Resumo: O presente artigo tem por escopo demonstrar que no Estado constitucional-democrático de direito, os direitos sociais gozam de fundamentalidade formal e material, bem como possuem uma dupla perspectiva, o que lhes confere algumas características vitais no que tange à sua efetivação.
Palavras-chave: Direitos sociais, Direitos fundamentais, Estado constitucional-democrático de direito.
Abstract: This article aims to demonstrate that the democratic constitutional state of law, social rights fundamentality enjoy formal and material, as well as have a dual perspective, which gives them some vital characteristics in terms of their effectiveness.
Keywords: Social rights, fundamental rights, constitutional-democratic state of law.
Sumário: 1. Introdução. 2. Do Estado liberal ao Estado constitucional-democrático de direito: uma perspectiva mundial 3. Os direitos sociais na história das Constituições brasileiras e seu caráter de fundamentalidade 4. Aspectos terminológicos e dimensões dos direitos fundamentais: uma busca conceitual dos direitos fundamentais sociais 5. Dimensão Objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais sociais 5.1 Breves considerações 5.2 A perspectiva objetiva dos direitos fundamentais sociais 5.3 Os direitos fundamentais sociais e sua perspectiva subjetiva: implicações acerca da sua eficácia e aplicabilidade. 6. Considerações finais. Referências. Notas.
1. Introdução
Os direitos sociais são concebidos como direitos de segunda dimensão. Todavia, mesmo com o advento da Constituição Brasileira de 1988, é indelével a discussão doutrinária acerca da sua caracterização como direitos fundamentais.
Assim, não obstante a sua inserção no Título II da Constituição Primavera, alcunhado “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, ainda reside na doutrina quem questione a sua fundamentalidade, mormente no que concerne a sua pormenorização no Título VIII que trata “Da Ordem Social”.
Dessa forma, o presente artigo tem por escopo averiguar a fundamentalidade dos direitos sociais, sob o prisma de que suprimir tal atributo implica em manifesta regressão aos preceitos engendrados pela nova concepção de Estado, dito constitucional-democrático de Direito.
2. Do Estado liberal ao Estado constitucional-democrático de direito: uma perspectiva mundial
O Estado de feições absolutistas, representado pela figura do monarca, passou a ser retratado como o inimigo da liberdade. De um lado, a nobreza por este favorecida e, de outro, os súditos, subjugados à ordem do rei, levaram ao crescimento da burguesia, bem como dos movimentos sociais que culminaram na derrocada do Estado absolutista e no surgimento de um Estado liberal, cujos fundamentos são o individualismo e a defesa de um absenteísmo do Estado na esfera econômica e privada. (FERREIRA, 2009, pp. 4-5).[1]
Ademais, a separação de poderes, segundo Bonavides (1980, p. 35), é o “esteio sagrado do liberalismo”, de sorte que a Declaração dos Direitos do Homem contida na Constituição Francesa datada de 3 de setembro, averbou, em seu art. 16, que “Toda a sociedade que não assegura a garantia dos direitos nem a separação de poderes não possui constituição”.
O bom governo era, assim, aquele em que os poderes estavam bem delimitados. Em suma,
“[…] bastava, nesse paradigma, um Legislador que apenas obedecesse a Constituição, uma Administração que tão somente seguisse à lei e o Judiciário que fosse o mero árbitro dos conflitos privados ou a boca que pronunciava as palavras da lei.” (FERREIRA, 2009, p. 5).
Sem embargo, a burguesia, de classe dominada, ocupou o posto de classe dominante, formulando alguns princípios filosóficos de sua revolta social, generalizados como ideais comuns a todos os componentes do corpo social. Ocorre, todavia, que ao exercer o controle político da sociedade, a burguesia manteve a universalidade desses princípios, como apanágio de todos os homens, apenas de maneira formal, pois no plano prático, o que imperou foram princípios constitutivos de uma ideologia de classe. (BONAVIDES, 1980, p. 5).
Por essa razão, o Estado liberal desencadeou uma verdadeira luta de classes, sendo marcado pela exploração do homem pelo homem. Não obstante inexistisse um regime escravocrata institucionalizado, os trabalhadores viviam em uma situação deplorável, laborando 20 (vinte) horas por dia e sem gozar das mínimas condições de vida e de trabalho.
A busca por direitos sociais têm, assim, como princípio propulsor, a intensa desigualdade estabelecida pelo Estado liberal, o que originou a necessidade de um novo modelo de Estado, mais preocupado com a seguridade social, os direitos dos trabalhadores, a educação, a moradia, a saúde, dentre outros.
Com a cintilação que lhe é peculiar, Canotilho retrata o início da passagem do Estado liberal ao Estado social:
“Se o capitalismo mercantil e a luta pela emancipação da sociedade burguesa são inseparáveis da consciencialização dos direitos do homem, de feição individualista, a luta das classes trabalhadoras e as teorias socialistas (sobretudo Marx, em A Questão Judaica) põem em relevo a unidimensionalização dos direitos do homem egoísta e a necessidade de completar (ou substituir) os tradicionais direitos do cidadão burguês pelos direitos do homem total, o que só seria possível numa nova sociedade, independentemente da adesão aos postulados marxistas, a radicação da ideia da necessidade de garantir o homem no plano econômico, social e cultural, de forma a alcançar um fundamento existencial-material, humanamente digno, passou a fazer parte do patrimônio da humanidade”. (CANOTILHO, 2002, p. 383 – grifos do original).
Calham à fiveleta, as palavras de Paulo Bonavides ao vaticinar que a ideia de Estado social exsurge no momento “[…] em que se busca superar a contradição entre a igualdade política e a desigualdade social.” (BONAVIDES, 1980, p. 207).
Tal se deve, porque em consonância com as lições de Virgílio Afonso da Silva, as liberdades “eram consideradas como meramente formais e somente uma igualdade material poderia fazer com que todos pudessem exercê-las”. (SILVA, 2005, p. 545).
Assim, a luta das classes e a fomentação das teorias socialistas, as quais Canotilho se reporta, impulsionaram a crise do Estado liberal, vindo a ceder espaço ao Estado social. Contudo, embora não se relegue a importância das teorias socialistas engendradas principalmente por Karl Marx, é de bom alvitre mencionar que o Estado social não se confunde com o Estado socialista, conforme ensina Paulo Bonavides:
“[…] Esse contraste que assim estabelecemos nos permite escapar ao erro usual de muitos que confundem o “Estado social” com o “Estado socialista”, ou com uma socialização necessariamente esquerdista, da qual venha a ser o prenúncio, o momento preparatório, a transição iminente. Nada disso.
O Estado social representa efetivamente uma transformação superestrutural por que passou o antigo Estado liberal. Seus matizes são riquíssimos e diversos. Mas algo, no Ocidente, o distingue, desde as bases, do Estado proletário, que o socialismo intenta implantar: é que ele conserva sua adesão à ordem capitalista, princípio cardial a que não renuncia”. (BONAVIDES, 1980, p. 205).
O Estado social, por sua própria natureza, se caracteriza como um Estado intervencionista, requerendo, portanto, a presença ativa do poder político nas esferas sociais, ante a crescente dependência do indivíduo, que necessita de provisão das suas condições mínimas de existência por parte do Estado. (BONAVIDES, 1980, p. 228).
Sob essa perspectiva, os direitos econômicos, sociais e culturais, rotulados de forma genérica como direitos sociais, nasceram inicialmente como especulações filosóficas e positivaram-se em documentos exclusivamente de abrangência nacional e, posteriormente, em documentos de âmbito internacional:
“Sob essa perspectiva, os direitos econômicos, sociais e culturais, genericamente rotulados como direitos sociais ou direitos de segunda geração, constituem especificações históricas dos direitos humanos tout court, os quais — ensina o mesmo Norberto Bobbio — nasceram inicialmente como especulações filosóficas na cabeça de alguns homens iluminados; positivaram-se, a seguir, em documentos de âmbito exclusivamente nacional—como a Declaração de Direitos de Virgínia, na América do Norte, em 1776, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França, em1789; e, mais tarde, lograram expandir-se em documentos de abrangência internacional, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Organização das Nações Unidas em 1948”. (COELHO, 2009, p. 759 – grifos do original).
Além disso, incumbe complementar que a constitucionalização dos direitos sociais se deu primeiramente na Constituição mexicana de 1917, na Constituição Russa de 1918 e na Constituição de Weimar de 1919. (MOREIRA, 2011, p. 25).
Anote-se que, apesar de a doutrina clássica afirmar que os direitos sociais foram positivados no contexto do Estado social, Fabiana Okchstein Kelbert assinala que para Gerardo Pisarello, embora a representação dos direitos em gerações tenha um caráter pedagógico, o desenvolvimento dos direitos sociais não ocorreu de forma linear, mas simultaneamente as reivindicações dos direitos civis e políticos, sendo possível verificar movimentos em prol dos direitos sociais antes mesmo do surgimento do Estado moderno. (KELBERT, 2011. p. 21ss.).
Nessa linha, Calmon de Passos leciona que o Estado de direito social “[…] é uma realidade mais recente que a reflexão sobre os chamados direitos sociais”. (PASSOS, 2001, p. 6).
Ultrapassada esta análise, vislumbra-se que da mesma forma que o Estado liberal cedeu espaço e contribuiu para a afirmação do Estado social, este último pode ser concebido como precursor do Estado democrático de direito. (MOREIRA, 2011, p. 29).
Porém, não se passou naturalmente do Estado social ao Estado democrático de direito, vindo este último a realizar a prometida “democratização econômica e social, a economia do gênero humano” apregoada pelos pensadores do neocapitalismo. (COELHO, 2009, p. 69).
Alinie da Mota Moreira assevera, então, que seria melhor afirmar que o Estado democrático de direito emerge como um aprofundamento da fórmula do Estado de direito, de um lado, e, de outro, do Welfare State, haja vista que a questão social embora permaneça, recebe a qualificação do novo ideal de igualdade imbuído no Estado democrático. (MOREIRA, 2011. p. 31).
Não se pode negligenciar que na juspublicística mais contemporânea tentou-se estruturar um Estado com qualidades, e estas qualidades fazem dele um Estado Constitucional. Nesse viés, há de se destacar que, para um Estado ser considerado constitucional, ele deverá se constituir em Estado de direito democrático, qualidade sem a qual perde o referido significado. (CANOTILHO, 2002, p. 93).
Canotilho traz a lume que existem controvérsias quanto à conciliação entre Estado de direito e democracia, mormente nos quadrantes culturais norte-americanos, e ainda, na Alemanha e na França. (CANOTILHO, 2002, pp. 98-99)
O autor ressalta que essas angústias perante a simbiose de Estado de direito e Estado democrático no Estado constitucional, advém de como é vista a liberdade. No primeiro, concebe-se a liberdade como negativa, isto é, uma liberdade de defesa. No segundo, por outro lado, tem-se a liberdade como positiva, ou seja, a liberdade no exercício democrático do poder. (CANOTILHO, 2002, p. 98).
Dessa forma, deve-se, segundo Canotilho, racionalizar tal discussão, e entender que o elemento democrático foi introduzido no Estado de direito não apenas para travar o poder, mas também pela necessidade de sua legitimação. (CANOTILHO, 2002, p. 99).
Com o fito de fechar tal discussão, insta registrar que o Estado constitucional de direito tem como característica fundamental a subordinação da legalidade a uma constituição rígida. A validade das leis dependerá não mais apenas da forma como foi produzida, mas também de que seu conteúdo seja efetivamente compatível com as normas constitucionais, às quais é reconhecida a imperatividade peculiar ao Direito. (BARROSO, 2010, pp. 244-245).
Estabelecidas tais premissas de âmbito geral e devidamente pontuado que hoje se entende que estamos sob a égide de um Estado constitucional-democrático de direito, adentraremos no próximo item à análise do contexto histórico dos direitos sociais no ordenamento constitucional brasileiro.
3. Os direitos sociais na história das Constituições brasileiras e seu caráter de fundamentalidade
Alcunhada, a partir de 1822, como nação livre e independente, a nossa primeira Constituição foi concebida à luz do constitucionalismo histórico,
“[…] considerado o movimento de idéias construído em torno do célebre art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que assim dispunha: “Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não for assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição”. (COELHO, 2009, p. 183 – Grifos do original).
A Constituição de 1824 teve como traço típico a dualidade entre o elemento liberal, que impulsionava a caminhada para o futuro, e o elemento conservador, disposto a manter e referendar o estado vigente e, caso possível, tolher a mudança e a reforma nas instituições. Ambos os elementos mantinham-se em equilíbrio. O primeiro advindo da Revolução Francesa; o segundo, da Santa Aliança e do Absolutismo, cuja expressão mais notória é a preleção de um Estado confessional, consoante norma estatuída no art. 5º e reprisada em diversos outros pontos da Carta Imperial. (BONAVIDES, 2005, p. 95).
A Constituição do Império sofreu uma única emenda, a Lei Constitucional de 12 de agosto de 1834, timbrada de Ato Adicional e que veio oficializar a criação de Assembleias Legislativas, inseridas de forma estratégica nas províncias. Como singularidade destaca-se a previsão do Poder Moderador, expresso em seu art. 98:
“Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Política, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos”. (BRASIL, 2011, p. 8).[2]
De grande relevo anotar, que a Constituição de 1824, embora de cunho primordialmente individualista, foi precursora para o social, tanto o é, que estabeleceu a garantia dos socorros públicos e declarou a instrução primária e gratuita de todos os cidadãos, respectivamente nos incisos XXXI e XXXII do seu art. 179. (BONAVIDES, 2005, p. 101).
Com a derrocada do Império foi promulgada em 24 de fevereiro de 1891, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, tendo por relator o dileto jurista Rui Barbosa, “um republicano de última hora que, forte no constitucionalismo norte-americano, ‘escrevia para o Brasil traduzindo do inglês’, como observou, em comentário mordaz, o arguto Afonso Afinos de Melo Franco”. (COELHO, 2009, p. 186).
Inobstante as críticas advindas do fato de ter sido adotado o modelo norte-americano sem as devidas adequações ao contexto social brasileiro, a Constituição de 1891 foi, em seu contexto, proveitosa. (COELHO, 2009, p. 186).
Contudo, é curial ressalvar que apesar de em 1926 ter sido acrescido um novo texto à referida Constituição, com o fito de atender as necessidades relativas aos movimentos sociais, ela se imiscuiu de reconhecer os direitos sociais da classe trabalhadora, então emergente, sendo as emendas representações vagas da questão social. (SAIS; ZANELLA, A. V.; ZANELLA, R. M. V., 2007, p. 327).
A Constituição de 1891 sucumbiu com a Revolução de 1930, ocasião em que foi promulgada a Constituição de 1934, que apesar de açambarcar fórmulas retrógradas, como as que conferiam ao Senado poderes semelhantes ao do malogrado Poder Moderador, trouxe pela primeira vez considerações sobre a ordem econômica e social, razão que passou a ser concebida como a “primeira Constituição programática do país”. (FERREIRA, 2009, p. 11ss.).
Expondo com clareza esse dúplice aspecto da Constituição de 34, e ainda, destacando suas características primordiais, citamos a esmerada lição de Inocêncio Mártires Coelho:
“Pois bem, em que pese o regresso a fórmulas ultrapassadas, como a atribuição, ao Senado Federal, de funções assemelhadas às do imperial Poder Moderador — que a tanto equivalia incumbir essa Casa Legislativa de coordenar os poderes federais entre si e velar pela Constituição —, mesmo assim, a Carta de 1934 trouxe novidades significativas, que se incorporaram de vez à nossa experiência constitucional e que a credenciaram ao respeito da posteridade, como a constitucionalização dos direitos sociais; a criação da Justiça Eleitoral; o sufrágio feminino; o voto secreto e o mandado de segurança, este superlativamente importante, entre tantas outras “florações” demonstrativas de que aquela Constituição cuidou, em abundância, dos interesses da coletividade, o que, somando tudo, levou Cezar Saldanha a dizer que, embora efêmera, ela foi, historicamente, a mais criativa das constituições republicanas”. (COELHO, 2009, p. 190 – grifos do original).
De outro lado, inspirada na Constituição polonesa de 1935, o que lhe conferiu o hipocorístico de “Polaca”, Getúlio Vargas outorgou a Carta de 1937, atrelada ao Estado Novo e forte nas ideias nazi-fascistas de Hitler e Mussolini, além do ideário corporativista do Estado Novo estabelecido em Portugal. (COELHO, 2009, p. 191).
Nesse período, Ferreira aponta que “o estado constitucional foi violado com o fim da pluralidade partidária, do federalismo, da independência dos poderes e com a restrição a algumas liberdades individuais”. (FERREIRA, 2009, p. 13).
Entretanto, a Constituição de 1937 foi a primeira a estabelecer um capítulo dedicado à educação e à cultura, em seus artigos 128 a 134, dispondo sobre o dever do Estado de favorecer e estimular a ciência, a arte e o ensino. Nos artigos 135 a 155, no título da “Ordem Econômica”, trouxe a previsão de diversos direitos relativos ao trabalho, contemplado como um dever social. (KELBERT, 2011, pp. 29-30).
A Constituição de 1946, por sua vez, ampliou o leque de direitos sociais, voltando a introduzir o título “Da Ordem Econômica e Social” e, ainda, estabelecendo no Título VI, denominado “Da Família, da Educação e da Cultura”, que a educação devia inspirar-se nos ideais da solidariedade humana e nos princípios da liberdade (art. 166). (KELBERT, 2011, pp. 30-31).
Em 1964, contudo, ascenderam os militares ao poder, através de um golpe de Estado e, nada obstante terem mantido o texto da Constituição de 1946, estes passaram a emanar atos institucionais que culminaram na Constituição de 1967, tendo, então, como consequências, a supressão dos direitos políticos e garantias constitucionais de juízes, a extinção dos partidos políticos, a permissão para que fossem cassados mandatos legislativos, além de outorgar poderes ao Presidente da República para decretar recesso do Congresso Nacional, com o escopo de centralizar e fortalecer o Poder Executivo. (SAIS; ZANELLA, A. V.; ZANELLA, R. M. V., 2007, p. 328).
Noutros termos, o que realmente vigorava era o ato de força, uma vez que a Constituição de 1946 foi mantida tão somente nos limites do Ato Institucional nº 1. (FERREIRA, 2009, p. 329).
No mais, foi editada pela Junta Militar, a Emenda Constitucional nº 1 à Constituição de 1967, reputada por alguns como Constituição, mas que, para nós, nos termos bem empregados por Inocêncio Mártires Coelho, não passou de um “simulacro de Constituição”. (COELHO, 2009, p. 201). Aliás, o prefalado autor se refere ao comentário de Afonso Arinos, que revela limpidamente o teor da referida Emenda:
“[…] sobre esse documento nenhum comentário a fazer, senão o que disse Afonso Arinos, com a argúcia de costume: tal como a de 1967, foi uma Constituição de tipo instrumental, destinada tão-somente a dar fisionomia jurídica a um regime de poder de fato; há, dentro dela, um núcleo, por assim dizer, tradicional, que reconhece as realidades históricas e políticas da formação nacional, e, por isso mesmo, é a sua parte duradoura; afora isso, o seu texto é de escassa, ou, mesmo, nenhuma importância”. (COELHO, 2009, p. 201).
Não se pode descurar, todavia, que a Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional nº 1 de 1969[3], timbraram em seu texto algumas normas concernentes aos direitos sociais, razão que apraz citar acerca do tema as averbações de Fabiana Okchstein Kelbert:
“A Constituição de 1967, no texto anterior à emenda nº 01/1969, previu no artigo 158 uma série de direitos aos trabalhadores, os quais visavam à melhoria de sua condição social, tais como previdência social e o direito de aposentadoria para a mulher aos trinta anos de trabalho com salário integral. De acordo com Ledur, essa constituição foi inovadora em relação aos direitos sociais, pois “normas que antes da Constituição de 1967 se limitavam a preceitos endereçados ao legislador ordinário passaram a abrigar direitos de natureza constitucional.”
“Impende apontar que a Emenda Constitucional nº 01 de 17/10/1969 alterou praticamente todo o texto anterior, mas em relação aos direitos sociais praticamente não houve modificações, no que diz respeito aos direitos dos trabalhadores e à educação”. (KELBERT, 2011, p. 31 – grifos do original).
Diante da forte restrição aos direitos dos homens, estabelecida pelo Regime Militar, eclodiram diversos movimentos sociais, dentre eles a campanha das “Diretas Já”, que se iniciou de forma tímida em 1984 e ganhou força com o apoio dos partidos políticos PTD e PMDB. Defendia-se a eleição presidencial direta, com a aprovação da Emenda Dante de Oliveira, além daqueles que propugnavam pela convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.
A Constituição Cidadã, epíteto dado por Ulysses Guimarães em função dos avanços sociais nela incorporados, discorreu logo em seu preâmbulo que deve ser assegurado “o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”. (BRASIL, 2011, p. 9)[4].
Escorreito, também, o teor dos artigos 1º e 3º da Constituição de 1988, que preveem os fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. […]
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. (BRASIL, 2011, p. 9).
Importa vaticinar que a maior contribuição produzida pela Constituição de 1988 foi a inserção expressa dos direitos sociais no Título II – Dos direitos e garantias fundamentais, elevando-os assim, à categoria de direitos fundamentais. Antes, tais direitos se enquadravam apenas como “direitos econômicos e sociais”. (KELBERT, 2011, pp. 33-34).
Daí se extrai o primeiro indicativo de fundamentalidade dos direitos sociais, categoria oriunda da doutrina de Robert Alexy que “aponta para a especial dignidade de protecção dos direitos num sentido formal e num sentido material”. (CANOTILHO, 2002, p. 376).
O sentido formal está evidenciado na inclusão dos direitos sociais no rol de Direitos e garantias fundamentais constante no Título II da Constituição, e segundo sistematizado por Canotilho geralmente está associada à constitucionalização, apresentando quatro dimensões relevantes: i) enquanto normas consagradoras de direitos fundamentais, as normas fundamentais são colocadas em um grau hierárquico superior em relação às demais normas da ordem jurídica; ii) encontram-se submetidas aos procedimentos agravados de revisão; iii) passam, muitas vezes, a constituir limites materiais da própria revisão; iv) gozam de vinculatividade imediata dos poderes públicos, constituindo parâmetros materiais de escolhas, decisões, ações e controle, dos órgãos legislativos, administrativos e jurisdicionais. (CANOTILHO, 2002, p. 377).
A doutrina de Canotilho foi recepcionada na ordem jurídica brasileira, e suas dimensões foram traduzidas por Ingo Sarlet, com as devidas adaptações ao nosso direito constitucional. Nesse viés, Ingo Sarlet assinala a existência dos seguintes aspectos:
“a) como parte integrante da Constituição escrita, os direitos fundamentais situam-se no ápice de todo o ordenamento jurídico, de tal sorte que – nesse sentido – se cuida de direitos de natureza supralegal; b) na qualidade de normas constitucionais, encontram-se submetidos aos limites formais (procedimento agravado) e materiais (cláusulas pétreas) da reforma constitucional (art. 60 da CF) […]; c) por derradeiro, cuida-se de normas diretamente aplicáveis e que vinculam de forma imediata as entidades públicas e privadas (art. 5º, § 1º, da CF)”. (SARLET, 2009, pp. 74-75).
De outra banda, verificam-se no transcurso do texto constitucional, mais especificamente no Título VIII que trata “Da Ordem Social”, que os direitos sociais, nesse título, são disciplinados de forma pormenorizada. Além disso, afora as normas de cunho constitucional, existem diversas normas infraconstitucionais a respeito dos direitos sociais, citadas, a título ilustrativo, por George Marmelstein Lima:
“Afora o texto constitucional, há inúmeras leis ordinárias regulamentando os direitos econômicos, sociais e culturais. A título ilustrativo, citam-se: a Lei de Diretrizes e Base da Educação (Lei 9.394/96), a Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742/93), a Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90), o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), Programa Bolsa Família (Lei 10.836/2004), entre inúmeras outras, todas elas tão generosas quanto à Constituição”. (LIMA, 2005, p. 40).
Reside aqui, a discussão acerca do sentido material dos direitos sociais, que “decorre da circunstância de serem os direitos fundamentais elemento constitutivo da Constituição material, contendo decisões fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade”. (SARLET, 2009, p. 75).
Dentro dessa perspectiva, para que um direito seja considerado materialmente fundamental faz-se necessário observar o seu conteúdo. (SARLET, 2009, p. 75). Ademais, o constituinte incluiu no art. 5º da Constituição Federal, uma cláusula de abertura, expressa no § 2º, e que nos permite deduzir a sua intenção em deixar mais do que claro que se admitem como fundamentais, outros direitos além daqueles já previstos no referido dispositivo constitucional, desde que decorram dos princípios e do regime constitucional, ou estejam previstos em tratados de direitos internacionais. (OLSEN, 2011, p. 24).
Apropriando-se dos ensinamentos de Menelick de Carvalho Netto, Fabiana Kelbert vaticina que a cláusula de abertura material traz consigo a conclusão de que a fundamentalidade dos direitos, vai, inclusive, além da sua própria substância, uma vez que dela dimana a aquisição permanente de novos direitos fundamentais, em razão da escolha do constituinte estar subordinada à cultura, ao momento histórico e às necessidades ali presentes. (KELBERT, 2011, p. 41).
Com o escopo de finalizar esta discussão, transcreve-se trecho do voto do Ministro Carlos Velloso proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 939:
“É sabido, hoje, que a doutrina dos direitos fundamentais não compreende, apenas, direitos e garantias individuais, mas, também, direitos e garantias sociais, direitos atinentes à nacionalidade e direitos políticos. Este quadro todo compõe a teoria dos direitos fundamentais. Hoje não falamos, apenas, em direitos individuais, assim direitos de primeira geração. Já falamos em direitos de primeira, de segunda, de terceira e até de quarta geração. O mundo evoluiu, e assim, também, o Direito.” (BRASIL, ADI 939, 1994).
Outro ponto que tem sido alvo de cizânia doutrinária se circunscreve ao caráter de imutabilidade dos direitos sociais, haja vista que no art. 60, § 4º da CF é utilizada a expressão “direitos e garantias individuais”, alijando do seu contexto os direitos sociais.
De revés, essa interpretação é “restritiva e literal” (KELBERT, 2011, p. 37), não devendo ser sustentada, pois o direito deve ser interpretado no seu todo. A Constituição deve ser considerada como uma unidade e, de igual jaez, assinala-se que a interpretação de qualquer texto infraconstitucional impõe a dialética com a Constituição, projetando-se o percurso do texto até a norma constitucional, vista como um todo em qualquer circunstância, ante a afamada lição de Eros Grau de que “não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços”. (GRAU, 2009, pp. 131-132).
Paulo Gonet Branco descreve os argumentos dessa segunda corrente:
“De outro lado, argúi-se que os direitos sociais não podem deixar de ser considerados cláusulas pétreas. No Título I da Constituição (Dos Princípios Fundamentais) fala-se na dignidade da pessoa humana como fundamento da República e essa dignidade deve ser compreendida no contexto também das outras normas do mesmo Título em que se fala no valor social do trabalho, em sociedade justa e solidária, em erradicação da pobreza e marginalização e em redução de desigualdades sociais. Tudo isso indica que os direitos fundamentais sociais participam da essência da concepção de Estado acolhida pela Lei Maior. Como as cláusulas pétreas servem para preservar os princípios fundamentais que animaram o trabalho do constituinte originário e como este, expressamente, em título específico da Constituição, declinou tais princípios fundamentais, situando os direitos sociais como centrais para a sua idéia de Estado democrático, os direitos sociais não podem deixar de ser considerados cláusulas pétreas. No inciso IV do § 4° do art. 60, o constituinte terá dito menos do que queria, terá havido uma “lacuna de formulação”, devendo-se ali ler os direitos sociais, ao lado dos direitos e garantias individuais. A objeção de que os direitos sociais estão submetidos a contingências financeiras não impede que se considere que a cláusula pétrea alcança a eficácia mínima desses direitos”. (BRANCO, 2009, pp. 258-259 – grifos do original).
Afinada a esses preceitos, ao transcrever parte da doutrina de Paulo Bonavides, a professora Flávia Piovesan conclui que a expressão “direitos e garantias individuais” deve ser interpretada no sentido de englobar todos os direitos fundamentais:
“Cabe ainda mencionar que a Carta de 1988, no intuito de proteger maximamente os direitos fundamentais, consagra dentre as cláusulas pétreas a cláusula “direitos e garantias individuais”. Considerando a universalidade a indivisibilidade dos direitos humanos, a cláusula de proibição de retrocesso social, o valor da dignidade humana e demais princípios fundamentais da Carta de 1988, conclui-se que essa cláusula alcança os direitos sociais. Para Paulo Bonavides: “os direitos sociais não são apenas justiciáveis, mas são providos, no ordenamento constitucional da garantia da suprema rigidez do parágrafo 4º do art. 60”. São, portanto, direitos intangíveis, direitos irredutíveis, de forma que tanto a lei ordinária como a emenda à Constituição que a afetarem, abolirem ou suprimirem os direitos sociais padecerão do vício de inconstitucionalidade”. (PIOVESAN, 2010, p. 56).
Destacada, portanto, a fundamentalidade formal e material dos direitos sociais, é fácil concluir que é sob tal espeque que se dará a sua análise, nas linhas que seguem.
4. Aspectos terminológicos e dimensões dos direitos fundamentais: uma busca conceitual dos direitos fundamentais sociais
Norberto Bobbio, no ensaio intitulado de “A era dos Direitos”, rechaça a busca por fundamentos absolutos, afirmando que toda busca do fundamento absoluto é infundada. A partir dessa análise, Bobbio conclui que definir “direitos do homem” representa uma dificultosa tarefa. (BOBBIO, 1992, pp. 16-17).
Definir o que se entende por direitos fundamentais é sempre uma tormentosa tarefa quando se propõe estudar tal temática, pois sequer há uma concepção unânime sobre qual conceito deve ser empregado. Destaque-se, então, que além da terminologia empregada por Bobbio, despontam as seguintes concepções: direitos do homem, direitos humanos, direitos naturais, direitos individuais, direitos públicos subjetivos e liberdades humanas, dentre outras que deixamos de citar ante a natureza e objetivos deste trabalho monográfico.
Como o próprio tema do trabalho indica, optamos pela terminologia “direitos fundamentais” (droit fondamentaux), que foi utilizada originariamente na França, na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789 (OLSEN, 2011, p. 31). Tal escolha se deve por ser a mais consentânea com a sistemática constitucional do ordenamento brasileiro e também a que mais se adéqua ao estudo aqui realizado, cujo âmbito reside na investigação do direito à segurança pública, positivado na Carta Magna.
Assim, apesar de corriqueiramente a expressão direitos humanos ser empregada como sinônimo de direitos fundamentais é oportuno ressaltar que são concepções distintas.
Canotilho apresenta como traço diferenciador, o fato de que os direitos do homem são válidos em todos os tempos e para todos os povos, possuindo uma dimensão jusnaturalista-universalista; enquanto os direitos fundamentais são os direitos do homem garantidos e limitados espacio-temporalmente, ou seja, são aqueles direitos positivados no espectro normativo constitucional concreto de determinado país. (CANOTILHO, 2002, p. 391).[5]
Tem-se como característica marcante dos direitos fundamentais, a divisão em gerações ou dimensões[6], que pode ser compreendida de forma simplista, na tríade enumeração de direitos consagrada na Revolução Francesa, a saber: “Liberdade, igualdade e fraternidade”, embora não se possa relegar que autores consagrados, como Paulo Bonavides, afirmam a existência de quatro dimensões, além daqueles que já assinalam direitos de quinta dimensão.
Os direitos sociais, nessa classificação, estariam englobados como direitos de segunda dimensão, com a devida ressalva de Ingo Sarlet de que tais direitos não compreendem, como parte da doutrina propugna, apenas direitos de cunho prestacional ou “liberdades positivas”, não obstante o cunho positivo seja um dos marcos distintivos desta nova fase, mas também direitos de defesa (“liberdades negativas”). (SARLET, 2009, p. 48).
Nesse ponto, Ingo Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo resumem que,
“[…] verifica-se, desde logo e na esteira do que já tem sido afirmado há algum tempo entre nós, que também os direitos sociais abrangem tanto os direitos (posições ou poderes) a prestações (positivos) quanto direitos de defesa (direitos negativos ou a ações negativas), partindo-se aqui do critério da natureza da posição jurídico-subjetiva reconhecida ao titular do direito, bem como da circunstância de que os direitos negativos (notadamente os direitos à não intervenção na liberdade pessoal e nos bens fundamentais tutelados pela Constituição) apresentam uma dimensão “positiva” (já que sua efetivação reclama uma atuação positiva do Estado e da sociedade), ao passo que os direitos a prestações (positivos) fundamentam também posições subjetivas “negativas”, notadamente quando se cuida de sua proteção contra ingerências indevidas por parte dos órgãos estatais, de entidades sociais e também de particulares”. (SARLET; FIGUEIREDO, 2010, p. 16).
Com efeito, a classificação dos direitos fundamentais em dimensões, faz transparecer como o reconhecimento e consagração dos mesmos se deu por meio de conquistas sociais, gradualmente e com variações, não por meio de doutrinas ou teorias.
Por esta razão, Norberto Bobbio alude que os direitos humanos são direitos históricos, porque nasceram em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa da liberdade e de modo gradual. (RIBEIRO, 2009, pp. 22-23).
Essa sistematização dos direitos fundamentais em dimensões, embora didática, tem recebido muitas críticas, como, inclusive, já sinalizado neste capítulo. Uma delas é exposta por Antônio Augusto Cançado Trindade, cujas ilações foram bem sintetizadas por Inocêncio Mártires Coelho, de sorte que colacionamos o trecho a este relativo, em sua totalidade:
“Apesar da autoridade de Norberto Bobbio e de quantos mais sistematizam os direitos do homem por gerações, autores há, e de grande expressão, como Antônio Augusto Cançado Trindade, para quem essa classificação “prestou um desserviço à causa dos direitos humanos”. Ê que, segundo esse respeitado jurista, trata-se de uma classificação que, além de inconvincente, historicamente indemonstrável e juridicamente infundada, ainda tem servido de válvula de escape para que muitos governos, descomprometidos com a efetivação dos direitos sociais, nada façam para concretizá-los, a pretexto de que o mais importante é cuidar dos direitos civis e políticos — o que eles já “fazem”—, até porque, para observá-los, na quase-totalidade dos casos, basta “não fazer nada”, ou seja, não cometer violências contra os cidadãos.
De outra parte, prossegue Cançado Trindade, governos há, também, que se “arrogam em promotores de alguns direitos econômicos e sociais para continuarem a minimizar os direitos civis e políticos”. Diante dessas distorções, acrescenta esse mesmo jurista, torna-se imperiosa a necessidade do reconhecimento da inter-relação ou indivisibilidade de todos os direitos humanos, para que em regiões distintas do globo determinadas “categorias” de direitos não continuem sendo negligenciadas ou sistematicamente violadas, ainda que sob o falso pretexto de “promoção” de outros direitos. Afinal de contas, verbera, em conclusão, o mesmo Cançado Trindade: “a visão fragmentada dos direitos humanos interessa sobretudo aos regimes autoritários, ao autoritarismo sem bandeiras, seja no plano político, seja no plano econômico-social”. (COELHO, 2009, pp. 759-760).
A partir dessas observações, ao se buscar definir os direitos sociais não se pode olvidar que,
“[…] o qualificativo de social não está exclusivamente vinculado a uma atuação positiva do Estado na implementação e garantia da seguridade social, como instrumento de compensação de desigualdades fáticas manifestas e modo de assegurar um patamar pelo menos mínimo de condições para uma vida digna”. (SARLET; FIGUEIREDO, 2010, p. 17).
Este trabalho, entretanto, ater-se-á, a perspectiva apenas prestacional dos direitos sociais, mas sob o novo patamar conceitual em que deixam de ser simples expedientes funcionais, com o objetivo de compensar situações de desigualdade, e passando a atuar como “núcleos integradores e legitimadores do bem comum, pois será através deles que se poderá garantir a segurança, a liberdade, a sustentação e continuidade da sociedade humana”. (BARRETO apud KELBERT, 2011, p. 33).
Pode-se, nesse contexto, relembrar as lições do Ministro Cezar Peluso na abertura do Segundo Congresso da Conferência Mundial sobre Justiça Constitucional, realizado em 17 de janeiro de 2011, ao apontar que sem direitos fundamentais reconhecidos, protegidos e vivenciados, não há democracia:
“Além disso, o Estado Democrático reaparece como o principal instrumento de garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos. Bobbio já salientou os nexos evidentes entre democracia e direitos fundamentais no plano interno, e entre democracia e paz no âmbito das relações internacionais. Sem direitos fundamentais reconhecidos, protegidos e vivenciados, não há democracia; sem democracia, não existem condições mínimas para solução pacifica de conflitos, nem espaço para convivência ética”. (BRASIL, 2011).
Dessa forma, se por um lado os direitos fundamentais sociais são de difícil conceituação, por outro, não são raras as menções a sua dileta importância na construção de um Estado constitucional-democrático de direito, de modo que é a partir dos direitos fundamentais como um todo que se deve conceber uma Constituição, pois justificam a criação e desenvolvimento de mecanismos de legitimação, limitação, controle e racionalização do poder. (SCHIER, 2005, p. 117).
5. Dimensão objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais sociais
5.1. Breves considerações
A compreensão dos direitos fundamentais perpassa necessariamente pelas acepções que lhe são conferidas. Desse modo, há de se observar que os direitos fundamentais possuem duas perspectivas ou dimensões, a saber: a objetiva e a subjetiva. A objetiva corresponde aos “objetivos fundamentais da comunidade”. (OLSEN, 2011, p. 89). A subjetiva, por sua vez, refere-se a um direito individual plenamente exigível.
Não obstante algumas dissensões, a melhor doutrina é aquela que entende que as normas de direitos sociais, dada a sua fundamentalidade, também conjugam as perspectivas objetiva e subjetiva, como adiante se demonstrará.
5.2. A perspectiva objetiva dos direitos fundamentais sociais
A perspectiva objetiva dos direitos fundamentais ganhou impulso com o advento da Lei Fundamental de 1949. Como paradigma deste debate, destaca-se a decisão proferida em 1958 pela Corte Federal Constitucional (Bundesverfassungsgericht) da Alemanha no caso Lüth, na qual foi conferida continuidade a uma tendência já aventada em outros arestos, ficando consignado que a função precípua dos direitos fundamentais não se limitam a constituírem-se como direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do Estado, mas também como decisões valorativas de natureza objetiva da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento e que fornecem diretrizes para os órgãos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. (SARLET, 2009, p. 143).
Canotilho, com a sua recorrente simplicidade, averba que “uma norma vincula um sujeito em termos objectivos quando fundamenta deveres que não estão em relação com qualquer titular concreto”. (CANOTILHO, 2002, p. 1238).
Vale consignar, contudo, que a dimensão objetiva não se refere a um “reverso da medalha” da dimensão subjetiva. Antes, o que se verifica é uma espécie de mais-valia jurídica, ou seja, há um reforço da juridicidade das normas de direitos fundamentais, que passaram a integrar a sua perspectiva objetiva. (SARLET, 2009, p. 144).
Nesse ponto, insta trazer à baila, resumidamente, alguns pontos subscritos por Ingo Sarlet concernentes à perspectiva objetiva dos direitos fundamentais: i) considerando a Constituição como um sistema aberto de regras e princípios, não se deve restringir a perspectiva objetiva para os princípios, e a subjetiva para as regras, pois inexiste tal paralelismo, de sorte que tanto as regras quanto os princípios podem ter cunho meramente objetivo; ii) os direitos fundamentais sociais, no seu aspecto axiológico, representam uma ordem de valores fundamentais objetivos vigentes na comunidade; iii) o aspecto axiológico não se confunde com a mais-valia jurídica, antes equivale ao reconhecimento dos efeitos autônomos, para além da dimensão subjetiva, consagrados como “eficácia irradiante” dos direitos fundamentais. (SARLET, 2009, pp. 145-146).
Oportuno citar que Sarlet aponta como uma das implicações diretamente associadas à dimensão axiológica da função objetiva dos direitos fundamentais, a conclusão de que os direitos fundamentais como um todo devem ter sua eficácia valorada não apenas sob um ângulo individualista, mas também do ponto de vista da comunidade em sua completude, posto se tratar de valores e fins que esta deve respeitar e concretizar. (SARLET, 2009, p. 145).
Com supedâneo em tais premissas, complementa Sarlet que,
“[…] a doutrina alienígena chegou à conclusão de que a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais constitui função axiologicamente vinculada, demonstrando que o exercício dos direitos subjetivos individuais está condicionado, de certa forma, ao seu reconhecimento pela comunidade na qual se encontra inserido e da qual não pode ser dissociado, podendo falar-se, nesse contexto, de uma responsabilidade comunitária dos indivíduos”. (SARLET, 2009, pp. 145-146).
Clèmerson Merlim Clève exemplifica que uma linha de crédito que favoreça a busca de maior produtividade nas indústrias brasileiras, em princípio, não poderá ser reputada como inconstitucional. Todavia, se essa política de crédito supor o alcance da produtividade por meio da substituição de trabalhadores por máquinas sem a previsão de nenhum mecanismo para que o trabalhador seja preparado para novamente enfrentar o mercado de trabalho, é provável que tal política esteja em desacordo com a Constituição, mormente com o princípio constitucional do pleno emprego e com o direito ao trabalho. Clève afirma que aceitando a discussão da possibilidade de um trabalhador ajuizar medida judicial em face do Banco, cabe também aceitar o ajuizamento de ações coletivas, especialmente aforadas pelo Ministério Público para deter a política inconstitucional ou para obrigar a autoridade responsável a reorientá-la. (CLÈVE, 2011, p. 33)
Da função axiológica da perspectiva jurídico-objetiva dos direitos fundamentais advém outro desdobramento, também assinalado por Sarlet, consistente na “eficácia dirigente”, no sentido de que ao Estado “incumbe a obrigação permanente de concretização e realização dos direitos fundamentais”. (SARLET, 2009, p. 146).
No Congresso Brasileiro de Direito Constitucional, promovido pela Academia Brasileira de Direito Constitucional e realizado em Curitiba, no ano de 2002, Clèmerson Merlin Clève trouxe alguns pontos que são pertinentes ao que fora acima esboçado:
“É para isso que presta, desde um ponto de vista jurídico, desde um ponto de vista estritamente constitucional, o Estado brasileiro. O que temos na normativa constitucional não é uma promessa vã, uma promessa inútil. É, antes, a resposta normativa à realidade crua que nós conhecíamos e não tolerávamos, porque nós queríamos – e queremos – um mundo novo, sensivelmente diferente. Reside aqui a dimensão utópica e fundante da Constituição.
Pois bem, esses princípios, esses objetivos, esses direitos fundamentais, vinculam os órgãos estatais como um todo. Vinculam, evidentemente, o Poder Executivo, que haverá de respeitar os direitos de defesa, e ao mesmo tempo propor e realizar as políticas públicas necessárias à satisfação dos direitos prestacionais. Vinculam o Legislador, que haverá de legislar para, preservando esses valores e buscando referidos objetivos, proteger os direitos fundamentais, normativamente, assim como, eventualmente, fiscalizando a atuação dos demais poderes.
E, por fim, vincula também o Poder Judiciário que, ao decidir, há, certamente, de levar em conta os princípios, os objetivos e os direitos fundamentais. Os agentes públicos brasileiros estão comprometidos, estão absolutamente vinculados a esses parâmetros constitucionais, ou seja, a Constituição desde logo retirou do mundo político, da esfera da disputabilidade política, aquilo que é nuclear para nós, os integrantes da comunidade republicana brasileira”. (CLÈVE, 2005, p. 2).
Ademais, como decorrência da “força jurídica objetiva autônoma dos direitos fundamentais”, o que foi designado pela doutrina alemã como “eficácia irradiante” (Ausstrahlungswirkung), e conhecida na seara jurídica pátria, com algumas restrições, como “interpretação conforme à Constituição”. (SARLET, 2009, p. 147).
Ana Carolina Olsen, analisando os ensinamentos de Sarlet, concebe também, a função de proteção decorrente da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, que deve ser vista tanto em relação às arbitrariedades do Estado, quanto em relação às interferências dos particulares. Segundo a autora,
“[…] Esta dimensão protetora revela, em verdade o caráter positivo que todos os direitos fundamentais podem assumir, mesmo os clássicos direitos de defesa, na medida em que todos exigiriam – como função autônoma e independente de sua subjetividade – a proteção do Estado, para a qual, por certo, necessário se faz a adoção de medidas prestacionais. A partir dessa perspectiva torna-se mais evidente a conclusão a que chegaram Cass Sustein e Stephen Holmes no sentido de que todos os direitos fundamentais são positivos, e têm um custo”. (OLSEN, 2011, pp. 93-94).
Paulo Bonavides, valendo-se das ilações de Böckenförd, diz que ao extrapolarem a relação cidadão-Estado, os direitos fundamentais ganharam uma dimensão de norma objetiva, de validade universal, de conteúdo aberto e indeterminado, e que não pertence nem ao Direito Privado, nem ao Direito Público, compondo, porém, a abóbada de todo o ordenamento constitucional de cúpula.
Dentro desse contexto, podemos inferir que da dimensão jurídico-objetiva dos direitos fundamentais resultaram algumas inovações, bem destacadas na doutrina de Paulo Bonavides:
“a) A irradiação e a propagação dos direitos fundamentais a toda a esfera do Direito Privado;[…]; b) a elevação de tais direitos à categoria de princípios, de tal sorte que se convertem no mais importante pólo de eficácia normativa da Constituição; c) a eficácia vinculante, cada vez mais enérgica e extensa, com respeito aos três Poderes, nomeadamente o Legislativo; d) a aplicabilidade direta e a eficácia imediata dos direitos fundamentais, com perda do caráter de normas programáticas; e) a dimensão axiológica, mediante a qual os direitos fundamentais aparecem como postulados sociais que exprimem uma determinada ordem de valores e ao mesmo passo servem de inspiração, impulso e diretriz para a legislação, a administração e a jurisdição; f) o desenvolvimento da eficácia inter privatos, ou seja, em relação a terceiros (Drittwirkung), com atuação no campo dos poderes sociais, fora, portanto, da órbita propriamente dita do Poder Público ou do Estado, dissolvendo, assim, a exclusividade do confronto subjetivo imediato entre o direito individual e a máquina estatal; confronto do qual, nessa qualificação, os direitos fundamentais se desataram; g) a aquisição de um “duplo caráter” (Doppelcharakter; Doppelgestalt ou Doppelqualifizierung), ou seja, os direitos fundamentais conservam a dimensão subjetiva – qual nunca se podem apartar, pois, se o fizessem, perderiam parte de sua essencialidade – e recebem um aditivo, uma nova qualidade, um novo feitio, que é a dimensão objetiva, dotada de conteúdo valorativo decisório, e de função protetora tão excelentemente assinalada pelos publicistas e juízes constitucionais da Alemanha; h) a elaboração do conceito de concretização, de grau constitucional, de que se têm valido, com assiduidade, os tribunais constitucionais do Velho Mundo na sua construção jurisprudencial em matéria de direitos fundamentais; i) o emprego do princípio da proporcionalidade vinculado à hermenêutica concretizante, emprego não raro abusivo, de que derivam graves riscos para o equilíbrio dos Poderes, com os membros da judicatura constitucional desempenhando de fato e de maneira insólita o papel de legisladores constituintes paralelos, sem todavia possuírem, para tanto, o indeclinável título de legitimidade; e j) a introdução do conceito de pré-compreensão (Vorverständnis), sem o qual não há concretização”. (BONAVIDES, 2005, pp. 588-589 – grifos do autor).
Por derradeiro, nota-se, a teor do que leciona Ingo Sarlet, que a perspectiva objetiva deve ser considerada como um fundamento para outras funções, assumindo papel de relevância para a construção de um sistema eficaz e racional para a sua efetivação. (SARLET, 2009, p. 151).
5.3. Os direitos fundamentais sociais e sua perspectiva subjetiva: implicações acerca da sua eficácia e aplicabilidade
As normas de direito subjetivo, como consignado desde o início, são aquelas que permitem ao seu titular o direito de por elas reclamar judicialmente, por isso diz-se que trazem direitos individuais plenamente exigíveis.
Na concepção clássica de Canotilho “diz-se que uma norma garante um direito subjectivo quando o titular de um direito tem, face ao seu destinatário, o direito a um determinado acto, e este último tem o dever de, perante o primeiro, praticar esse acto”. (CANOTILHO, 2002, p. 1238 – grifos do autor).
Seguindo as lições do mestre lusitano, sobressai a relação trilateral das normas que veiculam direitos subjetivos, relação esta entre o titular do direito, o destinatário e o objeto do direito. (CANOTILHO, 2002, p. 1238).
Os direitos fundamentais em sua dimensão jurídico-subjetiva desempenham, no mínimo, três funções:
“[…] defesa, prestação e não discriminação. Ou seja, os direitos fundamentais (i) situam o particular em condição de opor-se à atuação do poder público em desconformidade com o mandamento constitucional, (ii) exigem do poder público a atuação necessária para a realização desses direitos, e, por fim, (iii) reclamam que o Estado coloque à disposição do particular, de modo igual, sem discriminação (exceto aquelas necessárias para bem cumprir o princípio da igualdade), os bens e serviços indispensáveis ao seu cumprimento. Então, salvo nas hipóteses de ação afirmativa, onde poderá haver uma discriminação (temporariamente justificável) que busque atender determinadas finalidades constitucionais (proteção de determinado gênero ou grupo, por exemplo), a exigência é de que os serviços sejam colocados à disposição de todos os brasileiros (idéia de universalidade), implicando para o particular o poder de reivindicar junto ao Judiciário idêntico tratamento”. (CLÈVE, 2003, p. 34).
Ocorre, todavia, que subsiste grande problemática no que concerne à uniformidade de pensamento acerca das normas de direitos subjetivos, e em grande parte, concordando com o que explícita Ingo Sarlet, se deve ao próprio objeto do direito fundamental subjetivo, que se vincula aos seguintes fatores: i) o espaço de liberdade da pessoa individual não possui um plexo de garantias uniformizado; ii) há várias distinções quanto ao grau de exigibilidade desses direitos, mormente daqueles que preveem direitos sociais a prestações materiais; iii) a complexidade das posições jurídicas dos direitos fundamentais, que podem se constituir em direitos, liberdades, pretensões e poderes de natureza diversa e ainda dirigir-se a diferentes destinatários. (SARLET, 2009, pp. 152-153).
Nesse contexto, reside a discussão se as normas constitucionais que estabelecem direitos sociais são normas de conteúdo programático, posto que, se assim a concebermos, estaríamos alijando esses direitos da sua perspectiva subjetiva.
As normas de cunho programático foram tradicionalmente modeladas no direito brasileiro, mediante a doutrina de José Afonso da Silva, inobstante não se possa desconsiderar outras classificações anteriormente professadas, a exemplo de Ruy Barbosa que reproduziu e adaptou a doutrina norte-americana, decompondo as normas em autoaplicáveis e não autoaplicáveis, e também, Meirelles Teixeira que apresentando crítica a respeito da concepção de inspiração norte-americana de Rui Barbosa, classificou as normas constitucionais em normas de eficácia plena e normas de eficácia limitada ou reduzida, sendo espécies destas últimas, as normas programáticas e as normas de legislação.
“Mais recentemente, por volta do final da década de 60, José Afonso da Silva, desenvolvendo o tema da aplicabilidade das normas, a partir da doutrina de Vesio Chisafulli e Meireles Teixeira, trouxe a conhecida classificação tricotômica das normas constitucionais: i) normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata; b) normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata, mas passíveis de restrição; c) normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida, que englobam as normas definidoras de princípio institutivo ou organizacional e as definidoras de princípio programático, em regra dependentes de integração do legislador infraconstitucional para operarem a plenitude de seus efeitos”. (BARROSO, 2010, p. 214).
Por ser a mais tradicional e classicamente aceita, adotaremos, a título de análise, a classificação ofertada por José Afonso da Silva, que, quanto à eficácia, divide as normas nas seguintes categorias: i) normas de eficácia plena: possuem aplicabilidade imediata; ii) normas de eficácia contida: possuem aplicabilidade imediata, mas podem ser restringidas; e, iii) normas de eficácia limitada: aquelas que precisam de regulação posterior para produzir seus efeitos, dividindo-se em normas de princípios institutivos e normas de cunho programático.
É oportuno, porém, antes de adentrarmos ao que concerne especificamente às normas de eficácia limitada de cunho programático, discorrer, mesmo que de forma sucinta, o que se deve à natureza deste trabalho, acerca da clássica divisão dos atos jurídicos em três planos inconfundíveis: o da existência, o da validade e o da eficácia.
Luís Roberto Barroso resume os planos da existência e da validade, explicitando sua consequência:
“[…] a existência do ato jurídico está ligado à presença de seus elementos constitutivos (normalmente, agente, objeto e forma) e a validade decorre do preenchimento de determinados requisitos, de atributos ditados pela lei. A ausência de algum dos requisitos conduz à invalidade do ato, à qual o ordenamento, considerando a maior ou menor gravidade, comina as sanções de nulidade ou anulabilidade”. (BARROSO, 1996, p. 219).
E prossegue, vaticinando que a eficácia dos atos jurídicos “se traduz na sua aptidão para a produção de efeitos, para a irradiação das consequências que lhe são próprias. Eficaz é o ato idôneo para atingir a finalidade para a qual foi gerado”. (BARROSO, 1996, p. 219).
De enlevo, também, é o quarto plano mencionado por Barroso, correspondente à efetividade ou eficácia social da norma, que por longo tempo fora negligenciado. A ideia de efetividade expressa
“[…] o cumprimento da norma, o fato real de ela ser aplicada e observada, de uma conduta humana se verificar na conformidade de seu conteúdo. Efetividade, em suma significa a realização do Direito, o desempenho de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social”. (BARROSO, 2010, p. 221 – grifos do autor).
Nesse viés, indo direto ao ponto que nos interessa, é pertinente destacar que as normas de cunho programático são “aquelas normas jurídicas com que o legislador, ao invés de regular imediatamente um certo objeto, preestabeleceu a si mesmo um programa de ação, com respeito ao próprio objeto”. (CRISAFULLI apud BONAVIDES, 2005, p. 248).
Pontes de Miranda aduz:
“Regras jurídicas programáticas são aquelas em que o legislador, constituinte ou não, em vez de edictar regra jurídica de aplicação concreta, apenas traça linhas diretoras, pelas quais se hão de orientar os poderes públicos. A legislação, a execução e a própria justiça ficam sujeitas a êsses ditames, que são como programas dados à função legislativa”. (MIRANDA, 1987, pp. 126-127).
Dessa forma, cabe buscar a resposta para algumas das perquirições expendidas por Ingo Sarlet, em sua obra intitulada “A eficácia dos direitos fundamentais”. Dessarte, indaga-se: “em que medida os direitos a prestações se encontram em condições de, por força do disposto no art. 5º, § 1º da CF serem imediatamente aplicáveis e gerarem sua plena eficácia jurídica?” e, “é possível deduzir destes direitos um direito subjetivo individual a prestações estatais?”. (SARLET, 2009, p. 280).
A primeira pergunta é de fácil solução, pelo menos sob a ótica aqui trabalhada, posto que, por se tratarem os direitos sociais de direitos fundamentais, e já tendo sido delineada a sua fundamentalidade formal e material, não há que se excogitar que o § 1º do art. 5º da CF não os contemplou. Vejamos o raciocínio: i) os direitos sociais foram considerados no Brasil como direitos fundamentais, tanto no aspecto formal, quanto no material; ii) os direitos fundamentais têm aplicação imediata, por expressa previsão contida no § 1º do art. 5º da Constituição de 1988; iii) o § 1º do art. 5º da Constituição de 1988 não traz qualquer exclusão. Logo, os direitos sociais têm aplicação imediata. (LIMA, 2005, p. 53).
Ingo Sarlet assinala:
“Ponto de partida da nossa análise será, aqui, também a constatação de que mesmo os direitos fundamentais a prestações são inequivocamente autênticos direitos fundamentais, constituindo (justamente em razão disto) direito imediatamente aplicável, nos termos do disposto no art. 5º, § 1º de nossa Constituição. A exemplo das demais normas constitucionais e independentemente de sua forma de positivação, os direitos fundamentais prestacionais, por menor que seja sua densidade normativa ao nível da Constituição, sempre estão aptos a gerar um mínimo de efeitos jurídicos, sendo, na medida desta aptidão, diretamente aplicáveis, aplicando-se-lhes (com muito mais razão) a regra geral, já referida, no sentido de que inexiste norma constitucional destituída de eficácia e aplicabilidade […].” (SARLET, 2009, pp. 280-281).
Partindo desse pressuposto, George Marmelstein Lima traz um ponto relevante acerca do exposto, consistente em desvendar a consequência de imprimir ou conceber as normas de direitos sociais como normas de aplicabilidade imediata, a saber, perquire o autor, se Manoel Gonçalves Ferreira Filho ao deduzir que o art. 5º, § 1º da CF/88 seria destituído de qualquer significado prático, pois só podem ter aplicação imediata “as normas completas, suficientemente precisas na sua hipótese e no seu dispositivo” (FERREIRA FILHO apud LIMA, 2005, pp. 53-54) seria ou não correto.
A resposta de George Marmelstein é taxativa: “claro que não!”, para tanto argumenta que a cláusula da aplicação imediata é a consagração expressa do princípio da máxima efetividade, que é imanente a todas as normas constitucionais, mormente as normas definidoras de direitos. O autor traz à lembrança a frase de Krügrer: “não são os direitos fundamentais que devem girar em torno das leis, mas as leis que devem girar em torno dos direitos fundamentais”, e conclui que a preocupação primordial é a concretização dos direitos fundamentais, não sendo possível deixar de concretizar um direito fundamental por ausência de regulamentação legal, hipótese em que caberá ao jurista tomar as medidas necessárias para que o direito reclamado não fique sem efetividade. (LIMA, 2005, p. 54).
Essa mesma constatação chegou Norberto Bobbio, quando no simpósio promovido pelo Instituto Internacional de Filosofia (Institut International de Philosophie), cuja temática era o “Fundamento dos Direitos do Homem” teve a oportunidade de dizer, “num tom um pouco peremptório”, e já no término da sua comunicação, que “o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los.” (BOBBIO, 1992, p. 25).
Dessa forma, concordamos inteiramente com tais exposições, afinal a aplicabilidade imediata dos direitos sociais decorre da própria Constituição, o que também nos faz rememorar Celso Antônio Bandeira de Mello quando apregoa que “A Constituição não é um simples ideário”, mas a transformação de um ideário, “é a conversão de anseios e aspirações em regras impositivas”. (MELLO, 2011, p. 11).
Por sua vez, no que atine à segunda indagação, lapidar é o escólio de Canotilho, para quem os direitos sociais são “autênticos direitos subjectivos inerentes ao espaço existencial do cidadão, independentemente da sua justicialidade e exequibilidade imediata”. (CANOTILHO, 2002, p. 472 – grifos do autor).
Ana Carolina Lopes Olsen reportando-se ao art. 75 do Código Civil de 1916, que prelecionava que a todo direito deveria corresponder uma ação, sustenta que esse modelo era reflexo de um Código que não se adapta ao constitucionalismo inaugurado com a Constituição de 1988. Convém anotar, portanto, a interpretação correta que deve ser dada aos direitos fundamentais, bem trilhada nas palavras da citada autora:
“[…] é porque a Constituição previu determinados direitos como fundamentais, atribuindo obrigações ao Estado e aos particulares (como é o caso dos direitos fundamentais sociais dos trabalhadores) que eles são exigíveis judicialmente, e portanto, corresponderiam a direitos subjetivos. A exigibilidade não é condição de existência do direito, ele não existe porque é exigível. Ele existe, razão pela qual deve ser exigível”. (OLSEN, 2011, p. 96).
Nesse sentido, mais adiante, Ana Carolina Lopes Olsen registra a crítica de Eros Roberto Grau acerca da classificação quanto à aplicabilidade das normas proposta por José Afonso da Silva, no sentido de que,
“[…] segundo Eros Grau, afirmar que determinadas normas constitucionais têm sua eficácia dependente da edição de normas pelo legislador ordinário equivaleria a uma “revogação de fato”, sempre que o legislador se omitisse no seu dever de concretizar a norma constitucional. Seria inverter a hierarquia das normas jurídicas, na medida em que uma lei ordinária acabaria por se sobrepor a uma norma constitucional. Nestas condições, o autor defende que as normas de direitos sociais, ainda que prevejam a possibilidade de integração do seu conteúdo por legislação ordinária, não dependem desta para sua interpretação e aplicação, gerando verdadeiros direitos subjetivos aos seus titulares”. (OLSEN, 2011, p. 100 – grifos do autor).
Na acepção de Daniel Sarmento,
“[…] conceber os direitos sociais como normas programáticas implica deixá-los praticamente desprotegidos diante das omissões estatais o que não se compatibiliza nem com o texto constitucional, que consagrou a aplicabilidade imediata de todos os direitos fundamentais, nem com a importância destes para a vida das pessoas.” (SARMENTO, 2008, p. 566 apud KELBERT, 2011, p. 58 – grifos do autor).
Diferenciam-se, então, as normas programáticas das normas definidoras de direitos sociais. E, um relevante estudo sobre esta distinção foi elaborado por José Carlos Vasconcellos dos Reis para quem a diferença central entre elas, reside no seu objeto, pois enquanto as primeiras somente determinam um fim a ser cumprido pelo Estado, as últimas atribuem um direito subjetivo aos seus titulares. Vasconcellos sugere que deve ser verificado que nas normas definidoras de direitos sociais há efetivo conteúdo de um direito subjetivo e determinado, e não apenas uma mera sugestão de conteúdo, isto é, nas normas programáticas denota-se a presença de simples previsão das políticas públicas que devem ser implementadas, enquanto nas normas definidoras de direito existem verdadeiros direitos sociais. (OLSEN, 2011, p. 102).
Similar ao ensinamento de Vasconcellos dos Reis, Clèmerson Merlin Clève assinala que “o art. 6º da Constituição não substancia norma programática (no sentido de despida de eficácia imediata)”. (CLÉVE, 2003, p. 22).
Clèmerson Merlin Clève destaca, porém, a existência, inclusive no art. 6º da CF/88, de direitos prestacionais originários e de direitos prestacionais derivados. Os primeiros podem ser desde longo reclamados judicialmente. Os derivados, por outro lado, necessitam de prévia regulamentação legal, não se realizando inteiramente sem esta. (CLÈVE, 2003, pp. 23-24).
Para arrematar esta discussão, que, frise-se, longe está de ser pacificada, cabe anotar a doutrina de Alexy, defendida no Brasil por Ingo Sarlet. Os renomados juristas apregoam a existência de direitos fundamentais sociais de natureza subjetiva, contudo, desta assertiva não concluem uma dimensão radical de tudo ou nada, mas sim dependente de ponderação, vislumbrada em cada caso concreto. Não se podendo olvidar, nessa alheta, que os direitos sociais estão intrinsecamente ligados à vida e à dignidade humana, o que lhes imprime uma presunção de efetividade ou de subjetividade. (OLSEN, 2011, p. 110ss.).
Tem-se, assim, o processo de ponderação como elemento norteador para a concretização ou efetividade dos direitos sociais.
6. Considerações finais
A Constituição não é uma mera carta de conselhos. Antes, suas normas possuem força suficiente para impelir aqueles que, assim são responsáveis, a efetivar as medidas nela previstas. Suas normas são verdadeiras imposições que outorgam direitos aos administrados e, por outro lado, importam em deveres ou atitudes a serem tomadas pelo próprio Estado.
Dessa forma, conclui-se que os direitos sociais, diante da sua fundamentalidade formal e material, não podem ser vistos simplesmente como programas que devem ser adotados pelo Estado, posto trazerem consigo uma dupla perspectiva, o que lhe confere a característica de poderem ser exigidos judicialmente, sendo-lhes assegurada a efetividade imediatamente decorrente dos próprios termos da Constituição de 1988, e imanentes àquilo que modernamente vislumbra-se como Estado constitucional-democrático de direito.
Graduada em Direito pelo Centro Universitário do Maranhão – UNICEUMA. Pesquisadora do Núcleo de Estudos do Estado, Segurança Pública e Sociedade – NEESS, vinculado à Coordenadoria Geral do Curso de Direito do UNICEUMA. Assessora jurídica. Associada à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Professor de Ciência Política e Estado no Curso de Direito da UFMA e Ciência Política e Sociologia Jurídica do Curso de Direito do UNICEUMA. Coordenador do NEESS/UNICEUMA. Acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário do Maranhão (UNICEUMA).
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