Resumo: O objetivo do texto é refletir sobre os efeitos da EC 66 sobre o ordenamento infraconstitucional (CC e CPC) sob um enfoque mais abrangente e interdisciplinar, com a pretensão de contribuir para a solução da controversia envolvendo a subsistência da separação de direito como forma de dissolução da sociedade conjugal[1].
A aprovação da Emenda Constitucional 66 (PEC 28 de 2009), alterando o art. 226, § 6.º, da Constituição, para suprimir a cláusula final do dispositivo que se referia à prévia separação, de fato ou de direito, como requisito para o divórcio[2] tem provocado grandes controvérsias entre os operadores jurídicos, especialmente no que diz respeito ao instituto da separação de direito.
Como se sabe, não são poucos os juristas de nomeada que defendem a suposta revogação, pela Constituição, de toda a legislação ordinária que regulava o procedimento da separação.
Um problema que permeia essa discussão refere-se à maneira como o tema tem sido tratado. A maioria dos autores o tem abordado sob a ótica exclusiva do Direito de Família, quando, na verdade, o foro desse debate é a Teoria Geral do Direito, o Direito Constitucional e o Direito Intertemporal.
Sem qualquer demérito aos ilustres civilistas que apressadamente “decretaram” o banimento da separação de direito, entendemos que a matéria carece de um estudo mais aprofundado.
Os argumentos até agora enunciados não convencem e, talvez por isso mesmo, partem, muitas vezes, para o ataque pessoal aos partidários da tese oposta, a quem tem sido imputada a pecha de conservadores, reacionários ou defensores de uma suposta reserva de mercado a favor da advocacia.
Inicialmente, convém aclararmos quais as conseqüências de eventual incompatibilidade entre uma nova ordem constitucional, ainda que decorrente do poder constituinte derivado, e a legislação ordinária anterior. Em outras palavras: quais os possíveis efeitos da emenda constitucional em relação ao ordenamento infraconstitucional.
No sistema constitucional brasileiro tem prevalecido a tese de que as leis anteriores incompatíveis com a ordem constitucional superveniente são por ela revogadas tacitamente, não se aplicando o juízo de inconstitucionalidade.
A revogação tácita, entretanto, constitui uma das situações normativas mais intrincadas e mais difíceis de ser identificada. Saber da compatibilidade de uma lei anterior em face de uma superveniente mutação legislativa demanda operação hermenêutica de grande complexidade[3]. E, em se tratando “de incompatibilidade com a Constituição, a matéria fica ainda mais eriçada de dúvidas, pois a solução do problema passa a ter um conteúdo político, histórico e ideológico mais acentuado”[4].
Daí porque avulta a importância de aprofundarmos esse debate e tentarmos convergir as posições quanto ao verdadeiro alcance da EC 66 e sobre quais efeitos produziu no Código Civil e no Código de Processo Civil.
A primeira indagação que se coloca é a seguinte : Existe conflito entre a Constituição reformada e o ordenamento jurídico infraconstitucional?
Ora, conflito ou antinomia de normas ocorre quando presente uma tal contradição que impossibilite a sua aplicação simultânea, impondo, assim, o afastamento de uma delas do sistema. As normas antinômicas não se conciliam e não admitem conviver, razão pela qual o próprio sistema normativo provê critérios e mecanismos de eliminação do conflito, os quais serão estudados ora pela Teoria Geral do Direito, ora pelo Direito Intertemporal[5].
No caso concreto, resta saber se houve revogação do Código Civil e da Lei 11.441, na parte referente à separação legal, pela superveniência da emenda constitucional, o que exigirá do intérprete aprofundado exame sobre a compatibilidade da norma anterior com o preceito constitucional.
Pelo menos do ponto de vista estritamente formal, é claríssimo que a supressão decorrente da EC 66 refere-se apenas aos requisitos para o divórcio (prévia separação judicial por mais de um ano ou comprovada separação de fato por mais de dois anos), e não à existência de um procedimento (judicial ou extrajudicial) para dissolução da sociedade conjugal.
Identificamos, de logo, um conflito ou contradição da Constituição com a lei ordinária, no que se refere aos requisitos de prazo para a decretação do divórcio. Entretanto, o conflito acaba aí. Restringe-se a esse aspecto, não alcançando a própria existência de um procedimento autônomo para a dissolução da sociedade conjugal, nas hipóteses em que os cônjuges ainda não estiverem completamente seguros de sua decisão ou quando tencionarem discutir outras questões a latere do rompimento, como aquelas relacionadas à culpa e aos alimentos.
Observe-se que as Constituições brasileiras jamais, em tempo algum, disciplinaram, albergaram, tutelaram expressamente, o processo de separação legal, que sempre foi matéria de lei ordinária.
A Carta de 1824 sequer menciona o casamento ou sua dissolução. A CF/1891 se limita a enfatizar que a “República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita” (art. 72, § 4.º). A Constituição de 1934 remete a questão para a lei ordinária (Art. 144. A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Parágrafo único. A lei civil determinará os casos de desquite e de anulação de casamento, havendo sempre recurso ex officio, com efeito suspensivo). A Carta Polaca (1937) suprimiu a referência ao desquite e à anulação do casamento, limitando-se a reafirmar a indissolubilidade do vínculo. (Art. 124. A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Às famílias numerosas serão atribuídas compensações na proporção dos seus encargos). A Constituição de 1946 manteve a supressão e reafirmou a indissolubilidade (Art. 163. A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado). A Constituição de 1967/1969 também não mencionou o desquite. Apenas com a Emenda Constitucional nº 9, de 1977, a separação judicial (antigo desquite) volta a ser mencionada na Constituição, agora como um requisito para o divórcio (Art. 175 […] § 1.º O casamento somente poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação judicial por mais de três anos).
Tanto as Constituições de 1967/1969 , como a de 1988, mencionaram a separação apenas quando quiseram restringir ou dificultar o divórcio, elegendo-a como um requisito, como um pressuposto, um condicionante prévio.
Ora, se a Constituição não disciplinava, nem sequer se referia à possibilidade de dissolução da sociedade conjugal (referindo-se apenas ora à indissolubilidade, ora à dissolução do casamento), poderemos concluir que tal procedimento desapareceu com a promulgação da emenda 66? Poderia a emenda haver “suprimido” aquilo que a Constituição não disciplinava?
Entendemos que não!
O raciocínio contrário nos levaria à conclusão, surreal, de que também a “separação de fato”, ela própria, teria sido suprimida pela alteração constitucional, uma vez que era mencionada, com a separação legal, e agora não o é mais.
Não olvidamos a possibilidade de um conflito implícito e virtual, sempre que exista uma incompatibilidade absoluta, não entre os textos normativos em sua literalidade, mas entre os princípios e valores subjacentes aos dispositivos normativos. Tampouco sob esse prisma vislumbramos um conflito ou contradição que imponha o afastamento total do procedimento da separação legal. Que valores ou princípios estariam em colisão? A Constituição emendada reafirma o princípio da dissolubilidade do casamento pelo divórcio, expurgando, isso sim, qualquer óbice que se pudesse opor à máxima efetividade e optimização desse princípio. Mas esse princípio não colide com a manutenção de um sistema dualista que permita, por um lado, a dissolução do casamento pelo divórcio, sem delongas, sem empecilhos formais ou materiais; e, por outro, a dissolução apenas da sociedade conjugal, desde que tal procedimento não seja colocado como um requisito, uma barreira, um freio ou mesmo um redutor do princípio da dissolubilidade.
Assim, no tocante aos dispositivos de lei ordinária que estabeleçam prazos ou requisitos para o divórcio, parece-nos inquestionáveis tanto o conflito com a regra como a colisão com o princípio da dissolubilidade do casamento, impondo-se o afastamento da lei ordinária, não subsistindo mais qualquer pré-requisito temporal para decretação do divórcio. A Constituição é clara: o casamento se dissolve pelo divórcio, independentemente de qualquer requisito ou condição preestabelecida na lei. Não havendo a Carta Magna estabelecido requisitos temporais (ou os havendo suprimido), não seria mais lícito à lei ordinária estabelecê-los.
Os atributos da supremacia e da força normativa da Constituição terão como consequência direta a derrogação do caput e do § 2.º do art. 1.580 do Código Civil, na parte referente ao prazo de separação judicial, nos casos de divórcio por conversão; e ao prazo de separação de fato, no divórcio direto. A partir de agora entendemos possível o divórcio por conversão, independentemente do prazo de separação legal, bem como o divórcio direto, independentemente do prazo de separação de fato.
Pelas mesmas, entendemos derrogados o § 1.º do art. 1.572 e o caput do art. 1.574, no que tange aos prazos de um ano de ruptura da vida em comum ou mais de um ano de casamento, para propositura da ação de separação judicial litigiosa ou consensual. Ora, se para a dissolução do casamento, que constitui fato de maior relevância para o Direito de Família, não se exige mais qualquer requisito temporal, seria uma contradição exigi-lo para a dissolução da sociedade conjugal. Aqui vale o velho adágio de que “quem pode o mais pode o menos”.
No tocante à Lei 11.441, alteração alguma se verificou, uma vez que o art. 1.124-A do CPC apenas remete aos prazos previstos na lei substantiva (observados os requisitos legais quanto aos prazos). Se foram suprimidos os requisitos de prazo, implica dizer que o divórcio extrajudicial pode ser decretado independentemente de comprovação de período anterior de separação, quer de fato ou de direito, e que a separação extrajudicial também não se vincula a qualquer tipo de prazo.
Todavia, no que tange à possibilidade de dissolução da sociedade conjugal pela separação judicial ou extrajudicial, como opção do casal, não vislumbramos qualquer conflito de regras ou colisão de princípios entre a legislação ordinária e a ordem constitucional superveniente, advinda a partir da EC 66.
Nada obsta que o casal, pelas mais variadas razões, opte, em manifestação de vontade autônoma, espontânea, livre e consciente, por postular a separação de direito, e não o divórcio. Trata-se de situação que, no futuro, talvez se torne rara, difícil de ocorrer na prática, mas que existe por previsão legislativa expressa, e, enquanto vigentes o Código Civil de 2002 e o Código de Processo Civil, com as alterações da Lei 11.441, não poderá ser obstada, quer pelo juiz, muito menos pelo tabelião, os quais, se assim o fizerem, estarão atuando contra legem.
Uma vez decretada a separação, será perfeitamente possível a sua conversão em divórcio, tal como previsto no art. 1.580 do CC/2002, dispensando-se, apenas, o requisito temporal.
Ressalte-se, enfim, que essa solução que estamos a propor, e que podemos chamar de “dualista opcional”, não constitui novidade alguma no direito comparado. Em Portugal, por exemplo, existe a previsão de divórcio e de separação judicial como procedimentos autônomos, podendo o casal optar por um ou por outro (art. 1.795º). O Código Civil português admite a conversão da separação em divórcio e enaltece a possibilidade de reconciliação como traço distintivo entre ambos. Destaque-se que esse sistema dualista foi mantido mesmo após a edição Lei 61, de 31.10.2008, que alterou os dispositivos do Código Civil referentes ao divórcio. Ou seja, os portugueses, na reformulação que fizeram no divórcio, mantiveram a separação judicial.
O sistema dualista opcional, que emerge da EC 66, harmoniza-se com o princípio da liberdade familiar, de fundo constitucional, na medida em que possibilita aos cônjuges a escolha entre dissolver logo o casamento, ou dissolver apenas a sociedade conjugal, por razões de conveniência pessoal, aí incluídas as questões religiosas e outras de foro íntimo, nas quais o Direito não deve se imiscuir.
Essa, portanto, foi a grande revolução da EC 66, e que merece, sem dúvida, ser comemorada. Possibilitar aos cônjuges o livre exercício de sua autonomia privada, optando entre a separação e o divórcio, sem ter que se submeter aos requisitos temporais pretéritos.
Assim, no sistema atualmente em vigor, quem contrair matrimônio hoje, e pretender romper a relação casamentária amanhã, poderá fazê-lo livremente, elegendo uma entre as duas alternativas possíveis: (i) dissolução simultânea do vínculo matrimonial e da sociedade conjugal pelo divórcio, ou (ii) dissolução apenas da sociedade conjugal pela separação legal. Em ambos os casos, poderão os cônjuges, igualmente, escolher entre valer-se ou não das vias judiciais, desde que inexistam filhos menores e o rompimento seja consensual.
Registre-se, finalmente, que estas conclusões parecem coincidir com a manifestação do CNJ – Conselho Nacional de Justiça, que no Pedido de Providências n.° 0005060-32.2010.2.00.0000, deliberou pela alteração da Resolução nº 35, no sentido de adaptá-la à EC 66, mantendo, expressamente, a possibilidade de lavratura de escrituras de separação extrajudicial, suprimindo, tão somente, os requisitos temporais[6].
Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP) e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).Atualmente é advogado em São Paulo, Brasilia e Pernambuco, Professor de Direito Civil na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na Escola Paulista de Direito (EPD), Diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo-IASP, Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFAM, Membro da Comissão de Acompanhamento Legislativo do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e Membro da Academia Brasileira de Direito Civil – ABDC.
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