1. Introdução[1]
É a declaração de invalidade de um ato administrativo ilegítimo ou ilegal, feita pela própria Administração ou pelo Poder Judiciário.
Baseia-se, portanto, em razões de ilegitimidade ou ilegalidade.
Desde que a Administração reconheça que praticou um ato contrário ao direito vigente, cumpre-lhe anulá-lo o quanto antes, para restabelecer a legalidade administrativa.
Como a desconformidade com a lei atinge o ato em sua própria origem, a anulação produz efeitos retroativos à data em que foi emitido (efeitos ex tunc, ou seja, a partir do momento de sua edição).[2]
A anulação pode ser feita tanto pelo Poder Judiciário, como pela Administração Pública[3], com base no seu poder de autotutela sobre os próprios atos, de acordo com entendimento já consagrado pelo Supremo Tribunal Federal por meio das Súmulas transcritas a seguir:
Súmula 346: “A Administração Pública pode anular seus próprios atos”.
Súmula 473: “A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”.
Para ser feita pelo Poder Judiciário, a anulação depende de provocação do interessado – tendo em vista que a atuação do Poder Judiciário, diferentemente do que ocorre com a atuação administrativa, pauta-se pelo Princípio da Demanda – iniciativa da parte -, que pode utilizar-se quer das ações ordinárias, quer dos remédios constitucionais de controle da administração (mandado de segurança, ação popular etc.).
O conceito de ilegalidade ou ilegitimidade, para fins de anulação do ato administrativo, não se restringe somente à violação frontal da lei.
Pois abrange não só a clara e direta infringência do texto legal, como também o abuso, por excesso ou desvio de poder, ou por negação aos princípios gerais do direito.
O ato nulo não vincula as partes, mas pode produzir efeitos válidos em relação a terceiros de boa-fé.
Somente os efeitos, que atingem terceiros, é que devem ser respeitados pela administração.
Torna-se mais fácil entendermos os motivos pelos quais os atos administrativos viciados devem ser anulados quando percebemos que tais vícios sempre atingirão um dos requisitos de validade dos ditos atos. Como sabemos, esses requisitos são a competência ou sujeito, a finalidade, a forma, o motivo ou causa e o objeto ou conteúdo.
Portanto, violado um desses requisitos, impõe-se a decretação da nulidade do ato.[4]
Mas quando saber quando foi violado um desses requisitos?
Nesse particular, socorre-nos a Lei da Ação Popular (Lei 4.717 de 29/06/65), que em seu artigo segundo, ao tratar dos atos lesivos ao patrimônio público, enumera as hipóteses em que ficam caracterizados os vícios que podem atingir os atos administrativos, verbis:
“Art. 2º (…)”.
a)incompetência
a)Vício de forma
b)Ilegalidade do objeto
c) Inexistência dos motivos
d)Desvio de finalidade
Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as seguintes normas:
a) a incompetência fica caracterizada quando o ato não se incluir nas atribuições legais do agente que o praticou;[5]
b) o vício de forma consiste na omissão ou na observância incompleta ou irregular de formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato[6];
c) a ilegalidade do objeto ocorre quando o resultado do ato importa em violação de lei, regulamento ou outro ato normativo[7];
d) a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou direito, em que se fundamentou o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido;
e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência[8].
2. A controvérsia doutrinária a cerca da Invalidação dos Atos Administrativos
O tratamento da questão relativa à invalidação (anulação) dos atos administrativos baseia-se, normalmente, nos clássicos ensinamentos de Hely L. Meirellles e corresponde a corrente tradicional sobre o tema, razão pela qual a mantivemos aqui, inicialmente.
Todavia, modernamente, muito se discute sobre esse posicionamento, razão pela qual, se faz necessário um maior aprofundamento sobre o tema da nulidade dos atos administrativos, quer pelas mudanças nos paradigmas informadores do Direito Administrativo, decorrentes mesmo da evolução dessa cadeira jurídica, quer pela própria necessidade de adequar-se os postulados básicos do direito público à nova realidade constitucional e legal atual.
3. A Teoria das Nulidades
A questão das nulidades no Direito é um dos temas mais tortuosos enfrentados pelos juristas e doutrinadores.
Se mesmo no Direito Civil[9] ainda provoca polêmicas, de pode imaginar seus efeitos no Direito Administrativo. Bem oportuna é a lição de Seabra Fagundes, lembrado por Carvalho Filho, que asseverou “a deficiência e a falta de sistematização dos textos de Direito Administrativo embaraçam a construção da teoria das nulidades dos atos da Administração Pública”.
As nulidades no direito comum tradicionalmente obedecem a um sistema dicotômico, no qual, dependendo da intensidade do vício que atinja o ato jurídico, dependendo do tipo de interesse violado – o interesse público, ou o interesse privado-, maculado pelo vício, a lei o fulmina com a pecha da nulidade ou da anulabilidade, ambas figurando no novo Código Civil, art. 166 e 171, respectivamente (Art. 145 e 147 do Código de 1916).
Como salienta Celso Antônio Bandeira de Mello, “a ordem normativa pode repelir com intensidade variável atos praticados em desobediência às disposições jurídicas, estabelecendo destarte uma gradação no repúdio a eles”.
No Direito Civil, são duas as diferenças básicas entre a nulidade e a anulabilidade[10]. A primeira é que a nulidade não admite a convalidação, ao passo que na anulabilidade ela é possível. A segunda é que a nulidade pode ser decretada pelo juiz ex officio (sem provocação da parte interessada), ou ainda mediante provocação pela parte ou pelo Ministério Público; enquanto que no caso da anulabilidade, esta só pode ser apreciada mediante provocação da(s) parte(s) interessada(s).
A possibilidade de adaptar-se a teoria das nulidades civilistas ao Direito Administrativo provocou enorme cisão na doutrina, a ponto de dividi-la em dois pólos antagônicos: os monistas e os dualistas.
Para os monistas, é inaplicável ao Direito Administrativo a dicotomia das nulidades do Direito Civil. Para estes autores, o ato administrativo será nulo ou válido (esta posição e defendida principalmente por Hely L. Meirelles[11], Diógenes Gasparini, Sérgio Ferraz etc).
Já para os dualistas, os atos administrativos podem ser nulos ou anuláveis, de acordo com a maior ou menor gravidade do vício.
Para estes, é possível que o Direito Administrativo admita a existência da dicotomia entre nulidade e anulabilidade, inclusive, neste último caso, com o efeito da convalidação de atos defeituosos (posição defendida principalmente por Celso A. Bandeira de Mello, Cretella Júnior, Lucia Valle Figueiredo e Silvia Di Pietro)[12].
A diferença predominante entre nulidade e anulabilidade em Direito Administrativo, baseia-se, quase que exclusivamente, na possibilidade de convalidação. Logo, no ato absolutamente nulo, impossível é a sua convalidação, enquanto que nos atos anuláveis é possível que os mesmos sejam saneados pela Administração.
Esta é a posição defendida por Celso A. B. de Mello, para quem, “nulos são os atos que não podem ser convalidados, entrando nessa categoria: os atos que a lei assim o declare; os atos em que é materialmente impossível a convalidação, pois se o mesmo conteúdo fosse novamente produzido, seria reproduzida a invalidade anterior (é o que ocorre com os vícios relativos ao objeto, à finalidade, ao motivo, à causa); seriam anuláveis os que a lei assim declare; os que podem ser praticados sem vício (é o caso dos praticados por sujeito incompetente, com vício de vontade, com defeito de formalidade)”.
Di Pietro completa o raciocínio lembrando que as hipóteses de nulidade e anulabilidade do direito civil é que não podem ser inteiramente transpostas para o direito administrativo, face às peculiaridades desta cadeira publicista. A necessidade de manifestação do interessado, exigida na anulabilidade civil, carece de aplicação no campo administrativista, em virtude da autotutela administrativa; já a possibilidade ou não da convalidação é possível ser transposta, residindo, ai mesmo, a diferença entre a nulidade e a anulabilidade.
Com o advento da lei federal nº 9.784/99 foi positivada a teoria dualista, já que a referida lei admite expressamente a possibilidade de convalidação dos atos administrativos que apresentarem defeitos sanáveis, pelo que se faz imperioso, hodiernamente, a aceitação de atos administrativos anuláveis[13].
Por último, uma outra questão controvertida, é a de saber se há prazo para a Administração anular seus atos.
O art. 54 da lei nº 9.784/99 prescreve que “o direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai[14] em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé”.
Logo, é de se afirmar que a despeito de todas as inúmeras controvérsias doutrinárias, a lei acima referida, estabelece o prazo qüinqüenal para a administração anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários, ressalvada a má-fé. Findo tal prazo, o ato não mais poderá ser anulado, ocorrendo, via de conseqüência, a convalidação tácita.[15]
Ressalte-se, todavia, que o prazo qüinqüenal acima mencionado só pode referir-se, por ilação lógico-jurídica, e interpretação sistemática da legislação vigente, aos atos anuláveis, e não aos nulos. Os atos nulos, portadores de vícios insanáveis, ou expressamente declarados nulos por disposição expressa de lei podem ser invalidados a qualquer tempo.
É que não se pode admitir que a nulidade visceral, deletéria do interesse público e violadora de expressa determinação legal, tenha a sua declaração de nulidade sujeita a prazo.
É correto que se sujeite a prazo a ação anulatória, mas não a ação de declaração de nulidade. Não é por outra razão que o art. 54, acima transcrito menciona que o prazo qüinqüenal é de natureza decadencial. Sabe-se que os prazos de natureza decadencial ligam-se intimamente ao exercício dos chamados direitos potestativos. Ora, o direito da administração de anular atos administrativos que produzam efeitos favoráveis aos destinatários é típico exemplo de direito potestativo, os quais devem ter prazo fixado para o seu exercício, para que não se sujeite aquele a quem o ato beneficie a eterna possibilidade de intervenção em sua esfera jurídica pela simples manifestação de vontade da administração.
Por outro lado, o princípio da segurança jurídica impede a perpetuação de controvérsias e privilegia a sedimentação das relações jurídicas. Por tal razão, mesmo antes do advento da lei nº 9.784/99 já se defendia, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, a existência de um prazo razoável para se proceder à anulação dos atos administrativos de que decorressem efeitos favoráveis para os administrados, ficando, caso a caso, sujeito ao prudente arbítrio do julgador ou do aplicador do direito a fixação de um prazo tido como razoável. O mérito inegável da lei nº 9.784/99 foi uniformizar esse prazo, estabelecendo-o como regra imperativa e uniforme para a administração federal. Ressalte-se que o reconhecimento da existência do sub-princípio da segurança jurídica como princípio constitucional é o que torna possível a existência do próprio art. 54 da lei nº 9.784/99, pois caso contrário, seria ele mesmo violador do princípio da legalidade.
Logo, tratando-se de ato anulável, deve a administração anulá-lo ou convalidá-lo expressamente dentro do prazo decadencial de cinco anos, sob pena de depois de exaurido este prazo, o ato tornar-se convalidado tacitamente, e, portanto, intocável, por decaído o direito de decretar-lhe a anulação.
Já no que se refere à declaração de nulidade, não se pode aceitar que haja prazo para fazê-lo. O que se pode considerar é que os atos administrativos viciados que não se encontrem sob o manto do art. 54, caput, da Lei Federal n. 9.784/99, possam ser administrativamente invalidados a qualquer tempo[16], desde que os terceiros de boa-fé prejudicados tenham seus possíveis prejuízos ressarcidos, e, especialmente, que a má-fé do beneficiário seja comprovada[17].
Como se poderia entender que a nomeação de servidor público para cargo efetivo sem o atendimento a exigência de prévia aprovação em concurso público esteja sujeita a prazo, diante de sua visceral nulidade e da expressa determinação contida no parágrafo segundo da Constituição que expressamente o declara nulo? O que se pode aceitar é a convalidação dos atos praticados por tal servidor que atinjam terceiros de boa-fé, como antes já foi dito, mas jamais que a nomeação em si tornou-se inatacável pela decadência. O mesmo ocorreria com a expressa determinação de nulidade dos atos mencionados no art. 21 da lei complementar nº 1001/00.
Há que se distinguir, portanto, a anulação, sujeita ao prazo decadencial de cinco anos, previsto no art. 54 da lei nº 9.784/99, da declaração de nulidade, que pode ser feita a qualquer tempo, justamente por se tratar de mera declaração, que como tal, não se sujeita a prazo.[18][19]
Por outro lado, fica patente pela análise integral do art. 54, que o mesmo visou estabilizar, principalmente, os atos que produzam efeitos patrimoniais, numa preocupação legítima e justificável, de poupar os administrados dos terríveis efeitos decorrentes da devolução de quantias, ou da supressão de vantagens pecuniárias já incorporadas ao seu patrimônio, em flagrante violação a cláusula da estabilidade financeira.[20][21]
Ressalte-se que para se proceder à invalidação de ato administrativo que afete esfera jurídica de terceiros, deve a administração instaurar o devido processo administrativo, para que se garanta os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.
3. Conclusão
Por tudo que se expôs anteriormente, conclui-se que atualmente, em virtude da necessidade de conciliar-se a legalidade e a segurança jurídica, ambos princípios com assento constitucional, necessário se faz a aceitação da dualidade – nulidade e anulabilidade, também no Direito Público.
Conclui-se também, que apenas a anulação, que pressupõe ato eivado de nulidade relativa, está sujeita ao prazo decadencial de cinco anos previsto na Lei nº 9.784/99, desde que presente a boa-fé. A declaração de nulidade, reconhecimento jurídico que se faz a cerca da existência de nulidade visceral e absoluta, não se sujeita a prazo, em face de própria natureza da atividade meramente declaratória, devendo a autoridade administrativa ou judiciária, caso a caso, verificar se conferirá efeitos ex tunc ou ex nunc ao conteúdo desconstitutivo de tal declaração, tendo em vista razões de segurança jurídica, analogicamente ao que se faz no Supremo Tribunal Federal quando da declaração de inconstitucionalidade de lei, em sede de controle concentrado, autorizado que está, expressamente, pela lei especial que trata do rito desses processos objetivos.
Professor Titular de Direito Administrativo da FABEC/RJ, Professor Visitante dos Cursos de Pós-Graduação em Direito da UGF/RJ, UVA/RJ e UESA/RJ e Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Público da UNEC/MG.
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