Resumo: O artigo pretende refletir de maneira crítica e fundamentada sobre a recente decisão exarada pela ministra Nancy Andrighi, nos autos do REsp nº 992.749, da 3ª Turma do STJ. O Recurso Especial foi interposto contra acórdão exarado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul, que deferiu pedido de habilitação de viúva como herdeira necessária. A lide em comento destinava-se a definir se o cônjuge supérstite, que fora casado com o autor da herança sob o regime da separação total de bens (convencional), participaria – ou não é“ da sucessão em concorrência com os descendentes do falecido, na qualidade de herdeira necessária. Consoante destacado pela Min. Relatora, em seu voto, é de conhecimento geral a intensa controvérsia que tem sido gerada em torno da interpretação das novas regras de sucessão, notadamente a disposta na redação do art. 1829, I do CC/02. Com efeito, na data da convolação das núpcias, que teve duração de dez meses, o falecido padecia de doença incapacitante e já havia construção do todo seu patrimônio. Os contraentes escolheram, voluntariamente, realizar o casamento pelo regime da separação convencional, através de pacto antenupcial lavrado em escritura pública, com a incomunicabilidade de todos os bens adquiridos antes e depois do enlace conjugal, inclusive frutos e rendimentos. Por ocasião da análise do caso concreto, a Min. Relatora ressaltou que o regime de separação obrigatória de bens previsto no art. 1.829, I, do Código Civil de 2002, é gênero que agrega duas espécies: a separação legal e a separação convencional. Uma decorre da lei, enquanto a outra da vontade das partes, obrigando os cônjuges, uma vez estipulado o regime de separação de bens, a sua observância, tanto na vida quanto na morte. Não tem direito, portanto, o cônjuge casado sob o regime de separação de bens, a meação e, tampouco, a concorrência sucessória. Nesses dois casos, o cônjuge sobrevivente não é herdeiro necessário. Entendimento em sentido diverso geraria clara antinomia entre os artigos 1.829, I, e 1.687 do Código Civil de 2002, e o fim do regime de separação de bens.
Sumário: 1. Da Ordem de Vocação Hereditária. 2. Recurso Especial nº 992.749. 3. Conclusão: Análise crítica do Artigo 1829, I do CC/2002 á luz do REsp. nº 992.749 do Superior Tribunal de Justiça – STJ.
1. Da ordem de vocação hereditária
A ordem de vocação hereditária é uma seqüência preferencial que deve ser observada no caso de o autor da herança (de cujus) falecer ab intestato ou, mesmo tendo deixado testamento, no caso de possuir herdeiros necessários, situações em que, necessariamente, ocorrerá a sucessão legítima, ou seja, aquela decorrente da lei.
O Código Civil de 2002, dentre as muitas inovações observadas no tocante ao ramo do Direito das Sucessões, estabeleceu uma nova ordem de vocação hereditária, em seu artigo 1829, inovando em três pontos primordiais: 1º) a inserção do cônjuge no rol dos herdeiros necessários, passando a herdar em concorrência com as demais classes (descendentes e ascendentes) que o precedem; 2º) a exclusão dos entes estatais do rol dos herdeiros legítimos. Com a nova sistemática legal esses só recolhem a herança após a verificação do seu respectivo estado de jacência e posterior conversão em patrimônio vago; 3º) ausência de previsão de direito real de usufruto ao cônjuge supérstite, conseqüência lógica de sua possível concorrência com os descendentes (dependendo do regime de bens estabelecidos no casamento) e de sua concorrência certa com a classe dos ascendentes.
Vejamos referido artigo:
“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.”
Na sucessão legítima, consoante já explicitado, a convocação dos sucessores faz-se segundo essa ordem tida como “preferencial”, de tal forma que uma classe só é chamada quando não existem herdeiros da classe precedente, ressalvado, entretanto, a concorrência sucessória do cônjuge supérstite com os demais herdeiros.
Dessa forma, dúvidas não existem de que o Código Civil de 2002 beneficiou o cônjuge sobrevivente do falecido casado, vez que o diploma legal que o antecedeu (CC de 1916) não continha nenhuma previsão acerca da concorrência sucessória do mesmo frente aos descendentes e ascendentes do morto, bem como pelo fato de que o cônjuge sequer compunha o rol dos herdeiros necessários, como ocorre atualmente.
Assim, caso o falecido fosse casado, o cônjuge sobrevivente, que compõe a terceira classe, concorrerá tanto com os descendentes, quanto com os ascendentes, observadas as exceções contidas no inciso I, do artigo 1829. Finalmente, no caso de não haver nenhuma dessas duas classes acima citadas (descendentes e ascendentes), o cônjuge – necessariamente – herdará pelo menos a metade do acervo hereditário do “de cujus” (a legítima – art. 1846 CC) e, caso o falecimento tenha ocorrido “ab intestato”, herdará em sua totalidade, na qualidade de único herdeiro, portanto, universal.
De acordo com as exceções contidas no inciso I do referido artigo, o cônjuge sobrevivente não concorre com os descendentes se foi casado na comunhão universal ou no da separação obrigatória de bens. Também não haverá concorrência no caso do regime da comunhão parcial, se o autor da herança não tiver deixado bens particulares. Sendo assim, fácil concluir que a existência da concorrência sucessória entre os descendentes e o cônjuge do falecido depende do regime de bens do casamento. Já no tocante à concorrência do cônjuge com os ascendentes (2ª classe na ordem de vocação hereditária), essa sempre é observada, variando o montante conforme o número de ascendentes e graus respectivos, na forma do artigo 1837 do CC/2002.
2. Recurso Especial nº 992.749
Na esteira do esposado acima, foi o Superior Tribunal de Justiça – STJ instado a se manifestar acerca de um ponto crucial envolvendo o direito de concorrência do cônjuge sobrevivente, nos autos do REsp nº 992.749, da 3ª Turma do STJ, cuja relatoria coube à Ministra Nancy Andrighi.
O Recurso Especial foi interposto contra acórdão exarado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul, que deferiu pedido de habilitação de viúva como herdeira necessária. A lide em comento destinava-se a definir se o cônjuge supérstite, que fora casado com o autor da herança sob o regime da separação total de bens (convencional), participaria – ou não – da sucessão em concorrência com os descendentes do falecido, na qualidade de herdeira necessária. Consoante destacado pela Min. Relatora, em seu voto, é de conhecimento geral a intensa controvérsia que tem sido gerada em torno da interpretação das novas regras de sucessão, notadamente a disposta na redação do art. 1829, I do CC/02.
Com efeito, na data da convolação das núpcias, que teve duração de dez meses, o falecido padecia de doença incapacitante e já havia construído todo seu patrimônio. Os contraentes escolheram, voluntariamente, realizar o casamento pelo regime da separação convencional, através de pacto antenupcial lavrado em escritura pública, com a incomunicabilidade de todos os bens adquiridos antes e depois do enlace conjugal, inclusive frutos e rendimentos.
Por ocasião da análise do caso concreto, a Min. Relatora ressaltou que o regime de separação obrigatória de bens previsto no art. 1.829, I, do Código Civil de 2002, é gênero que agrega duas espécies: a separação legal e a separação convencional. Uma decorre da lei, enquanto a outra da vontade das partes, obrigando os cônjuges, uma vez estipulado o regime de separação de bens, à sua observância, tanto na vida quanto na morte. Não tem direito, portanto, o cônjuge casado sob o regime de separação de bens, à meação e, tampouco, à concorrência sucessória. Nesses dois casos, o cônjuge sobrevivente não é herdeiro necessário. Entendimento em sentido diverso geraria clara antinomia entre os artigos 1.829, I, e 1.687 do Código Civil de 2002, e o fim do regime de separação de bens.
Assim, o regime de separação de bens fixado por livre vontade entre a recorrida (cônjuge sobrevivente) e o falecido está contemplado nas restrições previstas no art. 1.829, I, do Código Civil, em interpretação combinada com o art. 1.687 também do CC/2002, o que retira da viúva a condição de herdeira necessária do falecido em concorrência com os recorrentes.
Nesse mesmo sentido, o que foi devidamente observado no voto constante do relatório, entendeu o Professor Miguel Reale,[1] nesses termos:
“[…] duas são as hipóteses de separação obrigatória: uma delas é a prevista no parágrafo único do art. 1.641, abrangendo vários casos; a outra resulta da estipulação feita pelos nubentes, antes do casamento, optando pela separação de bens. A obrigatoriedade da separação de bens é uma conseqüência necessária do pacto concluído pelos nubentes, não sendo a expressão ‘separação obrigatória’ aplicável somente nos casos relacionados no parágrafo único do art. 1.641.”
Foi ressaltado, ainda, que a regra que prevê o direito sucessório de concorrência ao cônjuge supérstite não se aplica aqueles que decidiram possuir núcleos patrimoniais totalmente distintos, sob pena de violação ao art. 1687 do CC/02, notadamente quando tal incomunicabilidade for resultante de convenção voluntária firmada pelos nubentes antes das núpcias.
Ora, é fundamental o respeito e a observância estrita à livre manifestação de vontade dos nubentes, consignada no pacto antenupcial, vez que este possui força normativa e é dotado de publicidade e eficácia oponível perante terceiros. Pensar em sentido contrário seria desprezar o princípio da autonomia da vontade, contrariando a vontade das partes que, ao escolherem o regime de bens através de um instrumento solene (escritura pública), sabiam exatamente o que estavam fazendo. Nas palavras na Ministra Nancy Andrighi:
“Não há como violentar a vontade do cônjuge – o mais grave – após sua morte, concedendo a herança ao sobrevivente com quem ele nunca quis dividir nada, nem em vida. Haveria, induvidosamente, em tais situações, a alteração do regime matrimonial de bens post mortem, ou seja, com o fim do casamento pela morte de um dos cônjuges, seria alterado o regime de separação convencional de bens pactuado em vida, permitindo ao cônjuge sobrevivente o recebimento de bens de exclusiva propriedade do autor da herança, patrimônio ao qual recusou, quando do pacto antenupcial, por vontade própria”.
Por fim, foi invocada a boa fé objetiva, como sendo um postulado básico inserido de forma expressa pelo advento da novel legislação civil, corporificando-se na exigência de lealdade e honestidade na conduta das partes.
Nesse ponto, ressaltamos que o postulado da boa fé objetiva impõe diretrizes às ações ocorridas no intenso tráfico de negócios ocorridos cotidianamente, sendo, diante do caso concreto posto sob análise, qualificada como aquela que impede que o cônjuge que firmou pacto antenupcial em determinado sentido, de forma livre e lícita, possa se furtar ao cumprimento da avença e, após a morte do outro, reivindicar um direito ao qual de forma solene havia declinado em momento anterior, uma vez que no processo de habilitação para o casamento, durante a feitura do pacto antenupcial (por escritura pública) – em consenso com o autor da herança – houve a opção pelo regime da separação convencional de bens.
Com efeito, a vida do casal rege-se por diversos postulados constitucionais, dentre eles o princípio da exclusividade, que veda interferências indevidas de terceiros, e até mesmo do próprio Estado, nas opções feitas de maneira lícita pelos consortes, no exercício de seu planejamento familiar.
Outro não foi o fundamento da aprovação da recente reforma constitucional, realizada através da EC nº 66, mais conhecida como “Emenda do Divórcio” que visou, nas palavras de Pablo Stolze,[2] “permitir a obtenção menos burocrática da dissolução do casamento, facultando, assim, que outros arranjos familiares fossem formados, na perspectiva da felicidade de cada um”. Buscou-se, em outras palavras, diminuir a influência legislativa estatal sob os arranjos familiares.
Isso só confirma que esta é a única interpretação cabível do art. 1829, I do CC/2002, em interpretação sistemática com o art. 1687 do mesmo diploma legal, no sentido de não ser o cônjuge casado sob o regime da separação total (convencional) de bens herdeiro necessário do autor da herança, em concorrência com os descendentes daquele.
3. Conclusão
De antemão, faz-se necessário clarificar a posição de concordância que se adota com o relatório do Recurso Especial ora examinado, no sentido de não se admitir o direito de concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes, quando o de cujus havia contraído matrimônio sob o regime de separação convencional de bens.
Defende-se essa posição por acreditar-se que a melhor interpretação da lei é aquela através do qual há a valorização efetiva da vontade das partes no que tange à escolha dos cônjuges pelo regime patrimonial da separação de bens. Assim, necessária se faz a observância dessa opção tanto na vida, quanto na morte dos cônjuges, mantendo-se intacta a autonomia privada das relações conjugais, que se rege pelo princípio da “autodeterminação”.
Sendo assim, o caput do artigo 1.829 do Código Civil estabelece a ordem de vocação hereditária, identificando, em seus incisos, os direitos dos herdeiros necessários, estabelecidos no artigo 1.845 do CC, e dos herdeiros legítimos, colaterais até o 4º grau. Esse mesmo artigo, em seu inciso I, assegura o direito sucessório dos descendentes, concedendo, no entanto, ao cônjuge sobrevivente, uma parte da herança.
O artigo que elege os sucessores de primeiro grau e consagra o direito de concorrer já estabelece as exceções ao benefício da concorrência do cônjuge com os descendentes. As causas de afastamento do direito estão condicionadas ao regime de bens do casamento, ou seja, o legislador, após a consagração expressa do instituto da concorrência, abre exceções, identificando os regimes de bens que levam à exclusão do direito.
Antes, porém, são apontados, de forma conjunta, os dois regimes de bens que afastam a concorrência, quais sejam: o da separação obrigatória (que, consoante já analisado em momento anterior desse estudo, engloba a separação legal e a convencional) e o regime de comunhão universal. Por fim, a lei se refere ao regime de comunhão parcial de bens e, por meio de uma condicionante, identifica a variante que autoriza a concorrência, qual seja, o fato do autor da herança não ter deixado bens particulares.
Explica-se o acima disposto: a espécie de regime de bens intitulada no art. 1829, I, do novel Código Civil como “separação obrigatória” é gênero que engloba duas espécies: a) a separação legal de bens, decorrente de disposição legislativa expressa inserta no art. 1641 do CC/02 e; b) a separação convencional, advinda da vontade livre e inequívoca das partes, formalizada em um pacto antenupcial solenemente produzido por meio de escritura pública, com previsão no artigo 1687 do CCB. Ambas obrigam os cônjuges, não remanescendo, portanto, direito à meação, salvo previsão em sentido contrário constante no pacto antenupcial, podendo o mesmo ser dito com relação à concorrência sucessória, tudo em respeito à estipulação do regime de bens adotados pelos nubentes.
Assim, o cônjuge supérstite (viúvo) não deve ser alçado à condição de herdeiro necessário, concorrendo com os descendentes do autor da herança, pois, dessa forma, estar-se-ia violando o regime de bens pactuado entre os consortes por ocasião das núpcias (ou em momento posterior, levando-se em consideração o princípio da mutabilidade motivada do regime de bens).
Ora, se os cônjuges não adotaram qualquer providência legal como a alteração do regime estipulado quando do casamento (art. 1.639, §2º do CC), ou a doação de um cônjuge ao outro durante a constância do matrimônio, ou, ainda, o uso de testamento beneficiando o cônjuge sobrevivente com a metade disponível (ou parte dela), resta concluído que se assim não foi desejado em vida, não há, portanto, razão para ser diferente o tratamento para depois da morte.
Como bem salientou a relatoria do Recurso Especial em análise, entendimento em sentido contrário “suscitaria clara antinomia entre os artigos 1.829, inc. I, e 1.687, do CC/02, o que geraria uma quebra da unidade sistemática da lei codificada, e provocaria a morte do regime de separação de bens. Por isso, entre uma interpretação que torna ausente de significado o art. 1.687 do CC/02, e outra que conjuga e torna complementares os citados dispositivos, não é crível que seja conferida preferência à primeira solução”.
Como já decidido pela própria 3ª Turma daquele Colendo Superior Tribunal de Justiça, o regime matrimonial de bens possui viés balizador no que diz respeito ao direito sucessório, atuando como elemento direcionador do direito de herança concorrente do cônjuge, sendo o regramento sucessório de suma importância, “enquanto complexo de ordem pública, em virtude de seus reflexos no organismo familiar e no âmbito social, que vão além do simples direito individual à pertença de bens” (RMS 22.684/RJ).
Em ocorrendo a aceitação da concorrência do cônjuge casado sob o regime de separação convencional com os descendentes do autor da herança, estar-se-ia admitindo, sem dúvida, alteração do regime matrimonial de bens após a morte de um dos consortes. Assim, o regime de bens pactuado ente os nubentes em vida, seria desprezado após a morte de um dos partícipes da relação matrimonial, permitindo ao consorte sobrevivente o recebimento de bens particulares do autor da herança, o qual, anteriormente, havia sido recusado. Desse modo, estar-se-ia burlando o desejo da lei e das partes de não haver a comunicação dos bens entre os cônjuges.
Defensora Pública do Estado do Ceará, Mestre em Direito Público, Presidente da Comissão de Acesso à Justiça da OAB/CE e professora da Universidade de Fortaleza – UNIFOR
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