Resumo: O objetivo do presente trabalho é demonstrar a relevância da paternidade socioafetiva sobre a paternidade meramente biológica ou registral. Diante da evolução da instituição familiar e da sociedade, a família passa por novas formações, preservando o vínculo criado através do afeto entre os sujeitos dessa relação. Não devendo-se confundir o mero registro civil como fator determinante da paternidade, nem tampouco a descendência sanguínea como solução para fixação desta.
Palavras-chave: paternidade socioafetiva; direito registral; filiação.
Sumário: Introdução. 1. Noções gerais da filiação. 1.1. Espécies de filiação. 1.1.1. A filiação decorrente da origem biológica. 1.1.2. Filiação Jurídica. 1.1.3. Laços afetivos entre pais e filhos: a socioafetividade. 1.2. Pressupostos e evolução da paternidade socioafetiva. 1.3. Função do pai socioafetivo. 2. Aspectos jurídicos da paternidade socioafetiva. 2.1. Consequências jurídicas da socioafetividade: a obrigação alimentar e a herança. 2.2. Reconhecimento da paternidade socioafetiva como proteção integral à família e aos menores. 2.3. O afeto como dever jurídico e princípio formador da família constitucionalmente protegido. 2.4. Aplicação da socioafetividade no Direito Brasileiro: jurisprudências e decisões singulares. 3. Direito de escolha registral: fundamento para garantia da segurança jurídica e proteção da dignidade humana. 3.1. Registro: instrumento declaratório ou constitutivo da paternidade. 3.2. Registro como prova da filiação. 3.3. Direito de escolha registral como proteção à dignidade humana. Considerações finais.
INTRODUÇÃO
O presente estudo objetiva problematizar a temática da paternidade socioafetiva, em seus mais variados aspectos, através de uma análise do panorama constitucional e da legislação brasileira referente ao tema, estabelecendo o vínculo de filiação, diante da moderna visão do Direito de Família.
O complexo conceito de família contemporâneo provoca inúmeras dúvidas e conflitos acerca da paternidade no contexto social, afetivo e principalmente jurídico. Além da CF de 1988, que amplia o conceito de família, trazendo o princípio de igualdade da filiação, interferindo nas relações familiares, e diretamente nos relacionamentos afetivos, entre pais e filhos através da inserção de novos valores, encontra-se o princípio efetivo da dignidade humana, como fator determinante do bem estar pessoal.
Advindo da necessidade individual de cada ente do grupo familiar, em fazer prevalecer sua realização, seus valores, sua dignidade, consubstanciada por sua aceitação no meio social, surge a importância do estudo sobre a paternidade socioafetiva em confronto com a verdade biológica, e os conflitos decorrentes da junção dessas relações, trazendo-se, do mundo fático, para o mundo jurídico, a problemática aflorada pela desbiologização da paternidade.
A filiação socioafetiva encontra sua fundamentação nos laços afetivos constituídos pelo cotidiano, pelo relacionamento de carinho, companheirismo, dedicação, doação entre pais e filhos. Está cada vez mais fortalecida tanto na sociedade como no mundo jurídico, ponderando a distinção entre pai e genitor, no direito ao reconhecimento da filiação, inclusive no direito registral, tendo-se por pai aquele que desempenha o papel protetor, educador e emocional.
Assim sendo, diante do modelo de família contemporâneo, importante demonstrar os impactos causados no desenvolvimento social, emocional e patrimonial, interfamília e na sociedade, da paternidade socioafetiva, bem como o direito de escolha registral, atinente ao princípio da dignidade humana, explicitando o que deve prevalecer: a verdade biológica ou afetividade, demonstrando a importância da unificação paternal, evitando, assim, que a dignidade humana seja afetada em virtude dos conflitos ainda existentes na matéria no que diz respeito ao mundo jurídico e social do filho, quando se depara com a situação explicativa da existência de dois pais e de sua identificação nos aspectos patrimoniais, sociais e econômicos.
1. NOÇÕES GERAIS DA FILIAÇÃO
Presente na história, as primeiras civilizações viviam em clãs, homens e mulheres se relacionavam entre si, dentro dos grupos, sem formação de família. Com o passar dos tempos, o homem passou a exercer o domínio da terra, fixando-se nelas em busca de trabalho para garantir sua subsistência, surgindo, daí, as famílias monogâmicas – o homem é marido de uma só mulher – assumindo o papel de grupo social, acolhendo-se todos os entes nascidos naqueles grupos. O modelo de família brasileiro origina-se da família romana[1].
Com o Direito Romano, houve a sistematização de normas severas que tornaram a família uma instituição patriarcal. O pai ocupava a posição de chefe da família, detinha o pátrio poder sobre o demais integrantes de seu grupo familiar. Na sociedade romana, machista e elitista, os poderes patriarcais eram transferidos ao filho, primogênito, homem e na falta deste, a outro integrante do grupo, desde que varão.
No Direito Romano, existiam duas formas de parentesco civil: a agnação, traduzida no conjunto de pessoas lideradas pelo mesmo pai, independente da relação sanguínia, sejam eles biológicos ou não. Possui um caráter artificial. E a cognação, que era o parentesco vinculado pelo sangue. No antigo direito romano, era reconhecido juridicamente apenas a cognação, passando a terem direitos sucessórios, alimentares e, ainda, a possibilidade de solução dos conflitos advindos do abuso do pátrio poder, por um juiz[2].
O fator sociológico trouxe em sua evolução histórica, de uma instituição tipicamente patriarcal, até a contemporânea, relação intrínseca com as mutações ocorridas nos fenômenos sociais. Passando a família romana a ser dissolvida, com o início do movimento feminista, instigado pela figura do adultério e pela possibilidade do divórcio.
O modelo de família atual, não mais se coaduna com a antiga família romana, a qual perdeu a força com o decorrer do tempo, tirando do pater famílias o poder de decidir sobre a vida de seus familiares. O ideal de igualdade entre os pais e os filhos aparece como novo conceito de família, baseado na dignidade humana, na afetividade, com uma convivência voluntária garantindo a harmonia, passando de um caráter natural para o cultural.
Com a evolução, a estruturação da família passou por inúmeras alterações. A forma de tratar os filhos foi inovada. Educar, cuidar, amar, zelar pelo bem estar da criança, tudo passou a ter relevância para essa nova concepção familiar. A influência da religião trazida com o Cristianismo foi também fator determinante nessa transição, integrando a família: o marido, a mulher e o filho, laços formados pelo casamento religioso, através do sacramento. Corroborando com as novas instituições, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Civil de 2002, trazem novas formas de constituição de família e se efetivam através de seus dispositivos legais.
Como leciona Paulo Lôbo[3], no Brasil, a filiação é conceito único, não se admitindo adjetivações ou discriminações. Desde a constituição de 1988 não há mais filiação legítima, ilegítima, natural, adotiva, ou adulterina.
Corroborando com seu entendimento, o princípio da igualdade entre os filhos, assegurado pela CF de 1988[4], em seu art. 227, § 6º, proíbe qualquer discriminação entre os filhos havidos ou não do casamento. Porém, no século passado, a filiação se dava pelo estado ficto de filho, decorrente do matrimônio. Ou seja, uma vez edificados os laços do casamento e se consequentemente surgisse uma gravidez, os filhos havidos no matrimônio tinham sua paternidade garantida por presunção, e decorrente desse reconhecimento advinham os direitos patrimoniais.
Pode-se constatar que o vínculo biológico, na prática, não tinha seu reconhecimento como regra, bastava que o filho nascesse durante a vigência do casamento de seus pais e, assim, seria considerado legítimo. Porém, os filhos havidos fora do matrimônio, eram bastardos, adulterinos, sem direitos juridicamente reconhecidos e o pai não tinha obrigação no seu sustento, tratava-se, portanto de uma verdade formal[5], verdade esta, abolida do ordenamento jurídico em virtude da possibilidade de certeza da filiação, trazida pela evolução científica, através do exame de DNA (ácido desoxirribonucléico), que revela a verdade biológica, através da relação sanguínea.
Convém mencionar o conceito mais comum, encontrado na doutrina de filiação: relação de parentesco consanguíneo, em primeiro grau e em linha reta, que liga uma pessoa àquelas que a geraram, ou a receberam como se as tivessem gerado[6].
Nessa amplitude do conceito, verifica-se a possibilidade da existência da filiação, embora não exista o laço sanguíneo.
Consoante a CF de 1988, há o reconhecimento jurídico da paternidade biológica, como também da sociológica, deixando para o campo fático o condão de solucionar os conflitos existentes entre as filiações biológicas, sociológicas e, ainda, a meramente registral.
Nesse diapasão, são inúmeras as discussões referentes aos tipos de filiação as quais devem se sobrepor, gerando, assim, mais contenda sobre o sentido de paternidade, este imprescindível para o desenvolvimento do presente tema.
Embora haja diversos conceitos de paternidade, torna-se concreto e indiscutível que é através da relação sanguínea que decorrem os demais direitos inerentes à filiação, como o direito ao nome, sobrenome, identidade genética ou meramente registral, bem como a econômico-patrimonial. Todavia, conforme a Constituição prevê, em seu artigo 226, § 7º, o exercício da paternidade deve ser de forma responsável, restando ao direito tutelar os fatos ocorridos geradores de conflitos supervenientes das inúmeras formas de relação paterno-filial.
Com todo aparato normativo, as mudanças no Direito de Família tornaram-se cada vez mais constantes, com a necessidade de preservar a instituição familiar, com isso, muitos doutrinadores se engajaram na luta pelo reconhecimento da paternidade socioafetiva, amoldando-as às necessidades da sociedade, do ser humano, principalmente preservando o bem estar do menor, que necessita do acompanhamento dos pais para seu desenvolvimento psicológico e emocional.
A possibilidade de normatizar as novas relações surge diante da nova concepção do conceito de família, que se perfaz no Princípio da Dignidade Humana e no Princípio da Afetividade, gerando, assim novas formas de constituição familiar, de filiação, como a monoparental, que possui sua definição na CF/88, no artigo 226, § 4º, como sendo a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, a homoafetiva, composta por membros do mesmo sexo, e a socioafetiva, constituída através da relação familiar, independente da origem do filho.
Cristiano Chaves de Farias[7] expõe que:
“A entidade familiar deve ser entendida, hoje, como grupo social fundado, essencialmente, em laços de afetividade, pois a outra conclusão não se pode chegar à luz do Texto Constitucional, especialmente do artigo 1º, III, que preconiza a dignidade da pessoa humana como princípio vetor da República Federativa do Brasil”.
Muito se discute na doutrina e nos Tribunais a busca da verdade biológica, como proteção da dignidade humana, a garantia de saber sua origem, suas características físicas e identidade pessoal com seu pai biológico, prevalecendo a relevância e indiscutivelmente a imprescindibilidade do conhecimento desse fator. Em oposto, encontra-se a preponderância entre o sangue e o afeto, como especificar e distinguir o que deve sobrepor nessa busca pela identidade.
A matéria foi suscitada a priori pelo jurista brasileiro João Baptista Villela[8], lançando no mundo fático a relação entre a concepção do filho e a responsabilidade por sua vinda ao mundo, por sua existência.
Dessa forma, visa-se abordar os entendimentos acerca dessa relação, bem como a aplicação prática desses princípios no mundo jurídico, que reflete diretamente no desenvolvimento e nas relações sociais, patrimoniais e psicológicas entre os envolvidos.
1.1. Espécies de Filiação
A filiação teve sua regulação baseada no Direito Romano, que previa como legítimo o filho advindo da união entre homem e mulher, e ilegítimo os havidos fora do matrimônio. Adotando-se juridicamente a identificação do pai por ocasião do nascimento. A filiação no casamento pressupunha a maternidade por parte da esposa e a paternidade por parte do marido.
Os filhos gerados por pessoas não casadas entre si, não tinham o reconhecimento jurídico, pois eram tidos como filiação ilegítima. Com o advento da Carta Magna de 1988, e o NCC, houve a quebra do vínculo existente entre o casamento e a legitimidade dos filhos. Surgem novas uniões independentes do casamento, e, conseqüentemente, novas formas de perfilhação.
A renovação do instituto da filiação deu-se pela evolução constitucional, que alavancou, como ponto chave, o princípio da afetividade, justificando a relação baseada no afeto, como sendo elemento principal caracterizador da paternidade.
Advindo dessas relações afetivas, passaram a existir várias espécies de filiação. Embora não exista ligação biológica, a qual é sobrepujada por essa nova vertente, chamada de socioafetividade, tornando-se imperioso conceituar as espécies de filiação reconhecidas no mundo fático e de Direito, para suprir o entendimento do tema proposto nesse trabalho.
Conforme entendimento de Pedro Welter[9], são duas as espécies de filiação: a biológica, pautada na relação consanguínea e a socioafetiva, fortalecida pelos laços afetivos nas relações entre pai e filho, tornando-se indiferente a ligação entre sangue e afeto, visto estarem constitucionalmente em igualdade jurídica.
Ainda encontra-se a subdivisão colacionada pela jurista Maria Berenice Dias[10], que acrescenta a paternidade registral à classificação de Pedro Welter, decorrente do registro de nascimento, que goza de presunção de veracidade, ato voluntário, tornando-se uma prova de filiação.
Há também previsão legal da filiação não-biológica, em face do pai que autoriza a inseminação artificial heteróloga, a qual é utilizado o sêmen de outro homem que não o marido, para fecundar o óvulo da mulher, e, ainda, a inseminação artificial homóloga, onde o sêmen pertence ao casal, utilizada em situações onde o casal possui fertilidade, mas não é capaz da fecundação por meio de ato sexual[11]. O que há de novo na inseminação homóloga, é a possibilidade de a fecundação ocorrer quando já falecido o marido, porém deve este ter deixado o seu consentimento por escrito.
No caso da inseminação heteróloga, se o marido autorizou o procedimento, não mais poderá negar a paternidade em razão da origem genética. Contudo, a matéria ainda encontra muitas divergências doutrinárias, quanto à possibilidade de investigação da paternidade, devido a utilização de sêmen de outro homem, o qual possuirá o vínculo sanguíneo.
1.1.1. A filiação decorrente da origem biológica
Para a Biologia, pai é unicamente quem, em uma relação sexual, fecunda uma mulher que, levando a gestação a termo, dá à luz um filho. Enquanto que, para o Direito, pai é o marido da mãe. [12] A paternidade biológica se relaciona com a consanguinidade, que pode ser provada cientificamente pelo exame de DNA, que revela a verdade técnica sobre a paternidade, buscada cada vez mais nos dias atuais.
O marco principal para o reconhecimento da filiação biológica foi a quebra da presunção da paternidade, advinda do casamento, através da busca pela verdade real – leia-se verdade genética – na opinião de Almeida[13]. A busca da verdade real foi adotada como um princípio investigatório da informação, ou seja, a realização do exame de DNA, decorrente da evolução da Biogenética. A lacuna anteriormente preenchida pela incerteza da presunção, passou a ser ocupada pela certeza da prova material, científica.
O direito ao reconhecimento do estado de filiação surgiu com o advento da CF de 1988, considerado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 27, como um direito de caráter personalíssimo, imprescritível e indisponível.
Dessa maneira, os filhos havidos ou não na constância do casamento, poderão obter o reconhecimento de sua origem, tomando conhecimento de seus ascendentes, sua identidade pessoal, características e semelhanças genéticas, garantindo também no âmbito jurídico os fins sucessórios e de caráter alimentar.
A origem biológica presume o estado de filiação ainda não constituído, independentemente de comprovação da convivência familiar[14], formando-se apenas o vínculo sanguíneo. Ainda, no entender de Paulo Lobo[15], não há uma só verdade real e sim três, sejam elas: a biológica, com fins de parentesco para determinar a paternidade; a biológica sem fins de parentesco quando já existe vínculo afetivo com outro pai, e a socioafetiva, quando já está constituído o estado de filiação. Assim, o reconhecimento da filiação biológica, não vincula ao exercício efetivo da paternidade, sendo esse o fator principal das divergências doutrinárias existentes.
1.1.2. Filiação jurídica
A presunção da paternidade no CC de 1916 tinha por finalidade, a proteção à família, para que quando ocorressem conflitos em relação entre a filiação biológica e a jurídica, a presunção da paternidade definiria a realidade. O marido sempre seria o pai das crianças nascidas durante o casamento. Assim, os filhos de pais e mães casados tinham a autodeterminação da perfilhação, através da presunção pater is este quem nupitiae demonstrant, ou seja, era pai quem demonstrasse justas núpcias.
“A verdade biológica era uma verdade proibida. Filho era somente filho no sentido jurídico. A descendência genética podia e deveria coincidir com a concepção do direito; ao banimento do sistema se empurra, o filho que não se submetiam aos estritos limites da lei […].”[16]
Portanto conclui-se que a consolidação da família tinha maior relevância do que a verdade dos fatos. Contudo, na hipótese de existência de filho gerado extramatrimonialmente, a presunção pater is est não existia. Dessa forma, estabelecia-se a paternidade através do reconhecimento voluntário, ou por via judicial, através da ação de reconhecimento de paternidade, no intuito determinar o vínculo paterno.
Nesse caso, a decisão pelo exercício da paternidade exige que haja a prática de um ato jurídico, realizado pelo pretenso pai, o qual pode não ser o biológico, porém independentemente da verdade real, haverá a instituição do direito sucessório, a partir do registro em cartório do nascimento da criança, declarando-o como seu filho. Assim, o registro público faz prova da filiação jurídica, possuindo a presunção de veracidade e publicidade, inerente aos documentos públicos oficiais. E, ainda, é instrumento hábil a gerar direitos e deveres imediatos perante o pai registral, não importando a consanguinidade.
No entender de Vanessa Corrêa[17], os valores que sustentaram a era patrimonialista do Direito Civil, se materializavam no direito de filiação, através de um estado ficto de filho, derivado da presunção pater is est. Fica demonstrado, há época, a preocupação com o bem estar familiar, prevalecendo sobre a verdade dos fatos.
1.1.3. Laços afetivos entre pais e filhos: a Socioafetividade
Uma vez apresentadas as primeiras vertentes da filiação, as quais não mais se sobrepõem sobre o novo paradigma, constituído pela sociedade contemporânea, imperioso faz-se discorrer sobre a tendência preponderante no ramo do Direito de Família, da socioafetividade.
De acordo com Maria Berenice Dias[18], a filiação socioafetiva corresponde à verdade aparente e decorre do direito à filiação. O filho é titular do estado de filiação, que se consolida na afetividade. Não obstante, o art. 1.593 evidencia a possibilidade de diversos tipos de filiação, quando menciona que o parentesco pode derivar do laço de sangue, da adoção ou de outra origem, cabendo assim à hermenêutica a interpretação da amplitude normativa previsto pelo CC de 2002.
A paternidade socioafetiva funda-se no Princípio da Proteção Integral da Criança e do Adolescente, previsto pela CF de 1988. Surge, agora, a busca pela verdade sociológica, fundamentada no estado de filiação, onde uma pessoa assume o papel de pai e outra o de filho, independentemente do vínculo biológico[19].
Orlando Gomes[20] manifesta que a posse do estado de filho constitui-se por um conjunto de circunstâncias capazes de exteriorizar a condição de filho legítimo do casal que cria e educa. Porém, ainda entende, ser através da procriação ou adoção que se estabelece o estado de filho quando menciona que o estado de filho resulta da procriação, no casamento, ou fora do matrimônio, ou de ficção legal consistente na adoção, ou na legitimação adotiva. Para esse doutrinador, o estado de filiação tem sua origem através da genética ou da presunção jurídica, desprezando-se a afetividade.
O estabelecimento da filiação se perfaz pelo estado de filho quando da ocorrência de um fato natural, seja pelo laço biológico, seja por um ato jurídico no caso, por exemplo, da adoção, como mostra a jurisprudência abaixo:
“EMENTA: APELAÇÃO. ADOÇÃO. Estando a criança no convívio do casal adotante há mais de 4 anos, já tendo com eles desenvolvido vínculos afetivos e sociais, é inconcebível retira-la da guarda daqueles que reconhece como pais, mormente, quando a mãe biológica demonstrou interesse em dá-la em adoção, depois se arrependendo. Evidenciado que o vínculo afetivo da menor, a esta altura da vida encontra-se bem definido na pessoa dos apelados, deve-se prestigiar, como reiteradamente temos decidido neste colegiado, a PATERNIDADE SOCIOAFETIVA, sobre a paternidade biológica, sempre que, no conflito entre ambas, assim apontar o superior interesse da criança. Negaram Provimento”[21]
Dessa forma, o afeto venceu a cosanguinidade, e o vínculo formado não pode ser abalado, nem ameaçado, por quem se encontra aquém dessa relação. Não cabendo, portanto, a desconstituição dessa paternidade socioafetiva surgida entre pai e filho como atesta Larissa Toledo[22].
Contudo, também há doutrinadores trazendo à tona o princípio da afetividade. No pensar de José Boeira[23], a posse do estado de filho é uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho seu fosse, consequentemente, o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai. Ocorre, então, a chamada desbiologização da paternidade, ou seja, prepondera a relação constituída entre pai e filho, baseado no afeto mútuo e contínuo.
Deve-se buscar o verdadeiro sentimento que existe entre pai e filho para assim se efetivar a verdadeira paternidade, disso decorre a frase popular “pai é quem cria” trazendo, para o mundo real, uma verdade acreditada, solidificada e bastante para a satisfação pessoal entre os envolvidos.
O afeto passou a ter valor jurídico, decorrente da consagração de princípios constitucionais, passando a filiação a ser vista pelos seus valores culturais, sociais, morais e no conflito existente entre o fato e a lei, o afeto deve se sobrepor à mera presunção. A paternidade biológica passa a ter papel secundário, vindo a paternidade a existir não pelo fator biológico ou pela presunção da filiação, mas em decorrência da convivência afetiva, adaptando a norma positiva ao caso concreto, à realidade social.
No entender de João Baptista Villella:[24] “A verdadeira paternidade não é um fato da Biologia, mas um fato da cultura. Está antes no devotamento e no serviço do que na procedência do sêmen”. Ao se formalizar uma filiação deve-se analisar o caso concreto, respeitando-se as novas relações familiares advindos do dinamismo conceitual, bem como dos elementos comportamentais e sociais que influenciam no estabelecimento da filiação baseada no afeto.
1.2. Pressupostos e evolução da paternidade socioafetiva
O NCC consagra a igualdade entre cônjuges e aboliu as discriminações entre filhos, todos sendo detentores de deveres e direitos, não importando terem estes sido havidos ou não na constância do casamento.
Entretanto, o dinamismo e a complexidade, atribuídos às novas relações familiares, contribuíram para a evolução do Direito de Família e, consequentemente, no reconhecimento da paternidade socioafetiva, possibilitado por não existir no Direito de Família regra absoluta, não engessando o progresso normativo. Essa nova vertente encaixa-se com a atual roupagem da instituição familiar, encontrando-se, como objetivo, o bem estar individual e coletivo dos entes integrantes do núcleo, suas realizações, bem como a satisfação de seus interesses, cada dia mais diversificados.
O processo de evolução do Direito de Família foi introduzido pela sociedade romana, trazendo inovações quanto ao aspecto jurídico e no modelo de família contemporânea. O novo paradigma trouxe também, a necessidade de modificações legislativas, afim de que enquadrem-se na nova realidade social, cultural e familiar apresentada.
A filiação perdeu sua função patrimonial, fundamentada na presunção e na Biologia, dando lugar ao afeto, como justificador principal das relações entre pai e filho. Ocorrem, então, o surgimento das divergências doutrinárias, lacunas legislativas, hermenêutica duvidosa, gerando inúmeras dúvidas e conflitos sobre qual paternidade deve se sobrepor a outra.
Os pressupostos imprescindíveis, caracterizadores da paternidade socioafetiva, para o professor Fachin[25], revela-se no comportamento cotidiano, de forma sólida e duradoura, capaz de estreitar os laços da paternidade, numa relação entre suposto pai e filho, o qual lhe empresta o nome de família e assim o trata perante a sociedade. Pai é aquele quem cuida, educa, alimenta, acompanha o desenvolvimento e a formação do filho, seja ele biológico, adotivo ou filho do coração.
Os laços de afeto independem do vínculo biológico, esta imposto pela própria vontade de amar, de exercer efetivamente sua condição paternal. Deve-se cumprir a mesma condição do estado de filho biológico, pois não se pode provar a filiação afetiva através de um exame, contudo, é possível evidenciar-se através do dia-a-dia, construído a base de carinho, amor, pela forma com que trata-se o filho, como também, pela publicidade dispensada a essa condição diante da sociedade, do chamar de filho e o aceitar do chamar de pai, caracterizando-se o estado de posse de filho.
No entender de Pedro Welter[26], para o reconhecimento da paternidade socioafetiva não basta a prova da aparência do estado de filho, mas sim a busca intransigente da verdadeira paternidade sociológica, embora afirme que a filiação socioafetiva ainda está em fase gestacional e que merece ser aprimorada.
Contudo, o preenchimento dos requisitos básicos como: nome, trato dispensado ao filho e a fama dessa condição, propiciam o reconhecimento da perfilhação afetiva, efetivada com a convivência familiar juntamente com a vontade livre de ser pai.
1.3. Função do pai socioafetivo
É dever do pai dar assistência criação e educação aos filhos menores e, inversamente, os filhos maiores têm o dever de ajudar os pais na velhice. Sendo assim, a família existe enquanto local onde persiste a reciprocidade[27].
Trata-se da paternidade responsável, positivada pela CF/88, em seu artigo 226, parágrafo 7º. O presente artigo prevê a paternidade responsável fundada no princípio da dignidade da pessoa humana.
Rubens Alves[28], em sua obra leciona que:
“Pai é alguém que, por causa do filho, tem sua vida inteira mudada de forma inexorável. Isso não é verdadeiro do pai biológico. É fácil demais ser pai biológico. Pai biológico não precisa ter alma. Um pai biológico se faz num momento. Mas há um pai que é um ser da eternidade: aquele cujo coração caminha por caminhos fora do seu corpo. Pulsa, secretamente, no corpo do seu filho (muito embora o filho não saiba disso).”
Torna-se de fundamental importância a presença do pai, para o desenvolvimento do filho, embora não haja previsão expressa em lei. Contudo, as inúmeras obras, as decisões singulares e as jurisprudências atuais caminham num mesmo sentido: efetivar o afeto como pressuposto fundamental para determinação das relações familiares, especificamente para o reconhecimento da paternidade.
A paternidade está direcionada a um vínculo de afeto, um ato de amor e desapego material. Ser pai, não é apenas possuir vínculo genérico com o filho, é estar presente no cotidiano, instruindo, amparando, dando amor, protegendo, educando, preservando os interesses e o bem estar social do filho.
O artigo 22 do ECA, dispõe que: “aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais”. Analisando o dispositivo, verifica-se, que a legislação previu as responsabilidades incumbidas aos pais, no entanto, deixou para doutrina dinamizar e especificar como se exercer esse dever, haja vista, que a essência de ser pai, como anteriormente mencionado, está além do dever material para com o filho. É, antes de tudo, amar, dar condições para que a criança desenvolva-se em um meio sadio, produtivo, harmonioso.
Transcrevendo o entendimento de João Baptista Villela:[29]
“A cosanguinidade tem, de fato e de direito, um papel absolutamente secundário na configuração da paternidade. Não é a derivação bioquímica que aponta para a figura do pai, senão o amor, o desvelo, o serviço com que alguém se entrega ao bem da criança.”
A função do pai socioafetivo difere do pai meramente biológico, não atuante, do ponto de vista afetivo. Acerca da matéria, Maria Cristina de Almeida[30] leciona o seguinte:
“O reconhecimento de situações fáticas representadas por núcleos familiares recompostos vem trazer novos elementos sobre a concepção da paternidade, compreendendo, a partir deles, o papel social do pai e da mãe, desapegando-se do fator meramente biológico e ampliando-se o conceito de pai, realçando sua função psicossocial. A vinculação socioafetiva prescinde da paternidade biológica. No sentido da paternidade de afeto, o pai é muito mais importante como função do que, propriamente, como genitor.”
Nem sempre a paternidade é responsável, e quando ocorre, é consequência, em sua maioria, do abandono afetivo, matéria de muitas discussões judiciais, acerca da possibilidade de responsabilização civil do pai que efetivamente nega afeto ao filho, seja ele biológico ou não. O abandono afetivo está presente em maior incidência nos casos de destituição familiar, em famílias desestruturadas, sem vínculo afetivo, gerando, assim, a existência do dano muitas vezes irreparável, objeto de inúmeras lides.
Atualmente, o tema já é bastante discutido nos Tribunais, existindo precedentes, tanto a favor quanto contrários. Compete ao Judiciário analisar o caso concreto, pois amor e dever não se misturam. Corroborando nesse sentido, tem-se o julgado do Ministro Fernando Gonçalves[31]:
“No caso de abandono ou do descumprimento injustificado do dever de sustento, guarda e educação dos filhos, porém, a legislação prevê como punição a perda do poder familiar, antigo pátrio-poder, tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 24, quanto no Código Civil, art. 1638, inciso II. Assim, o ordenamento jurídico, com a determinação da perda do poder familiar, a mais grave pena civil a ser imputada a um pai, já se encarrega da função punitiva e, principalmente, dissuasória, mostrando eficientemente aos indivíduos que o Direito e a sociedade não se compadecem com a conduta do abandono, com o que cai por terra a justificativa mais pungente dos que defendem a indenização pelo abandono moral. Por outro lado, é preciso levar em conta que, muitas vezes, aquele que fica com a guarda da criança transfere a ela os sentimentos de ódio e vingança nutridos contra o ex-companheiro, sem olvidar ainda a questão de que a indenização pode não atender exatamente o sofrimento do menor, mas também a ambição financeira daquele que foi preterido no relacionamento amoroso.”
Assim, quando há o reconhecimento da paternidade socioafetiva, há claramente a presença da vontade de ser pai e filho, de efetivar uma relação espontânea de ambos os lados, cultivada reciprocamente. O pai deve cumprir seus deveres legais, sempre aliados ao carinho, cuidado, zelo, afeto, bem como a união do trato, nome e fama, sentimentos indispensáveis para uma formação saudável das crianças, fazendo os laços afetivos superarem os biológicos. É essa a função principal do pai, exercer a paternidade responsável.
2. ASPECTOS JURÍDICOS DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA
Atualmente, a formação da família não tem que ser necessariamente uma formação convencional: pai, mãe e filhos. Hoje, é uma instituição constituída tanto biologicamente, quanto psicologicamente e sociologicamente, regulada pelo Direito, baseado, em valores morais, culturais, éticos, sempre visando o bem estar social.
A doutrina majoritária colaciona sobre o tema diversas vertentes, apontando para prevalência da paternidade socioafetiva, através de sua essência, que é o afeto, presente nas relações, cada vez mais plúrimas e complexas. As teses apresentadas corroboram para o entendimento pleno de que o afeto possui um valor jurídico, unindo pai e filho, independentemente de existir ou não, vínculo biológico.
É através do afeto que todo o círculo jurídico encontra embasamento para efetivação do direito à socioafetividade, vislumbrado do ponto de vista fático, devendo ser aplicado, pelo legislador brasileiro, caso a caso. A realidade jurídica deste tipo de perfilhação, ainda em construção no ordenamento pátrio, encontra divergências no plano concreto, em virtude das repercussões quanto ao reconhecimento da paternidade no âmbito patrimonial.
O direito à origem biológica, não desconstitui a filiação socioafetiva, mas apenas assegura o exercício pleno de seu direito de personalidade.Dessa forma, faz-se imperioso o reconhecimento, de que a instituição familiar está diante de um conflito constante, visando-se suprir as necessidades inerentes ao afeto, advindas da nova dinâmica social, incompatível com as razões patrimoniais existentes. A doutrina majoritária entende possível a pretensão do filho haver do pai socioafetivo, questões patrimoniais, embora não tenha ocorrido o reconhecimento judicial da socioafetividade, bastando a presunção e indícios suficientes quanto à paternidade.
2.1. Consequências jurídicas da socioafetividade: a obrigação alimentar e a herança
O elo afetivo, que une os entes integrantes da família, possui o mesmo valor que o estabelecido pelo ato notorial, em razão do princípio da solidariedade, em decorrência da mudança do foco das relações familiares[32]. Com o advento da CF/88, que trouxe em seu artigo 227, § 6º, a igualdade entre os filhos, geraram-se inúmeras discussões acerca da universalização dos direitos inerentes aos filhos, independente de sua origem. Dessa forma, ao igualar os filhos, transmitiu aos pais os mesmos deveres e direitos.
Cabe destacar, como bem leciona Andréa Salgado de Azevedo[33], que o conceito de igualdade acolhido, inclusive como princípio de interpretação às normas infraconstitucionais em matéria de família buscou resgatar a idéia jurídica de isonomia, ou seja, só existe proibição legal de que o essencialmente igual seja tratado de forma diferente. Após o reconhecimento judicial da paternidade socioafetiva, através da posse do estado de filiação, surgem os efeitos jurídicos decorrentes, pois, prevalece o poder do pai e seus deveres decorrentes da lei.
Os efeitos jurídicos da socioafetividade são idênticos aos efeitos gerados pela adoção, dispostos nos artigos 39 a 52 do ECA, quais sejam: a) a declaração do estado de filho afetivo afetivo; b) a feitura ou a alteração do registro civil de nascimento; c) a adoção do sobrenome dos pais afetivos; d) as relações de parentesco com os parentes dos pais afetivos; e) a irrevogabilidade da paternidade e da maternidade sociológicos; f) a herança entre pais, filhos e parentes sociológicos; g) o poder familiar; h) a guarda e o sustento do filho ou pagamento de alimentos; i) o direito de visitas, entre outros.
A doutrina majoritária atesta que, para tais direitos se efetivarem não se faz necessário que haja o reconhecimento da socioafetividade por via judicial, bastando os indícios e presunções quanto à existência da paternidade. Assim, assumindo-se a paternidade socioafetiva, assume-se todos os deveres inerentes à paternidade. A presente afirmação encontra respaldo na jurisprudência, conforme demonstrado no trecho adiante:
“Ao reconhecer a paternidade, assumiu o pátrio poder e com ele todos os encargos decorrentes, como é o caso do pagamento de pensão alimentícia. A filiação foi constituída pelo próprio autor, e como a Constituição Federal de 1988 não permite a discriminação de filho de qualquer natureza, artigo 22 § 6º, o pagamento de pensão alimentícia é decorrência lógica ao reconhecimento da paternidade. Presentes estão os pressupostos da obrigação alimentar. A necessidade do menor é presumida e, por se tratar de alimentos naturais, o pai deve continuar com o pagamento de pensão alimentícia”[34].
Por outro lado, em virtude do princípio da dignidade humana, o direito ao conhecimento da origem genética, não pode ser mitigado ao filho, que tem através da investigação da paternidade biológica, facilmente comprovada pelo exame de DNA, a possibilidade de obter a essência de sua personalidade, ajudando em sua formação emocional.
Contudo, no entender de Paulo Lobo[35], a investigação da paternidade só é cabível quando não houver paternidade, nunca para desfazê-la, e a jurisprudência se manifesta não permitindo que a investigação da paternidade seja utilizada em busca apenas do direito ao patrimônio, em virtude da filiação biológica, pois prevalece no ordenamento jurídico a verdade social.
No que tange ao direito alimentar, é assegurado aos filhos, independente de sua origem, bem como dever mútuo entre pais e filhos, descendentes e.ascendentes previsto no art. 1694, caput e 1695, do CC/02, veja-se:
“A finalidade dos alimentos é assegurar o direito à vida, substituindo a assistência da família a solidariedade social que une os membros da coletividade, pois as pessoas necessitadas, que não tenham parentes, ficam, em tese, sustentadas pelo Estado. O primeiro círculo de solidariedade é o da família, e somente na sua falta é que o necessitado deve recorrer ao Estado”[36].
Os alimentos têm caráter pessoal e é irrenunciável, embora possam não ser requeridos, mas nunca renunciar, conforme dispõe o art. 1707 do CC/02, tem o significado de valores, bens ou serviços destinados às necessidades existenciais da pessoa, em virtude da relação de parentesco, quando a própria pessoa não pode prover suas necessidades. Como também, é devido quando do término de relações conjugais, foco principal do presente trabalho.
O objetivo dos alimentos é a preservação do que o CC denomina “viver de modo compatível com a sua condição social”, além de atender “às necessidades de sua educação”[37]. Para que passe a existir o direito a alimentos, são necessários 3 requisitos, conforme a doutrina e diversas decisões dos tribunais, quais sejam: a) o vínculo de parentesco; b) a condição econômica do alimentante e a necessidade do alimentando; c) razoabilidade entre a possibilidade de prover os alimentos e a necessidade da percepção deste[38].
Em relação aos filhos, os alimentos são devidos em virtude da presunção de necessitarem de recursos para seu desenvolvimento físico e sua formação pessoal e profissional, haja vista, a total dependência decorrente por vezes da idade do filho, e consequência natural do pátrio poder, que engloba o dever de sustento, criação e educação. Nesse sentido, o seguinte acórdão[39]:
“A obrigação alimentar se fundamenta no parentesco, que é comprovado pela certidão de nascimento. O agravante alega não ser o pai biológico do menor. Enquanto não comprovar, não se pode afastar seu dever de sustento. A rigor, mesmo esta prova não será suficiente, pois a paternidade socioafetiva também pode dar ensejo à obrigação alimentícia.”
Assim, torna-se indiferente a comprovação da paternidade biológica, visto não ser fator suficiente para eximir-se do dever de sustento para com o filho. Não impedindo, portanto, que a obrigação alimentar derive-se do reconhecimento, voluntário ou não, da paternidade socioafetiva.
O presente direito, como os demais, inerentes à relação entre pai e filho, pressupõe uma relação de parentesco edificada sobre a caracterização do estado de posse de filho, sobrepondo-se sobre o vínculo biológico, garantindo a efetividade do princípio da dignidade humana. Não é garantia apenas o direito a alimentos, decorre também do reconhecimento da socioafetividade, o direito à sucessão.
Conforme preconiza a CF/88, a igualdade entre os filhos, vedando qualquer tipo de discriminação entre eles, com o reconhecimento da filiação socioafetiva, surgem os direitos e deveres da relação paterno-filial e, entre eles, o direito à herança, devendo ser reconhecido como herdeiro necessário como dispõe o art. 1845 do CC. No entanto, há divergências doutrinárias quanto à possibilidade, considerando-se, a procura do reconhecimento apenas para fins patrimoniais, o que não deveria acontecer sendo combatido a pretensão pela justiça, como expõe o presente julgado:
“Apelação cível. Investigação de paternidade socioafetiva cumulada com petição de herança e anulação de partilha. Ausência de prova do direito alegado. Interesse meramente patrimonial. Embora admitida pela jurisprudência em determinados casos, o acolhimento da tese da filiação socioafetiva, justamente por não estar regida pela lei, não prescinde da comprovação de requisitos próprios como a posse do estado de filho, representada pela tríade nome, trato e fama, o que não se verifica no presente caso, onde o que se percebe é um nítido propósito de obter vantagem patrimonial indevida, já rechaçada perante a Justiça do Trabalho. Negaram provimento. Unânime”[40].
É o entendimento de Paulo Lobo,[41] que corrobora para o presente estudo, senão vejamos: “paternidade é muito mais que prover alimentos ou causa de partilha de bens hereditários; envolve a constituição de valores e da singularidade da pessoa e de sua dignidade humana […]”.
Não sendo o caso de interesse meramente patrimonial, deve-se outorgar o direito à sucessão, pois, a filiação socioafetiva conforme demonstrado anteriormente, gera efeitos jurídicos por si só, desde que esteja presente na relação o nome, o trato e a fama. Devendo subsistir o direito mesmo que não haja o reconhecimento por via judicial, e sobrevenha o falecimento do pretenso pai. Cabendo, assim, ao Judiciário julgar conforme o caso concreto, protegendo a relação paterno-filial.
Fator que dificulta a busca e efetivação do direito não só a herança, mas no que tangem os alimentos bem como o reconhecimento da paternidade socioafetiva em si é a falta de regulamentação, embora esta não implique em desconsiderar o direito à filiação sociológica como atesta Maria Berenice Dias[42]:
“O Estado, ao se reservar o monopólio da jurisdição, assegurou a todos a prerrogativa de buscar os seus direitos. Elencou pautas de conduta por meio de leis e, na impossibilidade de prever todas as situações que a riqueza da vida, a inteligência humana e o avanço das ciências podem imaginar, atribuiu aos juízes não só a função de aplicar o direito, mas também o dever de criá-lo sempre que constatar lacunas na legislação… Tal função torna-se verdadeira missão, quando o magistrado se conscientiza de que lhe compete revelar o direito mesmo quando não há previsão legal, pois a ausência de lei não significa a inexistência de direito merecedor de tutela”.
Concretizando o pensamento supracitado, os litígios devem ser solucionados embora não haja previsão legal em texto expresso, garantindo-se a prestação jurisdicional, bem como, um respaldo aos conflitos postos à análise judicial.
2.2. Reconhecimento da paternidade socioafetiva como proteção integral da família e a proteção dos menores
Atualmente, a caracterização do estado de filiação, determinante da socioafetividade, pode apresentar-se através de três elementos que se coadunam para existência da posse de estado de filho, quais sejam: os tratos dispensados ao filho, o nome ostentado do patronímico da família (ao qual o filho inseriu-se) e a fama que transpassa para sociedade em geral, com a exposição pública do vínculo paternal.
O Direito converteu a afetividade em princípio jurídico, com força normativa, impondo dever e obrigação aos membros da família, ainda que na realidade existencial destes tenha desaparecido o afeto[43]. Hoje em dia, a nova vertente no Direito de Família é a socioafetividade, tendo por fundamento importante o princípio da dignidade humana como garantia nas relações afetivas, visando proteger os interesses do menor, onde os direitos dos pais cessam quando se iniciam os inerentes à criança, os quais são assegurados constitucionalmente.
A legislação civil, traz em seus dispositivos, referências claras que exprimem a opção do legislador pela escolha da paternidade socioafetiva, sejam eles o art. 1.593, que abre a possibilidade de outra origem de paternidade, o art. 1.596, que determina igualdade entre os filhos sejam eles havidos ou não no casamento, ou seja, biológicos ou não.
O art. 1597, em seu inciso V, admite a filiação gerada através da inseminação heteróloga, o qual é utilizado o sêmen de outro homem, condicionado a anuência do marido da mãe. Ainda é encontrado no art. 1.605, o reconhecimento da posse do estado de filiação, decorrente do comportamento afetivo dispensado ao filho, gerando a presunção da paternidade.
Paulo Lôbo[44] menciona que onde houver paternidade juridicamente considerada, haverá estado de filiação, presumido em relação ao pai registral. A afetividade foi positivada como princípio jurídico, com força normativa, onde são impostos deveres e obrigações decorrentes da caracterização da paternidade socioafetiva.
Dessa forma, constatada a socioafetividade no âmbito familiar, não mais poderá ser desconstituída. A paternidade socioafetiva não pode ser revogada, uma vez que, o que importa é a existência de um pai, a proteção, o cuidado, o amor dispensado ao filho, os laços afetivos constituídos diante do lar e da sociedade, que prevalecerão. Os fatos determinam as normas. Confira-se o que acentua Nogueira[45]:
“O verdadeiro sentido nas relações pai-mãe-filho transcende a lei e o sangue, não podendo ser determinadas de forma escrita nem comprovadas cientificamente, pois tais vínculos são mais sólidos e mais profundos, são invisíveis aos olhos científicos, mas são visíveis para aqueles que não têm osolhos limitados, que podem enxergar os verdadeiros laços que fazem de alguém um pai: os laços afetivos, de tal forma que os verdadeiros pais são os que amam e dedicam sua vida a uma criança, pois o amor depende de tê-lo e de dispor a dá-lo. Pais, conforto, sendo estes para os sentidos dela o seu “porto seguro”. Esse vínculo, por certo, nem a lei nem o sangue garantem.
O vínculo de sangue tem um papel definitivamente secundário para a determinação da paternidade; a era da veneração biológica cede espaço a um novo valor que se agiganta: o afeto, porque o relacionamento mais profundo entre pais e filhos transcende os limites biológicos, ele se faz no olhar amoroso, no pagá-lo nos braços, em afaga-lo, em protege-lo, e este é o vínculo que se cria e não que se determina […]”.
Pensamentos contemporâneos como o de Fernanda Barros[46], trazem a idéia que:
“Todo laço revestido de afeto poderá ser chamado de laço familiar. Não é um espermatozóide que define o que é um pai e nem o fato de uma mãe gestar um filho em seu ventre que garante a maternidade. Também não veremos brotar da letra fria da lei, um pai, uma mãe, ou uma família para um filho […].”
Assim, na incidência de conflitos, deverá se sobrepor à paternidade socioafetiva, em virtude da relevância e imprescindibilidade do afeto, para possibilitar o exercício efetivo da paternidade, suprindo a expectativa do filho que espera por seu reconhecimento e consequentemente, garantir a proteção da criança e do adolescente que se insere nessa nova realidade de relacionamento familiar.
Existem duas formas que possibilitam o reconhecimento da paternidade socioafetiva: a decorrente de uma decisão judicial ou pelo espontâneo e livre reconhecimento por ato praticado pelo suposto pai. A partir do reconhecimento dessa paternidade, o filho afetivo será detentor de direitos inerentes a perfilhação como, por exemplo, o patronímico da família inserido no seu registro de nascimento, bem como todos os demais direitos atinentes a uma adoção, efetivando-se o princípio da igualdade entre os filhos, constitucionalmente protegido e assegurado.
Além da CF de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente em seu capítulo III, trata do direito à convivência familiar, garantindo também a igualdade entre os filhos, havidos ou não no casamento e caracteriza em seu artigo 22 a paternidade responsável, tendo os pais, o dever de prover econômica e emocionalmente seus filhos independentemente da verdade biológica. Trata ainda, do reconhecimento do estado de filiação, constituído como direito personalíssimo indisponível e imprescritível.
Dessa forma, é também irrevogável, quando, em virtude da voluntariedade expressada registra como seu o filho afetivo. É o que preceitua o pensamento de Pedro Welter[47]: “permitir que o pai, ao seu bel-prazer pudesse, a qualquer tempo, desfazer o reconhecimento da paternidade de um filho, seria extremada injustiça, caracterizando um gesto reprovável, imoral […]”. Assim, o filho sociológico terá seus direitos equiparados ao do filho adotivo, especialmente no que se referir à sucessão.
O reconhecimento da paternidade socioafetiva não representa obstáculo à investigação da paternidade biológica, porém, uma vez estabelecida a socioafetividade, ela não mais deixará de existir, em prol de garantir os interesses e o bem estar dos filhos afetivos, fundamentado no princípio do melhor interesse à criança, fazendo valer o que a atual Constituição e o ECA prevêem em seu bojo.
Mister se faz que o legislador pátrio efetive as normas determinantes da afetividade, inserindo no ordenamento jurídico através de normas adequadas, dispositivos normatizadores das novas relações surgidas através do afeto, elevando a paternidade socioafetiva concretamente a uma espécie de filiação expressamente constitucional.
2.3. O afeto como dever jurídico e princípio formador da família constitucionalmente protegido
Num âmbito constitucional, a afetividade encontra-se como forma de efetivação da dignidade humana. A afetividade é o princípio que fundamenta o Direito de Família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia em face de considerações de caráter patrimonial ou biológico[48].
O princípio da afetividade está relacionado com a convivência familiar e com o princípio da igualdade entre os filhos, constitucionalmente assegurado. A filiação evolui do determinismo biológico para o afetivo, ao passo que, as inúmeras relações existentes, visam uniformemente o bem-estar pessoal.
O princípio da afetividade, embora implícito na Constituição, apresenta-se como dever jurídico, presumido nas relações entre pais e filhos. O afeto, em si, é um sentimento voluntário, desprovido de interesses pessoais e materiais, inerente ao convívio parental, constituindo o vínculo familiar.
Para ilustrar a efetivação do princípio nos Tribunais, tem-se o caso do menino Sean Richard Goldman, que é disputado pelo pai biológico e o pai socioafetivo (padrasto). De acordo com recente decisão proferida pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio, suspendeu sentença que determinou o envio do menor brasileiro Sean aos Estados Unidos.
Em sua fundamentação, dentre outros, encontra-se o direito a dignidade humana, bem como a prevalência dos interesses de Sean, possibilitando assim, o desenvolvimento harmonioso de sua personalidade, crescendo no meio familiar a que está vinculado, em clima de felicidade, de amor e de compreensão[49]. A presente demanda, ainda encontra-se em trâmite.
Desse modo, pode-se invocar a afetividade em duas perspectivas: como fundamento para o estabelecimento de vínculos paterno-filiais e como forma de impedir o rompimento destes mesmos vínculos, impossibilitando a sua desconstituição[50].
Nas constituições da família moderna, o afeto é a essência da formação humana, que nasce com a convivência, propiciando o desenvolvimento saudável, adequando o homem ao meio social. Para José Sebastião de Oliveira[51], a afetividade faz com que a vida em família seja sentida da maneira mais intensa e sincera possível, e isto só será possível caso seus integrantes vivam apenas para si mesmos: cada um é contribuinte da felicidade de todos.
Não há como se exercer a paternidade, biológica ou não, sem a presença do afeto, norteando a relação, partindo-se do pressuposto que, a família é um instrumento de realização do ser humano.
Pertinente se faz trazer ao estudo, o pensamento de Maria Christina de Almeida[52]:
“É fato que o elo biológico que une pais e filhos não é suficiente a construir uma verdadeira relação entre os mesmos. Basta verificar nas demandas de paternidade, que, muitas vezes, o filho conhece seu pai por meio de DNA, mas não é reconhecido por ele por meio do afeto. […] É necessário construir o elo, cultural e afetivamente, de forma permanente, convivendo e tornando-se, cada qual, responsável pelo, dia após dia. Tais reflexões demonstram que se vive hoje, no Direito de Família contemporâneo, um momento em que há duas vozes soando alto: a voz do sangue (DNA) e a voz do coração (AFETO). Isto demonstra a existência de vários modelos de paternidade, não significando, contudo, a admissão de mais de um modelo deste elo a exclusão de que a paternidade seja, antes de tudo, biológica”.
Completando, é prescindível que exista a paternidade jurídica ou biológica, para que sobrevenha a paternidade socioafetiva, esta se perfaz com a presença da vontade livre e consciente de querer ser pai, assumindo as suas responsabilidades paternais, diante de seus atos. Vale ressaltar que, a presença do afeto, para caracterizar a relação sociológica, é de sua importância na formação do vínculo familiar.
A afetividade gera uma verdade social e a lei precisa garantir o respeito para com as relações estabelecidas livremente, estabelecidas pelos indivíduos proporcionando assim, a liberdade de amar, mantendo-se a dignidade humana. Por isso, é o afeto que orienta a paternidade e forma a família.
O Direito de Família lida com uma diversidade de relações interpessoais, colacionadas no âmbito da sociedade, tentando solucionar conflitos, gerados em decorrência da divergência de interesses individuais. Na busca pela satisfação desses interesses, o poder estatal intervém, efetivando a norma existente que visa regular as relações familiares. No entanto, a norma existente ainda, não está pronta para atender a diversidade social, advinda de uma nova realidade da família brasileira.
A dignidade humana é princípio fundamental na CF/88, conforme art. 1º, inciso III e como já citado, no que tange ao Direito de Família, a Constituição dispõe em seu artigo 226, § 7º, que, o planejamento familiar está assentado no princípio da dignidade humana e da paternidade responsável. Ainda, no art. 227, prevê como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, dentre outros.
Os preceitos aqui dispostos são garantias e fundamentos mínimos, tutelados pelo principio da dignidade humana, visando uma melhor formação da personalidade dessa criança, assim como, seu bom desenvolvimento físico e mental.
Nos ensinamentos de Rolf Madaleno:
“A grande insurgência no Direito de Família com o advento da CC/88 foi a defesa intransigente dos componentes que formulam a inata estrutura humana, passando a prevalecer o respeito à personalização do homem e de sua família, preocupado o Estado Democrático de Direito com a defesa de cada um dos cidadãos. E a família passou a servir como espaço e instrumento de proteção à dignidade da pessoa, de tal sorte que todas as esparsas disposições pertinentes ao Direito de Família devem ser focadas sob a luz do Direito Constitucional”[53].
E é com base constitucional que, se deve repensar o Direito, focando sempre a atual realidade social, adequando-se a norma ao fato ocorrido, considerando-se o novo contexto cultural existente nas modernas relações familiares, plúrimas e complexas, carentes de compreensão.
Sabe-se que, o tema proposto nesse estudo é inesgotável, em virtude de ser o Direito mutante, e as novas instituições familiares surgem constantemente. A dinâmica social que rodeia o Direito de Família necessita de modificações constantes, em busca de efetivar a igualdade, a dignidade humana, promovendo o bem estar social de todos, indiscriminadamente. E no afã de alcançar esse objetivo, os Tribunais tem modificado sua visão, flexibilizando a norma positiva, utilizando-se da hermenêutica em prol das soluções esperadas pela sociedade.
Nesse diapasão, ainda encontra-se obstáculo, especialmente quanto ao sentimento de justiça para uns, que nem sempre converge no mesmo conceito que prevê a norma. Ponto crucial está no registro civil e suas nuances. Faz-se necessário uma breve explanação sobre o registro e suas vertentes, no intuito de expor aqui sua real importância no que constitui uma paternidade e declara uma filiação.
2.4 Aplicação da socioafetividade no Direito Brasileiro: jurisprudências e decisões singulares
O reconhecimento da paternidade socioafetiva e sua repercussão no ordenamento jurídico, ainda são uma problemática passível de várias discussões, tanto no âmbito da justiça, em suas decisões e jurisprudências, como entre os doutrinadores, para, assim, verificar-se uma unificação de tratamento diante da realidade social, dos diferentes tipos de constituição familiar, valendo ressaltar a subjetividade ora aplicada, na análise de caso a caso.
Nessa seara, no campo doutrinário, pode-ses citar o jurista Pedro Welter,[54] que entende que, na maioria dos casos, a filiação deriva da relação biológica, mas ela emerge da construção cultural e afetiva permanente, que se faz na convivência e na responsabilidade, assim expondo:
“Frizamos com veemência que o afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto, carinho e de solidariedade derivam da convivência e não do sangue. A filiação socioafetiva pode até nascer de indício, mas toma expressão na prova; nem sempre se apresenta desde o nascimento vindo a florescer com o tempo […]”.
A atual jurisprudência manifesta-se no sentido que os princípios constitucionais devem preencher as lacunas existentes no Direito de Família, decorrente da família mutante, utilizando-se do fenômeno da posse de estado de filho, valorado em detrimento das questões patrimoniais. Dessa forma, prevalece no entendimento dos Tribunais, o afeto como um fator determinante e autônomo, da paternidade. Ilustrando, há o presente julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
“EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PPREVALÊNCIA DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA SOBRE O VÍNCULO BIOLÓGICO. Ddemonstrada a paternidade socioafetiva, pelo próprio depoimento da investigante, possível o julgamento do feito no estado em que se encontra, sendo desnecessária a realização de exame de dna ou inquirição de outras testemunhas, que não poderão conduzir à outra conclusão senão da improcedência da ação. Preliminares rejeitadas e recurso desprovido, por maioria”[55].
Dentre esses e outros entendimentos encontram-se inúmeros relatos no mesmo seguimento e é em busca dessa ampliação que é norteado o presente estudo do instituto de filiação e suas nuances diante de uma sociedade hipercomplexa, em constante transformação, onde a cada dia surgem novos anseios e necessidades, decorrentes dessa dinâmica social e cultural da atualidade.
O Superior Tribunal de Justiça apresenta em seus julgados, decisões favoráveisao reconhecimento da paternidade socioafetiva, como o Acórdão, proferido em 21 de agosto de 2007, pela relatora ministra Nancy Andrighi, onde o STJ reconhece a validade da paternidade socioafetiva. A Turma, por unanimidade, entendeu que a ausência de vínculo biológico é fato que, por si só, não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento, já que a relação socioafetiva não pode ser desconhecida pelo Direito.
Para a ministra, paternidade socioafetiva e biológica são conceitos diversos e a ausência de uma não afasta a possibilidade de se reconhecer a outra. É o Julgado[56]:
“EMENTA: RECONHECIMENTO DE FILIAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO SANGÜÍNEA ENTRE AS PARTES. IRRELEVÂNCIADIANTE DO VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO.- Merece reforma o acórdão que, ao julgar embargos de declaração, impõe multa com amparo no art. 538, par. único, CPC se o recurso não apresenta caráter modificativo e se foi interposto com expressa finalidade de pré questionar. Inteligência da Súmula 98, STJ.- O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo sócio-afetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação sócio-afetiva é fato que não pode ser, e não é, desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil.- O STJ vem dando prioridade ao critério biológico para o reconhecimento da filiação naquelas circunstâncias em que há dissenso familiar, onde a relação sócio-afetiva desapareceu ou nunca existiu. Não se pode impor os deveres de cuidado, de carinho e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico, também não deseja ser pai sócio-afetivo. A contrario sensu, se o afeto persiste deforma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para reconhecer a existência de filiação jurídica.Recurso conhecido e provido. Acórdão: vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Castro Filho, a Turma, por unanimidade, conheceu do recurso especial e deu-lheprovimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Castro Filho, Humberto Gomes de Barros, Ari Pargendler e Carlos Alberto Menezes Direito votaram com a Sra. Ministra Relatora.”
Como demonstrado, prevalece na doutrina e nos Tribunais Superiores a verdade socioafetiva sobre o vínculo genético, preservando sempre a formação dos laços afetivos na relação paterno-filial.
O Tribunal do Rio Grande do Sul vem se destacando nas decisões de reconhecimento e de prevalência da paternidade socioafetiva, trazendo sempre em seus julgados, a análise da realidade fática, bem como avaliando o convívio de pai e filho, tendo como essência da paternidade socioafetiva, além do afeto, a vontade livre e consciente de querer e ser pai.E nesse embasamento a presente ementa:
“EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. CRIANÇA QUE FOI ACOLHIDA AOS TRÊS MESES DE IDADE, CRIADA COMO SE FILHO FOSSE ANTE A IMPOSSIBILIDADE BIOLÓGICA DO CASAL EM GERAR FILHOS. ADOÇÃO NÃO FORMALIZADA. A verdade real se sobrepõe a formal, cumprindo-nos conhecer o vínculo afetivo-familiar criado pelo casal e a criança, hoje adulta, ainda que não tenha havido adoção legal. Paternidade socioafetiva que resulta clara nos autos pelos elementos de prova”[57].
É dessa forma, que os Tribunais vem se manifestando nas decisões proferidas acerca da matéria. Assim, pertinente se faz a análise doutrinária e jurisprudencial sobre o atual posicionamento e aplicação, no ordenamento brasileiro.
Os desembargadores e a grande maioria da doutrina, embasam seus entendimentos sempre pautados na presença real do afeto, contudo, não ficam inertes quando existem dúvidas quanto à realidade dos fatos, uma vez identificado a falta dos requisitos necessários para configuração da socioafetividade, não obstam em julgar conforme os fatos presentes como o seguinte julgado:
“EMENTA: AÇÃO ANULATÓRIIA DE RECONHECIMENTO. PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA NÃO CONFIGURADA. A paternidade não é apenas um mero fato, um dado biológico, e sim, uma relação construída na vida pelos vínculos que se formam entre o filho e seu genitor. Caso em que as evidências levam à conclusão de que o reconhecimento da paternidade foi decorrente de erro, e não de decisão consciente do autor, o que o levou a afastar-se da criança, tão-logo soube que não era seu filho, entre ambos não se formando a relação socioafetiva que deve ser preservada. Negaram provimento, por maioria, vencido o Relator.”[58]
Ainda persistem inúmeras controvérsias atreladas à socioafetividade, que necessitam serem harmonizadas com o sistema jurídico. É com esse intuito que o Projeto de Lei nº 2.285/07 chamado de Estatuto das Famílias, elaborado inicialmente pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, que de acordo com a jurisprudência e a doutrina mais atualizada com a evolução social brasileira, consolida algumas orientações. E, caso seja aprovada pelo Congresso Nacional, afastará as principais divergências, preenchendo as lacunas hoje existentes no sistema legal.
Serão trazidas inovações em todo sistema jurídico que versa sobre o Direito de Família, visando a adequação da norma a realidade social, valorizando o sujeito e não o objeto, como forma de garantir a dignidade humana, princípio constitucionalmente garantido e pouco efetivado no que vige à família.
O Projeto pretende regulamentar e legitimar todas as formas de famílias, trazendo em sua essência, o valor jurídico norteador de todas as relações: o afeto. Se aprovado, as relações socioafetivas encontrarão respaldo expresso e constitucional para reconhecimento legal.
A proposta trata de todos os tipos de constituição familiar, dispondo em seu art. 10º que o parentesco resulta da cosanguinidade, da socioafetividade ou da afinidade. Ainda nas inovações, a filiação será provada “por qualquer modo admissível em direito, quando houver posse de estado de filho”, é o que preceitua o art. 71 do presente Projeto. Ocorrerá uma equiparação da filiação socioafetiva à biológica.
A presunção pater is est, será reformulada por completo, haja vista que o art. 76 admitirá que o marido, o convivente de união estável ou até mesmo a mulher possam impugnar a paternidade que lhe for atribuída no registro civil, a qualquer tempo, salvo quando ficar caracterizada a posse de estado de filho. Portanto, a socioafetividade não poderá ser objeto de impugnação, quando comprovada a posse de estado de filiação, tanto pelo pai quanto pelo filho registrado ou reconhecido voluntariamente, que passa a ser limite intransponível.[59]
Contudo, enquanto não aprovado o Projeto, deve-se apresentar no ordenamento soluções para realidade fática, inerente à atual sociedade, hipercomplexa, não bastando a criação de normas e preenchimento das lacunas, deve ocorrer a subsunção, ou seja, a adequação da norma ao fato, bem como não deve ser dispensada a flexibilização dos Tribunais em seus julgados, analisando caso a caso, verificando-se que ocorrendo, taxativamente, o preceituado na lei, continuará ocorrendo diversidades, haja vista a multiplicidade de relacionamentos interpessoais, advindos com a modernidade, fruto da modificação dos costumes e necessidades individuais.
3. DIREITO DE ESCOLHA REGISTRAL: FUNDAMENTO PARA GARANTIA DA SEGURANÇA JURÍDICA E PROTEÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA.
Conforme mencionado no decorrer deste trabalho, a jurisprudência, como atualmente tem se posicionado, reconhece a relação paterno-filial em decorrência da posse de estado de filho. O reconhecimento está embasado na formação do vínculo afetivo, que ratifica o famoso brocardo: “pai é quem cria”, elevando o afeto a princípio constitucional determinante das relações familiares e, em específico, da paternidade.
A paternidade sociológica é uma realidade, considerada como valor jurídico no atual Direito de Família. A filiação não é hoje sopesada através de um determinismo biológico, prevalecendo, na atual sociedade, a relação afetiva voluntária. O tempo é dinâmico, proporcionando mudanças, lapidando a sociedade, criando novas necessidades, rompendo barreiras, antes intransponíveis. O Direito está presente nessas transformações, amoldando-se, embora lentamente, ao desenvolvimento cultural e social desta nova realidade humana.
A constitucionalização do Direito de Família promove uma releitura do sistema, antes engessado e hierarquizado. A família de hoje vive um processo de emancipação de seus integrantes, todos disputando espaços próprios de crescimento e de realização de suas personalidades[60].
A CF/88, em seu preâmbulo, preceitua o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundando-se na harmonia social, visando-se o reconhecimento da socioafetividade, com escopo de proteger o fim social da família com dignidade e amor.
No entendimento de Maria Berenice Dias:
“É no direiro das famílias onde mais se sente o reflexo dos princípios eleitos pela Constituição Federal, que consagrou como fundamentais valores sociais dominantes. Os princípios que regem o direito das famílias não podem distanciar-se da atual concepção da família dentro de sua feição desdobrada em múltiplas facetas. A Constituição consagra alguns princípios, transformando-se em direito positivo, primeiro passo para a sua aplicação”[61].
Vale destacar que, a institucionalização do regime político democrático brasileiro, inseriu importante avanço na legislação pátria, através dos direitos e garantias fundamentais e na proteção da instituição familiar, priorizando como princípio norteador dessas relações a dignidade humana.
3.1. Registro: instrumento declaratório ou constitutivo da paternidade
Conforme prevê o art. 1.593, do CC/02, a filiação pode ser natural – consanguínea ou de outra origem, como por exemplo a adotiva ou socioafetiva, possibilitando o reconhecimento da filiação pela posse do estado de filho, dessa forma, distinguindo o direito de ser filho da origem genética.
Como mencionado neste trabalho, a paternidade socioafetiva se sobrepõe à biológica. Observa-se que, nem sempre o pai biológico exerce sua função real, no entanto, o socioafetivo supre essa carência, ofertando voluntariamente amor, companheirismo, zelo, proteção. Consiste no afeto mais puro e desinteressado que possa existir entre pai e filho. A consanguinidade não obriga o pai a dispor de afeto, apenas determina o direito do filho à personalidade.
Com o reconhecimento jurisprudencial da paternidade socioafetiva, não mais prevalece decorrente da presunção, ficção jurídica que perdeu sua essência, pois todos têm direito a contestar a paternidade, em busca da verdade real. Não obstante, na existência da paternidade socioafetiva, devidamente reconhecida, a busca pela verdade real, ou seja, pela origem genética, não ultrapassa os limites do direito à personalidade, vedado o caráter patrimonial, alimentar e sucessório.
Os pais afetivos não precisam de um processo de adoção para registrar a criança como seu filho, sendo apenas necessário o ajuizamento de uma ação de investigação de paternidade socioafetiva, a ser declarada em juízo, com fundamento no afeto voluntário, no querer ser pai.
A verdade e a falsidade no registro civil e na biologia tem parâmetros diferentes. Um registro é sempre verdadeiro se estiver conciliado com o fato jurídico que lhe deu origem. E é sempre falso na condição contrária[62].
Os Tribunais não têm admitido a alteração de um estado de filiação que já existe. Não cabe a investigação da paternidade, com o intuito de sobrepor uma paternidade sociológica já existente. Corrobora com o entendimento o julgado da Desembargadora Teresa Cristina da Cunha Peixoto, do Tribunal mineiro, em ação negatória de paternidade:
“É direito de todos buscar sua origem genética, entretanto, deve prevalecer a paternidade socioafetiva (a voz do coração), moldada pelos laços de amor e solidariedade, sobre a biológica (a voz do sangue), devendo ser mantido o assento de paternidade no registro de nascimento, apesar do resultado negativo do exame de DNA, tendo em vista o caráter socioafetivo, que perdurou por vários anos, como se pai e filha fossem, não sendo possível negar a paternidade apenas pelo fator biológico”[63].
A paternidade sociológica é uma relação que, derivando da realidade social, se desenvolve entre aquele que apresenta um estado de filho, diante de quem socialmente possui uma real posição de pai. Incorre que, apesar da existência da verdade biológica, a relação de afeto formada ao longo da convivência, se solidifica, passando a fecundar uma verdade social.
O Direito deve assegurar a proteção às relações, edificada sobre o afeto livre, voluntário, evitando lesão à própria dignidade humana. Em virtude dessa realidade, o pai afetivo é detentor de obrigações, mas também, de direitos, como por exemplo, o reconhecimento judicial de sua condição de pai e que este seja reconhecido através do registro civil, ao passo que, o registro de nascimento reporta apenas, uma verdade formal.
A filiação prova-se inicialmente pela certidão do termo de nascimento, registrada no registro civil, determinada pelo art. 1.603 do CC. No registro pode conter a verdade biológica ou não, pois não se exige que o declarante faça qualquer prova biológica; basta sua declaração. Embora a declaração possa estar viciada de erro ou falsidade, uma declaração resultante de uma filiação oriunda de posse de estado de filho, consolidada na convivência familiar, não estará eivada de vício.
O registro não exprime um evento biológico, apenas exprime um acontecimento jurídico. O afeto prevalece sobre a verdade formal, sobre o documento. É a vitória do afeto sobre a Biologia, fundamento esse utilizado para embasar a decisão proferida pelo Desembargador Rui Portanova[64]. Passa o registro a ser mera decorrência da filiação existente, seja ela social ou genética, mas é também um direito que assiste aos pais e filhos, em decorrência do reconhecimento da socioafetividade.
Onde houver paternidade juridicamente considerada, haverá estado de filiação, presumido em relação ao pai registral, seja ele o biológico ou afetivo. Assim, o registro é documento meramente declaratório da relação paterno-filial constituída, em virtude da posse do estado de filho.
3.2. Registro como prova da filiação
Uma das provas de filiação mais importantes é a certidão do termo de nascimento assentado no registro civil, conforme preceitua o art. 1.603 do CC. Até que se prove em contrário. O art. 1.604 prega que seja reivindicado direito contrário àquele proveniente do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do mesmo, ou diante de sentença transitada em julgado, que tenha provido ação de impugnação ou de contestação de paternidade[65].
O CC ainda prevê outras formas de prova da filiação, conforme disposto em seu art. 1.605, quando, diante da existência de prova escrita, proveniente dos pais ou ainda, da presunção da presença da posse de estado de filho, pode-se reconhecer a filiação. Embora não esteja expresso, literalmente, a posse de estado de filho é o que determina a paternidade nos dias de hoje. A finalidade específica do registro de nascimento, é fazer prova da filiação.
Para o filho, o registro representa um título, podendo com ele obter todas as conseqüências jurídicas devidas[66]. Como visto no decorrer do trabalho, o registro não decorre exclusivamente da paternidade biológica, não distante a existência da paternidade socioafetiva, que advém de uma relação vivenciada de fato entre pai e filho, ou seja, juridicamente nem sempre o vínculo se estabelece, automaticamente, da relação matrimonial.
Em outros casos, faz-se necessário o reconhecimento da paternidade, para que, no âmbito jurídico, produza seus efeitos. Fora o reconhecimento decorrente do casamento, existem os reconhecimentos voluntários ou judiciais[67].
O reconhecimento voluntário se realiza no simples fato do pai assumir a paternidade do filho havido fora do casamento, na forma legal, transformando a relação biológica em relação jurídica. Enquanto que o judicial, resulta de sentença proferida em ação intentada para esse fim, pelo filho, tendo, portanto, caráter pessoal[68]. O reconhecimento, seja ele voluntário ou judicial, produz efeitos ex tunc, ou seja, retroage até o dia do nascimento do filho ou mesmo da concepção se for de seu interesse.
Como leciona Maria Helena Diniz:
“Não se será pai em razão de uma decisão judicial, porque para sê-lo é preciso: a) querer bem a prole, estando presente em todos os momentos; b) ser o farol que o guia nas relações com o mundo; e c) constituir o porto firme que o abriga nas crises emocionais e nas dificuldades da vida. Pai é quem cria e educa. A relação paterno-filial não se esgota na hereditariedade, mas em fortes liames afetivos, numa trajetória marcada por alegrias e tristezas, podendo ser oriunda da verdade socioafetiva”[69].
A importância do registro de nascimento é a aquisição da condição jurídica de filho para obter não só direito ao nome, à educação e à criação compatíveis com o nível social de seu pai, mas direito à companhia do seu genitor, à sucessão, alimentos, bem como, todos os direitos decorrentes da filiação.
3.3. Direito de escolha registral como proteção à dignidade humana
Decorrente do princípio maior da dignidade humana pela nova visão de filiação é dada a proteção integral da criança e do adolescente, onde são reconhecidos e garantidos direitos que lhes são próprios. Visa-se atender o melhor interesse da criança. Assim, a relação de paternidade-filiação advém do trato socioafetivo em sobreposição ao vínculo biológico, a exemplo do que ocorre na adoção.
Heloísa Helena Barbosa[70] explica que:
“O reconhecimento da paternidade afetiva não configura uma concessão do direito ao laço de afeto, mas uma verdadeira relação jurídica que tem por fundamento o vínculo afetivo, único, em muitos casos, capaz de permitir à criança e ao adolescente a realização dos direitos fundamentais da pessoa humana e daqueles que lhes são próprios.”
Em linhas gerais, sendo a dignidade humana um dos princípios formadores do Estado brasileiro, por conseguinte diretriz de todo ordenamento, constata-se que o direito de um filho ter estabelecida sua paternidade é imprescindível para formação de sua personalidade. Contudo, não basta o reconhecimento biológico ou judicial, é de suma importância a junção do reconhecimento ao afeto.
Não adianta ter em mãos um título, com eficácia jurídica, mas com a ausência do pai em seu cotidiano. A paternidade deve atender sua função e o exercício pleno somente acontece quando há a vontade livre e consciente de querer ser pai, adquirindo seus deveres e direitos, juntamente com a vontade livre de querer ser filho, tendo também suas obrigações e direitos em relação ao pai.
Dessa forma, o registro de nascimento torna-se um instrumento meramente declaratório da filiação e constitutivo da paternidade, quando o pai declara como seu aquele filho, e constitutivo quando assume as consequências jurídicas advindas do ato jurídico praticado. Assim, declarada a manifestação de vontade e constituído o ato, não se pode desistir da paternidade. No entanto, a declaração não se sobreporá quando não existir vínculo afetivo entre pai e filho e é ai que surge a problemática do tema aqui proposto.
Com fundamento no princípio da dignidade humana, o direito ao registro civil, bem como, conhecer esse pai é constitucionalmente assegurado, mas não se pode confundir o direito à origem genética com o direito à paternidade. É comum a existência do registro de nascimento declarar como pai determinada pessoa, mas que, na realidade fática quem exerce efetivamente os deveres da paternidade é outra pessoa. Questiona-se: se o pai socioafetivo, exerce a função de pai responsável, suprindo todas as necessidades deixadas por aquele que apenas contribuiu com seu sêmen, e este assume com o reconhecimento da paternidade socioafetiva todos os ônus jurídicos decorrentes de seu ato, o porque de não poder ter a declaração dessa vontade livre e consciente de ser pai.
Uma vez que, reconhecida judicialmente a socioafetividade, o direito do filho à conhecer sua origem genética prevalece, mas apenas para fins da personalidade e não mais para fins patrimoniais, sucessórios e alimentares. Mais uma vez se confirma a premissa de que pai é quem cria, educa, dar carinho, acompanha o dia-a-dia do filho, protegendo, amando, zelando pelo seu futuro, se doando sem esperar nada em troca. É justo que esse pai tenha o direito em ter no registro de nascimento seu nome como pai.
A doutrina e jurisprudência têm caminhado nessa vertente, com o fundamento de que o interesse da criança deverá prevalecer em toda decisão que disser respeito a sua vida familiar e permitindo, eventualmente, escolher entre uma filiação jurídica e uma filiação biológica, desde que para assegurar seu bem estar.
Ser genitor e ser pai são figuras distintas, a paternidade não se resume na contribuição de material genético para formação da criança. É notória a existência de muitos pais socioafetivos que não figuram no respectivo registro de nascimento de seus filhos. Embora, essa ausência não impeça a relação entre eles, mas poderá causar muitos constrangimentos. Por exemplo, quando há necessidade de se declarar a paternidade, para matricula na escolinha do filho, dar explicações a um coleguinha mais ousado de quem é verdadeiramente seu pai, repetindo-se a mesma história: tenho dois pais.
Essa imposição jurídica, aplicada por uma norma positiva, que não se adapta mais a nova realidade social e cultural das famílias modernas, fere a dignidade humana, uma vez que, é constrangedor para uma criança ter que crescer explicando sua vida e sua opção paternal. Se ao juiz é incumbida a obrigação de julgar, a ele deve ser dado o direito de o fazer livremente, haja vista não poder se escusar do julgamento, independente da existência de lacunas normativas, cabendo ao juiz utilizar-se de outras fontes do direito em busca da solução dos conflitos e fazendo-se cumprir o senso de justiça.
E quem melhor do que o próprio interessado para atestar sua vontade? As leis devem evoluir com a sociedade, e sua interpretação deve propiciar a solução dos conflitos gerados por novas tecnologias e pelo desenvolvimento social. O direito não deve engessar o desenvolvimento da sociedade; ao contrário, deve adequar-se para atender aos seus anseios. O registro de uma paternidade socioafetiva não é condição sine qua non, para sua existência, porém, é condição indispensável para efetivação da dignidade humana.
A dignidade humana é princípio densificador do Estado Democrático de Direito e há necessidade que as normas infraconstitucionais, sobretudo as decisões dos aplicadores, estejam em conformidade com os valores constitucionais, em especial os atinentes à existência. A tendência que consagra a paternidade socioafetiva como forma de estabelecimento da filiação tomou forma e, efetivamente, vem sendo corroborada nas decisões judiciais por tratar-se de uma realidade que se impõe a cada dia[71].
Espera-se que o legislador brasileiro preencha essa lacuna, construindo um sistema definidor de laços afetivos de família, vinculando pessoas que desejam amar-se e cuidar-se reciprocamente, afirmando-se o interesse superior da criança como critério principal. Elemento principal e indispensável à solução das questões no âmbito familiar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A atribuição da paternidade a alguém sempre esteve presente no Direito e teve início no Direito Romano, com a presunção da mesma, que visava proteger o instituto da família, evitando a dissolução do casamento. O Direito brasileiro esteve intimamente ligado ao romano, quando, por exemplo, impedia a investigação da paternidade pelos filhos havidos fora do casamento. Antes da CF/88 existia a discriminação entre os filhos biológicos e os não-biológicos, ocorrendo a classificação destes em legítimos, ilegítimos e os legitimados.
Com o advento da CF/88, houve uma relativização dessa classificação, quando ficou vedada a discriminação entre os filhos e sua origem, passando todos os filhos a serem iguais, não tendo mais distinção de direitos entre eles. O atual modelo de família exige uma nova roupagem da norma, sendo esta imprescindível no atendimento dos anseios e necessidades diversas advindas de uma nova realidade social e cultural.
Indiscutível a existência da paternidade socioafetiva e sua sobreposição à meramente biológica, haja vista esta nem sempre vir acompanhada de afeto. A paternidade socioafetiva deve ser considerada como uma das novas manifestações familiares instituídas através do afeto, sem o qual nenhuma base familiar pode resistir. O vínculo de sangue tem o papel secundário na determinação da paternidade.
Surge um novo valor que se impõe a era biológica: o afeto. Entretanto, o legislador regulamentou as entidades familiares que estão presentes no ordenamento jurídico, mas esqueceu de normatizar de forma clara a filiação socioafetiva, dando meios a incessantes discussões judiciais, em busca de seu reconhecimento.
O real sentido nas relações pai e filho transcendem a lei e o sangue, não podendo ser determinadas de forma escrita nem comprovadas cientificamente, pois tais vínculos são mais fortes e profundos, que faz alguém ser um verdadeiro pai: os laços afetivos.
Os verdadeiros pais são os que amam, educam, dedicam sua vida a um filho independentemente de receber algo em troca. É o amor puro, incondicional, doado livremente, sem imposições. A doutrina e jurisprudência vêm adotando o afeto como fator determinante da paternidade, facilitando as soluções dos conflitos, em prol dos interesses das crianças e a promoção de seu bem estar social, fazendo-se cumprir o princípio da dignidade humana.
O direito ao conhecimento da origem genética não importa necessariamente ao direito de filiação. Sua natureza é de direito da personalidade, de que é titular cada ser humano. A origem genética apenas poderá interferir nas relações de família como meio de prova para se reconhecer judicialmente a paternidade, nunca para negá-las. Embora o registro de nascimento seja o instrumento que faz prova da filiação, este não impõe o exercício da paternidade. O fim principal do registro é a declaração dessa condição e tornar possível o pleito com fim patrimonial, sucessório e alimentar. No entanto, o reconhecimento da paternidade socioafetiva, impede que o vínculo meramente registral entre o pai biológico e o filho com intuito de buscar juridicamente os ônus de uma paternidade jurídica se efetivem.
É indubitável o direito do filho em conhecer a origem genética, mas uma vez reconhecida a socioafetividade a investigação da paternidade biológica terá a finalidade meramente no que diz respeito ao direito da personalidade, não podendo o filho desconstituir a relação existente advinda da convivência e afeto mútuo, consentido.
Faz-se imperioso que, o direito à escolha registral pelo filho deva ser uma garantia a sua dignidade e a proteção a segurança jurídica, haja vista que aquele que tem o título de pai, exerce efetivamente suas obrigações paternais, de forma voluntária e consciente, assumindo os ônus jurídicos, decorrentes de seu ato, nada mais justo que tenha também o direito a ver constituído no mundo jurídico a prova dessa perfilhação. Garante-se, assim, a dignidade humana da criança, podendo, com sua maioridade, impugnar esse reconhecimento, conforme previsto no artigo 1.614 do CC.
Para solucionar o impasse, faz-se mister que o legislador preencha as lacunas existentes no direito pátrio, utilizando-se da hermenêutica jurídica em favor dos interesses da criança, levando em consideração o afeto como principio formador da família, em especial constituidor da relação paterno-filial, mesmo que para isso tenha que flexibilizar a norma positiva em detrimento da prevalência desses interesses, efetivando-se o princípio da dignidade humana, respaldado no bem estar de cada indivíduo.
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