Resumo: Sem a intenção de exaurir o tema, o presente estudo tem por finalidade abranger a questão da ruptura da vida conjugal com o advento da PEC 28/2009, na qual suprime a separação, põe fim aos prazos para concessão do divórcio, alterando o § 6º do art. 226 da Constituição Federal. Assim, traremos questões que interligam essa nova dinâmica processual, contribuindo para a discussão dos novos rumos do Direito de Família.
Sumário: 1. A consagração da família como base da Sociedade do Estado Democrático de Direito. 2. O Estado Laico. 3. A intervenção estatal. 4. O tempo como aliado. 5. A preservação emocional. 6. Referências Bibliográficas.
1. A consagração da família como base da Sociedade do Estado Democrático de Direito[1]
A família foi, é, e continuará sendo o núcleo básico e essencial da formação e estruturação dos sujeitos, e, consequentemente, do Estado. Mas cabe aqui, nesse breve estudo, fazermos um raso resumo histórico quanto a sua formação como base da Sociedade de Estado Democrático de Direito.
Desta forma, para iniciarmos o nosso trabalho histórico, partiremos da afirmação do professor Caio Mario da Silva Pereira, “as transformações operadas neste século teriam sido maiores e mais avançadas de que em dois milênios de civilização romano-cristã”[2].
Tal assertiva demonstra que a família não está dissociada dos fatores exógenos que a cercam, recepcionando acontecimentos e fenômenos sociais, econômicos e políticos. O próprio Código Civil de 1916, representante de uma sociedade fundiária, patriarcal, hierarquizada e fortemente marcada pelo cristianismo, reconhecia apenas a família formada no matrimonio, o qual era tido como célula fundamental da sociedade, a ser protegida e enaltecida pelo ordenamento jurídico como instituição, independente das pessoas que a integravam.
Dessa visão decorria a sua indissolubilidade, tendo fim em si mesmo, era tratado de forma rígida, submetido ao controle absoluto do varão, com a submissão total da mulher e dos filhos, através de poderes jurídicos, como o poder marital e pátrio poder.
Entretanto, com as mudanças sociais advindas no decorrer da Século XX, tal visão estaria fadada a mudar. A longevidade, a emancipação feminina, a perda de força do cristianismo, a liberação sexual, o impacto dos meios de comunicação de massa, o desenvolvimento científico com as perícias genéticas e descobertas no campo da biogenética, a diminuição das famílias com o aperfeiçoamento e difusão dos meios contraceptivos, tudo isso atingiu fortemente a configuração familiar. Ademais, a urbanização e a industrialização, mudando a base produtiva da sociedade, também afetariam o Direito de Família, já que o poder empresarial, ao contrário da propriedade fundiária, não é ligado à organização familiar[3].
O divórcio (introduzido pela Lei n. 6.515/77, que foi editada após a aprovação da Emenda Constitucional n. 09/77), com o rompimento não apenas da sociedade, mas do próprio vínculo conjugal, fez ruir o dogma da indissolubilidade do matrimônio. Balançava, assim, o pedestal da “família tradicional”. Novos tempos trouxeram novas famílias e novos valores que passaram a fundamentá-las.
O Direito, como um dos legados da modernidade – visto como instrumento de transformação social e não como obstáculos às mudanças sociais – formalmente encontrou seu ponto culminante na Constituição de 1988. A forma desse veículo, por assim dizer, de acesso à igualdade prometida pela modernidade foi a instituição do Estado Democrático de Direito.
Com efeito, como teria dito Victor Hugo, “quando decompuserdes uma sociedade, o que encontrareis como resíduo final não será o indivíduo e sim a família”[4]. Rui Barbosa também salientou a relevância da família, afirmando que “a pátria é a família amplificada. E a família, divinamente constituída, tem por elementos orgânicos a honra, a disciplina, a fidelidade, a benquerença, o sacrifício”[5].
Os valores solidaristas e igualitários sedimentaram a nova face do Direito. O art. 226, caput, do texto constitucional, ao estabelecer que a “família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, reconhece a importância do organismo familiar para a formação e a manutenção da sociedade, sendo que o modelo unitário de família matrimonial foi ampliado para vários (plurais)[6] modelos de famílias que não se esgotam no rol previsto constitucionalmente.
Assim, sem família não há sociedade, daí a especial proteção que o Estado garante às famílias, não mais consideradas como instituições independentes, mas em razão da tutela das pessoas humanas que as integram, independentemente do modelo escolhido ou existente[7].
De fim em si mesmo, do qual não se questionava as razões de ser, a entidade familiar passou a ser meio de realização da dignidade e das potencialidades de seus membros. Assim, a família é representada por uma comunidade particularmente própria à realização pessoal dos seus integrantes, promovendo-lhes o desenvolvimento de suas personalidades e melhores potencialidades, em estreita consonância com o valor da dignidade da pessoa humana na dimensão social. Sendo a base da formação do Estado Democrático de Direito.
2. O Estado Laico
Estado laico é Estado leigo, neutro.
Foram quase dois séculos de luta pela emancipação do Brasil como Estado Democrático de Direito e pelas garantias dos direitos individuais. No Brasil Império, inúmeras foram as tentativas de redução do poder da Igreja em matérias do Estado.
Com a proclamação da independência, no ano de 1827, e a instauração da monarquia (1822-1899), o Brasil permaneceu sob influência direta e incisiva da Igreja, em matéria de casamento. O Decreto de 03.11.1827 firmava a obrigatoriedade das disposições do Concílio de Trento e da Constituição do Arcebispado da Bahia, consolidando a jurisdição eclesiástica nas questões matrimoniais.
No Brasil Império, houve a primeira flexibilização da Igreja Católica. Decreto 1.144, de 11.09.1861 regulou o casamento entre pessoas de seitas dissidentes, de acordo com as prescrições da respectiva religião. A inovação foi passar para a autoridade civil a faculdade de dispensar os impedimentos e a de julgar a nulidade do casamento. No entanto, admitia-se apenas a separação pessoal.
Proclamada a República, em 15 de novembro de 1889, houve a separação entre a Igreja e o Estado e a necessidade de regular os casamentos.
Conforme De Plácido e Silva: “LAICO. Do latim laicus, é o mesmo que leigo, equivalendo ao sentido de secular, em oposição do de bispo, ou religioso.” (SILVA, 1997, p. 45)
Todavia, apesar ser declarado um Estado laico, por muitos anos a igreja permaneceu impondo seu poder sobre as leis brasileiras. Exemplo disso é quanto ao fim do casamento, no qual somente é dissolvido pela morte dos cônjuges, casamento nulo ou pelo divórcio, sendo então instituição sagrada de vínculo duradouro.
Com o fundamento de que a família é sagrada e tem por finalidade a procriação, os dogmas religiosos permaneceram nas leis brasileiras, mesmo não sendo declarados.
Assim, no momento em que estamos em vias de aprovação da Emenda Constitucional que suprime a separação judicial, propondo o divórcio imediato como meio capaz de dissolver a sociedade conjugal, a Igreja permanece contrária e é trazida ao debate.
Desta feita, parece-nos que a Constituição Federal impôs um Estado laico, entretanto permaneceu sendo só no papel.
Não se pode buscar o desenvolvimento futuro, seja ele legal, social ou pessoal, se mantermos determinadas raízes apregoadas nos séculos passados.
Hoje, a família, que é a base do Estado Democrático de Direito, está fundada no respeito, no companheirismo, no afeto e na felicidade. Assim, defender a família nos tempos do século XXI é garantir que a mesma esteja formada e unida pelos laços do amor. Proporcionando, desta maneira, a liberalidade de escolher o seu parceiro e a sua “família modelo”.
3. A intervenção estatal
As normas que tratam das questões familiares nos trazem todos os formalismos para a constituição e a dissolução do casamento.
Conjugam-se, de um lado, esse estatuto, para o qual se elaborou uma série de formalidades prévias, cerco de segurança jurídica ao ato que é objeto de realização, e ao mesmo tempo, de outro lado, esse mesmo sistema estatui a indissolubilidade do vínculo[8].
O Estado, como poder soberano, regulava intimamente as relações pessoais dos indivíduos. Assim, o processo de casamento, o processo de separação e o processo de divórcio eram levados ao crivo do poder judiciário.
Desta sorte, mesmo não havendo mais a intenção dos membros permanecerem unidos, eram obrigados a aguardar o lapso temporal, exigido por lei, para postularem o pedido de divórcio e, assim, terem a autorização para casarem-se novamente.
Mecanismo este, que além de expor as partes perante o poder judiciário para atingirem a sentença de separação, impunha a eles a necessidade de aguardarem períodos fixados pelo legislador para, novamente, obrigá-los a uma nova exposição, neste momento com a intenção de atingirem a sentença de divórcio.
Contribuindo ao nosso entendimento, Maria Berenice assim se pronuncia quanto ao advento da supressão da separação judicial: “Mas, de tudo, o aspecto mais significativo da mudança que se avizinha talvez seja o fato de que o Estado acabar uma injustificável interferência na vida dos cidadãos. Enfim passa a respeitar o direito de todos de buscar a felicidade que não se encontra necessariamente na mantença do casamento, mas, muitas vezes, com o seu fim”.
No mesmo sentido, vale a contribuição do professor Luiz Edson Fachin, no qual nos demonstra o quão conflitante é o enfrentamento judicial nas lides familiares.
“o que vai parar na Justiça podem ser os restos do amor, como já se escreveu, ou quando não o próprio ódio, que ocupa, de modo cruel, os laços antes existentes. Tais conflitos são expostos nas separações ou divórcios, bem assim nas medidas preparatórias (separação de corpos, afastamento do lar conjugal) ou incidentais (busca e apreensão de filhos, por exemplo). Das desavenças se faz a exposição pública (embora os processos tramitem em segredo de justiça), tomada essa exposição no sentido de se estar diante do Estado-juiz”[9].
Todavia, a moldura jurídica instaurada com as normatizações foi cedendo espaço para a força construtiva dos fatos e encontrou rompimento no momento em que o desenho familiar se torna plural e substanciado no afeto. Proclamam-se, com mais assento, a concepção eudemonista da família: não é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas a família e o casamento existem para o seu desenvolvimento pessoal, em busca de sua aspiração à felicidade.
O que se faz necessário é entender que a norma codificada é produto da sua época e traduz suas raízes históricas e sociológicas[10]. Ao largo dos códigos, e mesmo contra os códigos, os fatos vão veiculando sua reforma, que abre portas na jurisprudência e na legislação esparsa. Daí emergir uma dimensão renovada, florescida para dar espaço à felicidade.
Numa sociedade de identidades múltiplas, da fragmentação do corpo no limite entre o sujeito e o objeto, o reconhecimento da complexidade se abre para a idéia de reforma como processo incessante de construção e reconstrução do Direito.
Neste entendimento, não se torna mais possível a necessidade de tamanha intervenção estatal para desvincular uma sociedade conjugal que não mais prospera. Justamente por estarmos transformando o Direito, com base nas transformações sociais e pessoais de cada um, que não deseja mais a união material, mas sim a união de afetos.
4. O Tempo como aliado
Reza o § 6º do art. 226 da Constituição Federal, que o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada a separação de fato por mais de dois anos.
Ainda, no Código Civil, artigo 1580, estabelece os prazos que devem ser observados para o pedido de divórcio. Assim, decorrido 1 (um) ano do trânsito em julgado da sentença que houver decretado a separação judicial, ou da decisão concessiva da medida cautelar de separação de corpos.
Desta maneira, deve a parte, após a separação (e, friza-se aqui, que estamos referindo-nos do trânsito em julgado da sentença de separação judicial) aguardar o lapso temporal de um ano para, assim, estar apta a requer o pedido de divórcio perante autoridade judiciária. Ou, ainda, o mesmo lapso temporal de medida concessiva de separação de corpos ou comprovada separação de fato.
Tratando-se de divórcio dito como “direito”, pela atual legislação, em caso de falta de separação judicial prévia, comprovada separação de fato, temos o lapso temporal ampliado, que passa a ser de dois anos.
Períodos estes que não podem mais prosperar. Pois, o corpo da família, sem deixar de ser o que é, vive a paixão de ser outro. Sobrevive, pois, na razão jurídica e no espaço social, prefaciando o futuro com a afirmação de sua história em contínua reconstrução.
Em vias de se edificar uma família-amizade como vínculo, cidadã pela ternura e pelo afeto, abrir espaço para o reconhecimento da inclusão na cidadania da amizade, é, quem sabe, o que mais nos resta nos tempos de intolerância.
Como escreveu MICHEL SERRES, “às vezes, a separação é uma boa solução do amor”[11]. E, é nesse sentido que os operadores do direito devem se atentar. Para o fato de que o Direito de Família, de sobremaneira mais do que qualquer outro ramo do direito, se forma e se transforma na sociedade. Sociedade, hoje, que preza por valores distintos e que se une por ideais de afeto.
Não são as normas burocráticas que irão impedir ou dificultar as realizações pessoais. Não cabe mais o poderio soberano do estado, em duplo momento de verificação da dissolução conjugal, com o transcorrer de longas esperas para a busca da realização e da felicidade.
5. A preservação emocional
No momento de uma separação o casal vivencia uma fragmentação penosa.
Invariavelmente a separação não é uma mera opção das partes, o que implica dizer que se separar não é fácil, pois há sofrimento envolvido, por mais que o casamento esteja aparentemente pouco satisfatório, ou mesmo desajustado.
Divórcio é um momento de crise importante na vida da pessoa. Em geral, ocorre uma reação de luto pelo fim da união, por pior que esta estivesse antes da separação. Falamos de luto pela tristeza decorrente da perda do casamento, tristeza que pode iniciar antes mesmo da separação definitiva. A maioria das pessoas, que passa por acompanhamento terapêutico, relata sentimentos de depressão e angústia intensa, relacionada a dúvidas e mudança constante no humor na época da separação.
De modo similar, pode ocorrer o medo e a incerteza diante do futuro da vida de descasado, com os sentimentos de abandono, de solidão e de vazio pela perda da relação conjugal.
Apesar de uma separação poder ocorrer de forma rápida, estudos mostram que o processo de recuperação psicológica da crise do divórcio leva cerca de dois anos[12] para ter uma resolução satisfatória, quando torna-se possível que o ex-cônjuge seja visto de modo neutro (sem raiva ou rancor intensos ou, por outro lado, quando deixa de ser visto como “uma paixão insubstituível e perfeita”), com cada um dos separados aceitando sua nova identidade de pessoa solteira ou descasada.
Contudo, passado o lapso temporal de dois anos para que haja a reconstrução de toda a estrutura psicológica humana, chega o momento da parte enfrentar uma nova batalha chamada divórcio.
Além disso, passar por este período pode ensejar a necessidade de tratamento psicológico, justamente pela perda conjugal, ou pelas modificações de vida decorrentes da mesma.
Desta forma, não se torna plausível que as partes se exponham em dois momentos distintos aos sofrimentos, memórias, angústias e tristezas que já foram obrigados a vivenciar em tempos passados.
Para nós, o momento da ruptura da vida conjugal não é o fim da família, mas uma de suas transformações possíveis. Concebemos os litigantes como membros de uma mesma família, uma família descasada. É preciso lembrar que a instituição família é algo que todos conhecemos, mas sem uma definição precisa e que abrange muito mais do que laços do matrimônio.
Assim, dar a possibilidade das partes manterem-se unidas em busca de uma felicidade única é garantir a efetivação dos Direitos consagrados pelo Estado Democrático e, ainda, proporcionar a saúde psicológica, na medida em que preserva o íntimo conjugal e evita novos conflitos, tristezas, angústias e sensações de perda.
As famílias não se extinguem, apenas se remodelam.
Advogada. Especialista em Direito de Família e Sucessões, pela Faculdade IDC; Pós-Graduanda em Bioética pela PUC/RS; Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC/RS; Diretora Estadual (RS) da ABRAFAM, Associação Brasileira dos Advogados de Família; Palestrante; Parecerista e Consultora Jurídica.
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