Resumo: O presente trabalho científico apresenta breves digressões acerca da tutela jurídica da dignidade da pessoa humana no plano constitucional brasileiro, apresentando sua amplitude etmológica, contexto histórico, aplicabilidade e hermenêutica constitucional. Precipuamente, buscar-se-á o estímulo à reflexão jurídico-filosófica concernente ao propósito constituinte e a efetiva aplicabilidade na contemporaneidade contribuindo, dessa forma, para a melhor discussão acadêmica sob o tema em epígrafe.
Palavras-Chaves: Liberdade – Dignidade – Direitos Humanos – Constituição.
Sumário: 1. Introdução – 2. Conceitos – 3. Breve histórico – 4. Concepções filosóficas – 5. Tutela jurídica – 6. Conclusão.
“Encontra-se, pois, a origem do Direito na própria natureza do homem, havido como ser social”.Vicent Ráo – Jurista brasileiro
1. Introdução
A dignidade da pessoa humana revela-se como o eixo axiológico central pelo qual orbita toda construção jurídica pátria. Com expressa e estratégica previsão na Constituição da República Federativa do Brasil, apresenta-se como valor supremo de um Estado Democrático de Direito, sendo fundamental para seu pleno desenvolvimento.
Entretanto, poder-se-á considerar a dignidade da pessoa humana um direito absoluto? Para iniciarmos nosso estudo, cabe-nos delimitar o preciso entendimento etimológico, jurídico e filosófico acerca deste precioso vocábulo.
2. Conceitos
Dignidade vem do latim “dignitate”, definida como honradez, honra, nobreza, decência, estando ligada ao ser humano por uma abstração intelectual representativa de um estado de espírito. Da leitura do Dicionário Houssais da Língua Portuguesa, extraí-se:
“Dignidade: s.f. 1. Qualidade moral que infunde respeito, consciência do próprio valor, honra, autoridade, nobreza, 2. Qualidade do que é grande, nobre, elevado. 3. Modo de alguém proceder ou de se apresentar que inspira respeito; solenidade, gravidade, brio, distinção. 4. Respeito aos próprios sentimentos, valores; amor-próprio. 5. Prerrogativa, honraria, título, função ou cargo de alta graduação. 6. Benefício vinculado a cargo proeminente ou a alto título de um cabido.”
Do ponto de vista jurídico, o conceito de dignidade foi muito bem delineado nas palavras expressas no Vocabulário Jurídico De Plácido e Silva:
“Dignidade: Deriva do latim dignitas (virtude, honra, consideração), em regra se entende a qualidade moral, que, possuída por uma pessoa, serve de base ao próprio respeito em que é tida. Compreende-se também como o próprio procedimento da pessoa, pelo qual se faz merecedor do conceito público. Dignidade, em sentido jurídico, também se entende como a distinção ou honraria conferida a uma pessoa, consistente em cargo ou título de alta graduação. No Direito Canônico, indica-se o beneficio ou prerrogativa decorrente de um cargo eclesiástico.”
Já o filósofo Imannuel Kant, a dignidade é o valor de que reveste tudo aquilo que não tem preço, ou seja, não é passível de ser substituído por um equivalente. Essa máxima mereceu interessante reflexão por parte do Professor Alexandre Cunha, na qual reproduzimos trecho de artigo científico que versa sobre o tema:
“O grande legado do pensamento kantiano para a filosofia dos direitos humanos, contudo, é a igualdade na atribuição da dignidade. Na medida em que a liberdade no exercício da razão prática é o único requisito para que um ente se revista de dignidade, e que todos os seres humanos gozam dessa autonomia, tem-se que a condição humana é o suporte fático necessário e suficiente à dignidade, independentemente de qualquer tipo de reconhecimento social”. (CUNHA:2002)[1]
Em suma, o respeito e amor a si, por si e para si; aos seus, de seus e para com os semelhantes.
Neste sentido, tem-se que o conceito ontológico da dignidade integra o ser humano desde o momento de sua concepção, encontrando amparo legal até mesmo após sua morte, conforme podemos extrair na leitura de dispositivos esculpidos nos compêndios civil, penal e, principalmente, constitucional, de nosso ordenamento jurídico. Esta relação intrínseca entre o ser humano e o Direito foi precisamente estudada e definida pelo ilustre Jurista brasileiro Vicent Ráo, na célere obra O Direito e a Vida dos Direitos:
“O Direito ampara o ser humano desde o momento em que é concebido e enquanto ainda vive no ventre materno. E depois o segue e acompanha em todos os passos e contingências de sua vida, contemplando o seu nascimento e, com o seu nascimento, o início de sua personalidade. Protege-lhe, com a liberdade, a integridade física e mental. (…) É certo que o Direito se apodera do homem desde antes de seu nascimento e o mantém sob sua proteção até depois de sua morte. Mas, certo também é que, sempre e a todo o instante, o considera como parte de uma comunhão que é a sociedade, fora da qual o homem, civilmente, não poderia viver.” (RÁO: 2004)
3. Breve histórico
Esta simbiose emerge desde os primórdios da civilização, subsistindo e aperfeiçoando-se ao longo do inevitável processo evolutivo-social, culminando, na contemporaneidade, com a efetiva tutela jurídica decorrente da relação contratualista firmada entre o Estado e o Cidadão, conforme observa o Professor Norberto Bobbio:
“A afirmação dos direitos do homem deriva de uma radical inversão de perspectiva característica da formação do Estado moderno, na representação da relação política, ou seja, a relação Estado/Cidadão, ou Soberano/Súditos; relação que é encarada, cada vez mais, do ponto de vista dos direitos dos cidadãos não mais súditos, e não do ponto de vista dos direitos do soberano, em correspondência com a visão individualista da sociedade”. (BOBBIO:1992)
Na obra “A afirmação histórica dos Direitos Humanos”, o professor Fábio Konder Comparato apresenta um interessante estudo acerca das origens histórico-culturais dos direitos humanos, atestando o pensamento exposto por Imannuel Kant à efetiva tutela jurisdicional.
“A dignidade da pessoa não consiste apenas no fato de ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado, em si mesmo, como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita. (…)
A escravidão acabou sendo universalmente abolida, como instituto jurídico, somente no século XX. Mas a concepção kantiana da dignidade da pessoa como um fim em si leva à condenação de muitas outras práticas de aviltamento da pessoa à condição de coisa, além da clássica escravidão, tais como o engano de outrem mediante falsas promessas, ou os atentados cometidos contra os bens alheios. Ademais, disse o filósofo, se o fim natural de todos os homens é a realização de sua própria felicidade, não basta agir de modo a não prejudicar ninguém. Isto seria uma máxima meramente negativa. Tratar a humanidade como um fim em si implica o dever de favorecer, tanto quanto possível, o fim de outrem. Pois, sendo o sujeito um fim em si mesmo, é preciso que os fins de outrem sejam por mim considerados também como meus.” (COMPARATO:2003)
Da análise ontológica da condição do ser humano, a dignidade, analisada enquanto elemento fundamental para a próxima existência do Direito apresenta-se como valor absoluto. Furtar a garantia à dignidade da pessoa humana ad eternum seria furtar o próprio Direito.
Entretanto, tendo como parâmetro hermenêutico a própria evolução social do ser humano, vislumbra certa mitigação motivada, precipuamente pelas circunstâncias de cada momento social. Teses filosófico-jurídicas tentam, à sua maneira, apresentar elementos próprios para fundamentar suas perspectivas epistemológicas.
4. Concepções filosóficas
A dignidade pode ser vislumbrada jusnaturalista, positivista, idealista ou realista merecendo uma análise mais aprofundada acerca desse entendimento. Tais sistemas filosóficos contribuem para a formação de um sistema de interpretação próprio que, confrontando-se ou coadunando-se, tem profunda influência na construção de preceitos e dogmas próprios da ciência jurídica contemporânea.
O Professor Paulo Gustavo Gonet Franco, amparado na doutrina do Professor Jorge Miranda, resume o ponto nevrálgico que delimita a atuação de determinadas correntes filosófico-jurídicas:
“Assim, para os jusnaturalistas, os direitos do homem são imperativos do direito natural, anteriores e superiores à vontade do Estado. Já para os positivistas, os direitos do homem são faculdades outorgadas pela lei e regulados por ela. Para os idealistas, os direitos humanos são idéias, princípios abstratos que a realidade vaia colhendo ao longo do tempo, ao passo que, para os realistas, seriam o resultado direto de lutas sociais e políticas. (…) A consciência de dificuldade de harmonizar as muitas concepções leva alguns a recusar utilidade ao estudo da fundamentação filosófica dos direitos fundamentais, entendendo que o problema mais premente está na necessidade de encontrar fórmulas para os proteger”.[2]
Da concepção jusnaturalista, vislumbramos integrar a própria essência do ser humano. Por outro lado, sob o prisma positivista, essa dignidade abstrai-se da condição ontológica do ser humano, encontrando limitação (e por que não dizer adequação) nos parâmetros sociais que modelam determinado contexto social.
Do ponto de vista idealista, a dignidade revela-se como a chama de vitalidade que deve ser permanentemente preservada, iluminando os passos e alimentando as energias do homem em seu caminho rumo à evolução individual e social.
Com os olhos voltados para a realidade, vem sofrendo as mesmas mutações etimológicas e axiológicas de outros importantes valores em nossa sociedade, como Honestidade, Caráter, Amizade, Amor, e por que não dizer, a própria Justiça.
Durante o período da II Guerra Mundial, por exemplo, percebemos uma nítida divisão de entendimentos acerca do conceito de dignidade, alimentando normas e condutas que revelaram-se reprováveis após o término do conflito. A tese da superlativização da raça ariana alimentava todo um arcabouço de normas e condutas, autorizando e legitimando a atuação das tropas do Eixo na persecução de seus objetivos.
Por outro lado, com o fim do conflito, esta mesma legitimidade foi alvo que questionamentos jurídicos, morais e sociais, mediante a instauração de um Tribunal de Exceção – culminando com o próprio homicídio de vencidos que acreditavam na Lei como sendo o verdadeiro instrumento para a construção de uma sociedade digna de seus anseios ideais. Em suma, em sua dignidade, por sua dignidade, foram sacrificados porque respeitaram a Lei.
Para reflexão: O conceito de dignidade que vislumbramos hoje seria a mesmo se outros fossem os vencedores? A dignidade da pessoa humana deve suplantar a própria vontade da Lei?
O Professor Paulo Gustavo Gonet Branco traz à baila interessante reflexão da relação existente entre os direitos humanos e a formação histórica decorrentes dos diversos momentos vivenciados por uma sociedade, lembrando que os direitos fundamentais seriam frutos de momentos históricos diferentes “e a sua própria diversidade já apontaria para a conveniência de não se concentrarem esforços na busca de um fundamento absoluto, válido para todos os direitos em todos os tempos”.
Pietro Sanchis[3], catedrático, entende que, historicamente, os direitos humanos têm a ver com “a vida, a dignidade, a liberdade, a igualdade e a participação política e, por conseguinte, somente estaremos em presença de um direito fundamental quando se possa, razoavelmente, sustentar que o direito ou instituição serve a alguns desses valores”. (SANCHIS:1994)
5. Tutela jurídica
Em exemplo mais próximo, temos que a dignidade foi elevada a um patamar diferenciado em nossa realidade jurídica constitucional, em detrimento às constituições anteriores. Ao reproduzirmos o disposto no artigo 1º, inciso III da carta magna, elencando os pilares axiológicos que norteiam a atuação estatal brasileira no cumprimento de sua missão, ratificamos esse novo status constitucional para a dignidade conferido pelo legislador constituinte:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político.”
Ao longo do texto constitucional, vislumbramos importantes dispositivos construídos com este espírito, tais com o artigo 3º, inc.III que põe como objetivos fundamentais, entre outros, a erradicação da pobreza e da marginalização a fim de reduzir a desigualdade social e regional; o artigo 5º, caput, que coloca todos iguais perante a lei, bem como seu inciso III, proibindo a tortura, o tratamento desumano ou degradante; o artigo 6º, que determinada a assistência aos desamparados; o artigo 193, estabelecendo como base da ordem social o bem estar e a justiça social, além do artigo 231, reconhecendo aos índios sua organização social como um todo, protegendo-os.
A questão central desta temática residiria, essencialmente, no caráter absoluto da dignidade? Ou seria a absoluta atenção com a dignidade? Para responder estas questões, lembramos o papel do Direito como instrumento fundamental para um melhor entendimento do tema.
6. Conclusão
O direito consagra-se, a cada dia, como verdadeiro instrumento de pacificação social e valorização do ser humano. Dentro de uma realidade pautada por discrepâncias morais, releva-se como o meio essencial para o devido resgate à condição ontológica de ser, verdadeiramente, humano salvaguardando-se, acima de tudo, sua dignidade.
Na profunda e enriquecedora lição de Rudolf Von Ihering, temos:
“A luta pelo direito subjetivo é um dever do titular para consigo mesmo. A defesa da própria existência é a lei suprema de toda a vida. No homem, porém, trata-se não apenas da vida física, mas também da existência moral […] No direito, o homem encontra e defende suas condições de subsistência moral; sem o direito regride à condição animalesca […]. Portanto, a defesa do direito é um dever de autoconservação moral; o abandono total do direito representa um suicídio moral”. (IHERING, 2008)
Dentro desta ótica, o ordenamento jurídico pátrio elevou como eixo axiológico central o postulado da dignidade da pessoa humana. Para a devida positivação de condutas a serem observadas pelos cidadãos, bem como o próprio Estado, para salvaguardar este importante fundamento constitucional, o legislador pátrio estrategicamente posicionou os chamados direitos fundamentais em local privilegiado dentro de nossa carta magna.
Os direitos fundamentais são tidos, a um só tempo, como direitos subjetivos e elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva. Na sábia lição do professor J. J. Gomes Canotilho, aprendemos:
“A função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente diretos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).” (CANOTILHO, 1993)
Na esteira da delimitação acerca do papel dos direitos e garantias fundamentais, “representam exigências do próprio princípio da dignidade da pessoa humana, revelando-se em pretensões que, em cada momento histórico, se descobrem a partir do valor da própria dignidade humana”, na lição de Paulo Gustavo Gonet Branco.
Entretanto, trilhamos o entendimento de que a dignidade, em seu âmago, está umbilicalmente ligada ao ser humano. Independentemente dos ditames sociais, normativos ou morais que possam influenciar sua leitura, não se pode negar o caráter absoluto de algo que se mistura com a própria essência do ser humano.
O simples fato de viver sem liberdade afronta toda e qualquer forma de dignidade do ser humano, comprometendo seu próprio desenvolvimento. Viver com liberdade sem a devida dignidade marginaliza sua própria condição social, afastando-o do próprio convívio existencial com seus pares. Morrer carregando consigo a própria dignidade de ser humano revela-se em algo tão magnânimo que, por si, ratificaria a própria condição absoluta deste valor imensurável.
“A magnanimidade parece, portanto, ser como o coroamento das virtudes, pois ela as torna maiores e não existe sem elas. Por isso, é difícil ser verdadeiramente magnânimo, pois sem possuir um caráter bom e nobre é impossível o ser”. (ARISTÓTELES:2008)
Para isso, tem-se o relevante papel do Direito como protagonista na construção de parâmetros objetivos adequados aos anseios sociais, tendo no binômio segurança/estabilidade os pilares norteadores de uma atuação pautada na defesa, conservação e estímulo das liberdades individuais.
Assim, concluímos que a dignidade caminha de mãos dadas com a própria liberdade, sendo ambas consideradas essenciais e atemporais, subsistindo desde os primórdios da civilização até a linha do horizonte que norteia a própria existência social, revelando-se absolutamente indissociável da condição de ser humano.
As Leis, manifestação formal do próprio Direito, trazem em seu bojo o próprio substrato valorativo da dignidade que deve imperar nas relações delimitadas pelas condutas normativas sem, contudo, engessar o complexo, imprevisível e contínuo processo de construção de nossa história.
Afinal, a história não se constrói, apenas, com dignidade. Ela é a própria dignidade.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Ensino Superior da Paraíba. Pós-Graduado em Direito Processual pela Universidade do Sul de Santa Catarina e Rede de Ensino Jurídico Luiz Flávio Gomes. Pós-Graduando em Direito Público pela Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal – UNIDERP e Rede de Ensino Jurídico Luiz Flávio Gomes
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