A inexistência de discricionariedade no cumprimento da decisão judicial de concessão ou não de extradição pelo Presidente da República

1. INTRODUÇÃO

A extradição representa a entrega feita pelo Estado requerido de um estrangeiro ou, em certas hipóteses, de um nacional naturalizado, que esteja sendo processado ou já tenha sido julgado por ter cometido no país de origem fato considerado crime, à justiça de um Estado estrangeiro, que o reclama e é competente para puni-lo.

Há duas espécies de extradição: a passiva e a ativa. Aquela acontece quando um Estado estrangeiro, por exemplo, requer ao Brasil o envio do criminoso. Esta ocorre quando é o Brasil que requer a um Estado estrangeiro o envio do infrator.

Neste trabalho, será analisada, conforme pode ser extraído do título, a extradição passiva, ou seja, o procedimento e a legitimidade da concessão de extradição pela República Federativa do Brasil.

A existência de um prévio procedimento estabelecido nos artigos 76 a 94 da Lei nº 6.815, de 19/08/1980, em parte recepcionado pela Constituição Federal de 1988 (CF/88), e a necessidade de participação de, no mínimo, dois órgãos de diferentes Poderes Constituídos mostram que tal instituto tem como escopo a proteção do princípio fundamental da soberania, estabelecido no inciso I do artigo 1º da CF/88.

São quatro os Poderes Constituídos na esfera federal: o Poder Executivo, o Poder Legislativo, o Poder Judiciário e o Poder Constituinte Derivado, sendo que este último é exercido, basicamente, pelo órgão titular do Poder Legislativo, o Congresso Nacional. Os três primeiros exercem atos exclusivos de soberania: o Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo, ao julgar litígio entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Território; o Congresso Nacional, por exemplo, ao legislar sobre os limites do território nacional, espaço aéreo e marítimo; o Presidente da República, por exemplo, ao manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos no Brasil.

As hipóteses e a legitimação para a defesa do princípio da soberania decorrem taxativamente de competências constitucionalmente atribuídas, sendo que nenhum dos Poderes pode ultrapassar a competência que lhe foi atribuída, sob pena de nulidade, ou, como alguns autores preferem, de inexistência do ato que será reputado inconstitucional. A constituição Federal de 1988, ao atribuir ao Presidente da República a competência para manter relações com Estados estrangeiros, deixou claro que os atos administrativos concernentes a tais relações são de atribuição exclusiva daquela autoridade, mas não lhe atribuiu qualquer competência relacionada às funções precípuas dos outros dois Poderes.

Assim, continua sendo o Poder Judiciário que, através do seu órgão máximo, julga, originariamente, a extradição solicitada por Estado estrangeiro, em única e última instância, com força de coisa julgada – vide alínea “g” do inciso I do art. 102 da CF/88 -, portanto sem qualquer possibilidade de revisão, reforma ou ratificação por outro Poder, cabendo ao Poder Executivo – como acontece, por exemplo, em relação às ordens judiciais de prisão – cumprir o que fora determinado.

A atribuição de competência discricionária ou vinculada ao Poder Executivo é feita expressamente através de lei ou de norma constitucional, não sendo possível qualquer dedução, ainda mais se tal dedução usurpar competência de outro Poder.

2. O PROBLEMA APRESENTADO

A maioria dos autores, dentre eles Alexandre de Moraes, entende que, findo o processo extradicional, se a decisão do STF negar provimento ao pedido, o Presidente da República estará vinculado. E que, se o pedido for provido, o chefe do Poder Executivo da União poderá, com base na sua discricionariedade, efetivar ou não a medida. O próprio STF já ratificou tal entendimento, afirmando que o juízo discricionário do Presidente da República, na hipótese de provimento, é uma questão de soberania[1]. Entretanto, algumas questões precisam ser esclarecidas:

1) No caso de não provimento, que órgão estaria exercendo a soberania?

2) No caso de provimento, que órgão estaria exercendo a soberania?

3) Quais artigos da Carta Maior estabelecem as competências discricionária e vinculada do Presidente da República nos procedimentos de extradição?

4) Qual artigo da Constituição Federal de 1988 atribuiu competência jurisdicional ao chefe do Poder Executivo da União nos procedimentos de extradição?

5) Qual artigo da Carta Magna retirou a jurisdição (dizer o Direito de forma definitiva) do STF nos casos de pedido de extradição?

6) Qual artigo da CF/88 atribuiu a função consultiva do Presidente da República ao Supremo Tribunal Federal nos casos de julgamento procedente do pedido de extradição?

Ora, tanto nos casos de provimento do pedido quanto nos casos de não provimento, é o Supremo Tribunal Federal que exerce jurisdição e a sua decisão não pode ser alterada por qualquer outro órgão dos Poderes Constituídos.

É o STF, portanto, que neste e em outros casos – vide alínea “h” do inciso I do artigo 102 da CF/88 -, exerce a soberania. Ressalte-se que a soberania é defendida pela União através dos seus três poderes e que cada um a protege nos limites das suas competências constitucionais.

Não se deve fundamentar a espúria discricionariedade aqui tratada na suposta competência exclusiva do chefe do Poder Executivo para defender o princípio fundamental da soberania, visto que, se este fosse o caso, o não provimento do pedido de extradição pelo STF, que tem a mesma repercussão do provimento no que toca a soberania, também não deveria vincular o Presidente da República, mas, segundo os autores de Direito Constitucional, vincula.

Inexiste qualquer artigo da Constituição de 1988 atribuindo competência discricionária ao órgão máximo do Poder Executivo da União para o caso de provimento do pedido de extradição pelo STF nem há qualquer artigo atribuindo-lhe competência vinculada para o caso de não provimento do pedido pelo tribunal citado. Não há também qualquer artigo que afaste a jurisdição do órgão máximo do Poder Judiciário nos casos de pedido de extradição. E não restou configurada qualquer atribuição de competência jurisdicional ao Presidente da República nos incisos de art. 84 da CF/88. Portanto permanece o poder jurisdicional do STF, que vincula todas as autoridades administrativas.

Sem sombra de dúvida, a Constituição Federal de 1988 não atribuiu ao STF a função de órgão consultivo do Presidente da República. Portanto, somente se tal função existisse o Chefe do Poder Executivo da União poderia avaliar a conveniência e a oportunidade na efetivação de uma manifestação da Corte Máxima pela extradição. O órgão competente para exercer a consultoria jurídica do Presidente da República é a Advocacia-Geral da União, nos termos do artigo 131 da CF/88, sendo que suas manifestações, ao contrário dos provimentos judiciais, não vinculam, em regra, as decisões dos órgãos do Poder Executivo.

CONCLUSÕES

A Constituição Federal de 1988 não concedeu qualquer discricionariedade ao Presidente da República nos casos de extradição: tanto o provimento do pedido quanto o não provimento vinculam aquela autoridade.

O Presidente da República não exerce jurisdição nos casos de extradição, portanto não pode alterar qualquer decisão do Supremo Tribunal Federal.

A Corte Máxima jamais funcionará como órgão consultivo sobre a legalidade de um determinado ato, portanto o artigo 83 da Lei nº 6.815, de 19/08/1980, não foi recepcionado pela atual Constituição.

Por fim, tanto o não provimento do pedido de extradição quanto o provimento são, ontologicamente, atos inerentes à soberania, não cabendo qualquer distinção de competência com base em argumentos inconstitucionais.

 

Referências bibliográficas
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 3ª ed., Coimbra: Almedina, 1999, p. 763 a 769.
GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. V. I, 14ª ed. Rev., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 32 a 40.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 14ª ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 113 a 123.
PORTELLI, Hugues. Droit Constitutinnel. 4ª édition, Paris: Dalloz, p. 287 a 289.

Notas
[1] STF, RF 221/275.

Informações Sobre o Autor

Reinaldo de Souza Couto Filho

Advogado da União, Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia, ex-professor de Direito constitucional da UNIME/BA, ex-coordenador da revista do Mestrado em Direito da Universidade Federal da Bahia e autor do livro “Dívidas condominiais e bem de família no sistema jurídico brasileiro” da Editora Lumen Juris.


Equipe Âmbito Jurídico

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