de suas funções e a conquista e respeito de garantias que possibilitem suas atuações livres de pressões políticas, econômicas, de violência, coação ou qualquer outra ingerência indevida.
Fomenta-se uma esperança de que não se veja mais a cena trágico – cômica de instituições como as Polícias Civil e Federal e o Ministério Público travestidos de histriões, jogando tortas grudentas nas faces uns dos outros, enquanto na plateia se assenta às gargalhadas a criminalidade organizada ou não, que nesse pastelão ao menos não representa a figura do palhaço. Palhaço este que com o passar do tempo, mais e mais se transmudará em Pierrô, [15] derramando lágrimas amargas pelos erros, talvez irreversíveis, cometidos no passado em meio a toda essa comédia (ou tragédia?).[16]
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.
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