Lacan, a partir de Freud e Lévi-Strauss trouxe inovador conceito de família1, enxergando-a como estrutura psíquica, como núcleo básico, fundante e essencial de qualquer sociedade (in: Lacan, Jacques; Os complexos familiares; Tradução: Marco Antônio Coutinho e Pontiguara Mendes da Silveira Junior. Rio de Janeiro, Zahar, 1990).
Culpa sempre foi um conceito mais religioso, ético do que propriamente jurídico. A culpa foi então apreendida pelo Direito no sentido de legitimar a incidência quer das sanções negativas, quer das sanções positivas.
A conjugalidade2 do final do século XX mudou em muito em virtude dos avanços feministas, pois a mulher antes submissa, ganhou status de sujeito de direito; também o casamento arrefeceu sua relevância como núcleo econômico e de reprodução, sendo mais caracterizado pelo afeto e comunhão que se instaura entre o homem e a mulher.
Também o Direito mudou sua ótica e sua função, passando a ser mais promocional e, não se restringindo a punir, e, sim a incentivar, premiar e assegurar a execução espontânea dos preceitos e dos deveres que propõe à sociedade.
O próprio declínio do patriarcalismo é substituído por uma gestão participativa da família, e, por uma divisão mais equânime de responsabilidades. Enfim, chegou à democracia ao nicho familiar!
O casamento3 é mais uma instituição religiosa e jurídica onde o verdadeiro sustento do laço conjugal está no desejo. Desejo é desejo de ter desejo nas palavras de Lacan. E a quem cabe a culpa se o sentimento conjugal se extingue?
O Direito sempre atribuiu a um dos consortes a culpa pela separação. Aquele que descumpriu um dos deveres do casamento elencados pelo Código Civil Brasileiro em seu art. 231 é o culpado.
O rompimento do dever de fidelidade, a falta de assistência mútua, a negligência no sustento, guarda e educação dos filhos e a ausência da vida comum no domicílio conjugal são causas suficientes para se imputar culpa a um dos cônjuges.
Aquele considerado culpado3-b pelo fim do casamento perde determinados direitos que teria em relação ao outros. É na idéia da culpa que jaz também a idéia da punição ou a vingança.
O doutrinador João Baptista Villela (in: divórcio e concubinato, Arquivos do Ministério da Justiça, Rio de Janeiro, 1979) já apontava um dos sinais de atraso do ordenamento jurídico brasileiro a instalação da culpa nas separações conjugais.
A contemporânea doutrina já tende abandonar o princípio de culpa em favor do princípio da deterioração factual.
O Mestre dos Mestres, Caio Mário da Silva Pereira, foi quem melhor enfocou a noção de casamento traduzindo pela união de duas pessoas de sexo diferente, realizando uma integração fisiopsíquica permanente.
Chega mesmo admiti-lo como um contrato sui generis.
Ainda que queiramos encara-lo como ato civil, solene, quer como contrato, quer como instituição, ele trará sempre a idéia ritualística religiosa, será sempre o elo de amor, de desejo capaz de manter a união conjugal.
O mais valoroso dos deveres conjugais, é sem dúvida, o da fidelidade recíproca4, dentro da regência patriarcal, porém, tal dever não é exatamente recíproco, pois sempre houve uma certa tolerância com a infidelidade masculina. Enquanto que outras eras passadas, a infidelidade feminina ensejaria até a legítima defesa da honra e justificaria plenamente o assassinato da adúltera e de seu cúmplice-amante.
Pode-se trair, quem se fez ausente? Poder-se-á conceituar como traição à conseqüência natural daquele que se sente abandonado, rejeitado ou simplesmente esquecido?
A lei 6.515/77(a divorcista) instituiu em seu artigo quinto que só poderia ser pedida a separação judicial por um dos cônjuges quando imputar ao outro conduta desonrosa ou qualquer ato que importe em grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum5.
A expressão conduta desonrosa6 padece de grande subjetividade bem como o entendimento de ofensa ao cônjuge. É claro que tal conduta fere a honra subjetiva do cônjuge.
Com certeza a conduta desonrosa faz desaparecer o affectio maritalis, esvaziando totalmente a relação conjugal.
Caberá a guarda dos filhos ao cônjuge que não tiver dado causa à separação, e, além de punir o culpado atinge igualmente os filhos.
Já o art. 17 da Lei 6.515/77 determina que a mulher volte a usar seu nome de solteira se for vencida na separação judicial.
E mais adiante, adita uma dupla punição: se a iniciativa da separação for da mulher, mesmo quando a ruptura da vida em comum há mais de um ano, ela perderá o direito ao sobrenome do marido.
Há também a punição consoante aos alimentos.
Já no artigo 26 da Lei do Divórcio, o cônjuge que tiver a iniciativa de separação em decorrência do decurso de prazo será castigado, devendo pagar ao outra pensão alimentícia, em nome do dever de assistência.
A verba alimentícia que tem finalidade de subsistência, não deveria jamais estar vinculada a culpa. E sim, ao binômio necessidade-possinbilidade.
Com os avanços filosóficos e psicanalíticos, a ciência jurídica sentiu necessidade de redimensionar o conceito de culpa.
No Brasil, há fracos vestígios desta evolução. Com a Lei 8.408/92, um ano de separação de fato é autorizador para se pedir a separação judicial dispensando a incidência da culpa. Ou seja, desaparecendo o affectio maritalis se pode requerer a ruptura judicial do casamento.
Não há mais de se justificar judicialmente o motivo da separação.
O art. 40 da Lei 6.515/77 alterado Lei 781/89 estabelece que apenas o decurso do tempo é hábil para se requerer o divórcio direto.
Já os artigos 1o. da Lei 8.971/94 e o art. 7o. da Lei 9.278/96 estabelecem o dever alimentar na dissolução da união estável sem atrela-lo pelo menos expressamente, ao princípio da culpa.
Autorizada a ser desmotivada a dissolução da união estável e informal, pode também a dissolução da sociedade conjugal ser desmotivada ou desrazoada.
Seria até em defesa do direito subjetivo de intimidade e de privacidade.
Entretanto, o princípio da culpa corre em paralelo com o da ruptura sobrevivendo n tanto no direito português como no direito espanhol.
Já em França com a reforma de 1975 trouxe grandes mudanças sobre a disciplina positiva sobre a família.
Há a possibilidade da culpa recíproca, criou-se a prestação compensatória a fim de atenuar as perdas morais e materiais com o fim da sociedade conjugal.
Na Itália, a reforma de 1975, com a Lei 898, modificada pela Lei 74 de 1987 aboliu totalmente a culpa do sistema jurídico.
Na Grã-Bretanha, a partir do Divorce Act, o princípio da culpa foi substituído pelo da ruptura, com a reforma de 1971.
Reafirmando a idéia que ninguém trai aquilo que já não existe (posto que ausente o sentimento que faz e nutre o casamento).
Na Alemanha foi abolida a possibilidade processual de se argüir à culpa, pois o Judiciário deve se ocupar com coisas mais relevantes.
O Projeto do Código Civil Brasileiro em muitos aspectos representa um retrocesso pois ainda defende a idéia de culpa conjugal7, pois traz dispositivo que reforça a culpa, como também a qualifica como causa da impossível comunhão de vida.
Os ordenamentos jurídicos contemporâneos remam na tendência de substituir o princípio da culpa pelo princípio da ruptura embora persista tal princípio em alguns países do sistema romano-germânico.
Aliás o estigmatizante princípio da culpa não é compatível numa era aonde se discute o sujeito inconsciente e, enfatiza-se o espelhamento emocional de cada um no relacionamento conjugal.
O casamento perde a finalidade puramente biológica e imediata de procriação para passar a ser o espaço para a realização e troca de afeto e amor.
Onde não cabe mais a perquirição da culpa e nem o desnudamento da vida íntima do casal posto que esta traz traumas irreversíveis.
Sendo a manutenção da sociedade conjugal só possível com a persistência do elo afetivo entre os cônjuges, do affectio maritalis8.
Também o princípio da indissolubilidade do vínculo matrimonial que antes era inexpugnável, também não resistiu à modernidade; dando lugar não só ao divórcio como também, ao reconhecimento de outras modalidades de família.
Concluindo, utilizando-se das palavras de Claude Aveline: “Não dizer jamais : é a culpa deles. A culpa é sempre nossa.”
Ou então na profética intuição de Santa Teresa de Jesus (em sua obra: Caminho da perfeição): “Nunca nos culpam sem culpas, que sempre andamos cheios delas, pois cai sete vezes um dia o justo e seria mentira dizer que não pecamos.”
A flexibilidade do conceito de culpa vem pouco a pouco galgando espaço quer na jurisprudência como na doutrina brasileira só restando ao direito positivo atender ao clamor dos tempos.
Pela formação cada vez mais humanista do Direito, não cabe mais se preocupar com a culpa conjugal e, sim com o bem-estar da família, com a primazia da tutela jurídica dos interesses e direitos dos menores da prole.
Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.
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