A história do poder punitivo é rude,
pois é capaz de suprimir a liberdade e, em alguns casos até mesmo a própria
vida. (Gisele Leite)
Com a velocidade estonteante da
divulgação através dos meios de comunicação, dá-se a formação da opinião
pública sobre os mais diversos assuntos, e, entre eles, os crimes que causam
impacto e polêmica no seio da sociedade brasileira.
O direito, sem dúvida, não é mais
assunto restrito de juristas e doutos.E nem reside no restrito circuito
acadêmico.
O cidadão comum cada vez mais tenta
engajar-se dentro do contexto dos fatos que envolvem crimes, decisões
judiciais, decisões governamentais que infalivelmente irão influenciar direitos
e deveres.
Longe já caminha o tempo, em que os
conteúdos das decisões judiciais se revestiam de um teor exacerbadamente
erudito, rebuscado e, por vezes até, ininteligíveis. É curial que os juristas
expliquem e muito bem o que é o direito, e, afinal para que serve.
Embora de difícil definição em que
pese as mais relevantes e memoráveis opiniões doutrinárias, a finalidade do
Direito se revigora sempre em garantir a sobrevivência do homem no seio da
sociedade, enfatizando mais e mais a função social dos valores jurídicos e
quiçá da própria ciência jurídica.
É assaz importante que cada vez mais
haja um número maior de pessoas que bem conheçam seus direitos principais que
são aqueles que representam as garantias individuais e, estão presentes na
Constituição Federativa Brasileira.
A história do direito processual
penal no Brasil retrata o enredo de liberdade e de punição e passa por diversas
óticas as questões penais onde há sempre o homem como sujeito.
A história do poder punitivo é rude,
pois é capaz de suprimir a liberdade e, em alguns casos até mesmo a própria
vida. Como foi caso, por exemplo, de Tiradentes,
Frei Caneca, entre outros mais anônimos, porém, não menos mortais.
O direito processual diferentemente
do direito penal que se preocupa em definir os crimes e atribuir-lhe pena. É
aquele que regulamenta o modo como é demonstrada a verdade sobre o fato típico
e, ainda da responsabilidade criminal.
E, ainda trata o modo pelo qual a
decisão judicial deve resolver o conflito entre o interesse de punir e o
interesse de liberdade que nasce com o crime.
É o ramo do direito que informa
quando, por que e de que forma uma pessoa pode ser presa. Outro significado é o
referente ao processo como instrumento concreto, e que corresponde ao conjunto
dos atos praticados em direção a direção. Processo é, pois o método de compor a
lide penal que possui peculiaridades cruciais quer para o mundo jurídico quer
para a sociedade.
O método para a pesquisa da verdade
criminal não se baseia na brochura estética em que traduz o processo, ao que
chamamos vulgarmente de autos. E na minha modesta opinião deveriam ser
baixos… Enfim, o processo penal é meio pelo qual o juiz vai ver a verdade e,
decidir se alguém é culpado ou inocente.
É o Estado o titular do direito de
punir ou “jus puniendi”. Tendo em
vista que o crime não lesa tão-somente direitos individuais, mas sobretudo
sociais também e perturba as condições de harmonia e de estabilidade, no dizer
Magalhães Noronha.
Adiante o doutrinador ainda
assevera: “Mas incumbe ao Estado que é um meio e não um fim a consecução do bem
comum, que não conseguiria alcançar se não estivesse revestido do jus puniendi, do direito de punir o
crime, que é o fato mais grave que o empece na consecução daquela finalidade”.
É curial que jus puniendi é limitado
e nas sociedades civilizadas vige geralmente o princípio da reserva legal Nullum crimen, nulla poena sine lege que
limita o direito de punir.
Mesmo diante de gravame delito, não
se pode discricionariamente aplicar a sanção que só é cabível mediante processo
regular e julgamento, pois a ação penal atinge fatalmente o status libertatis do indivíduo, daí: Nulla poena sine judicio.
Deve o Estado além de ter o direito
de punir, dispor de outro direito que vai realizar aquele que é o jus persequendi ou jus persecutionis (direito de ação) que de certa forma materializa
e cristaliza o jus puniendi.
O jus persecutionis só se realiza através de normas preestabelecidas forma dat esse rei, que é a forma que dá
o ser ao direito. Enfim este direito é exarado na sentença que cumpre sua
missão de dirimir o conflito entre o crime e o direito de liberdade do acusado.
O processo tal como o procedimento,
enquanto um é método, outro é ritmo, se traduz em um conjunto de atos
legalmente ordenados para apuração do fato, da autoria e exata aplicação da
lei. O fim é este: a descoberta da verdade, o meio.
De Marsico conceitua processo penal dizendo: ”O direito processual
penal estuda o conjunto das normas ditadas pela lei, para aplicação do direito
penal na esfera judiciária, tendo por fim não só a apuração do delito e a
atuação do direito estatal de punir em relação ao réu, mas também a aplicação
das medidas de segurança adequadas às pessoas socialmente perigosas e a
decisões sobre as ações conexas à penal…”.
Nem todos os doutrinadores preferem
a expressão direito processual penal, há quem prefira direito judiciário penal
como faz Vicente de Azevedo.
Apesar da tentativa de serem
sinônimas coisas que em vernáculo pátrio é quase que impraticável, esclarece
sabiamente João Mendes; “O direito
judiciário é o complexo de princípios e leis que regem a atividade do poder
judiciário e dos auxiliares, na administração da justiça” acrescenta que o
Direito Judiciário “abrange o processo e muito mais: abrange princípios como
ciência, e leis sobre as ações; princípios e leis sobre as provas; princípios
relativos ao processo.”.
Há de se salientar que a defesa do
acusado e a regularização de um julgamento idôneo e justo é um grande conquista
da humanidade. Mesmo ante a confissão é curial o processo penal para que se
possa apurar a culpa do réu, e, para isto, é imprescindível a presença de um julgado
imparcial para que se atue em busca da justiça.
A vingança pessoal não é mais
admitida em nosso sistema jurídico, atualmente só o Estado está autorizado a
punir e, assim mesmo através de um devido processo legal e culminar a sua
decisão por meio da sentença do juiz.
Em Roma Antiga havia apenas duas infrações que instigavam a
perseguição pública (crimina), perduellio
(traição e atentado contra a segurança do Estado) e parricidium (morte do pater
do chefe do grupo) e, ambas atingiam o governo.
As demais infrações, entre as quais
o furto e as ofensas físicas ou morais eram puni d as pela própria vítima que
então assumia a vingança.
Mas as vinganças foram implacáveis,
e as injustiças eram toda praticadas com cada vez maior freqüência gerando um
perigoso círculo vicioso.
Na Idade Média não havia aplicação
centralizada da justiça, só com o direito canônico e, mais tarde, com o Estado
absoluto cristalizou-se o monopólio dos meios de coerção.
Brasil enquanto colônia lusitana
herdou um sistema jurídico já estabelecido em Portugal onde vigiam inicialmente
em 1521 as Ordenações Afonsinas. Aplicadas efetivamente foram as Ordenações
Filipinas a partir de 1603.
As Ordenações do Reino eram
compilações das leis de Portugal e fundamentavam a estrutura judiciária do Ancien regime. Reproduziam as regras do
direito canônico. Por muito tempo coexistiram as normas canônicas ao lado das
normas do poder secular.
O Código Afonsino foi o primeiro de
todos e foi em sua época avançadíssimo e regulamentava assuntos da
administração do estado e representava bem o ideal de centralização do poder.
Outro dado interessante é que em todas
Ordenações Portuguesas o Livro V (quinto) era dedicado aos
delitos e às penas, ou seja, à matéria criminal.
Para se imaginar com a máquina
judiciária funcionava na época basta ler o romance de Ana Miranda, “Boca do
inferno” (Companhia das Letras) que tem como personagens Gregório de Matos e o Padre
Vieira envolvidos no assassinato de alcaide-mor Francisco de Teles de
Menezes, na Bahia, na segunda metade do século XVII que teve inúmeras
implicações políticas.
A então chamada ”devassa”, ou seja,
a investigação realizada pela autoridade para descoberta de crimes, bem resume
a situação política do Brasil colonial do século XVII, “havia uma conjuntura
sombria e arrasada onde vigiam princípios misturados de origens romanas,
canônicas, num entrelaçar bárbaro-cristão terrivelmente conflitante”.
A noção do direito variava entre
regras de viver e a definição do pecado também. Ana Miranda logo avisa em sua
obra que a Portugal não convinha que houvesse na Colônia letrados, de sorte que
para ser advogado eram necessários oito anos de estudos em Coimbra.
Outro caso também homérico que nos
pode ser útil para entender o processo penal, é por meio de Tiradentes que fora
acusado de lesa-majestade e condenado à força em 1792.
Várias devassas instauram-se em Vila Rica e Rio de
Janeiro e, então, Lisboa enviou para cá um tribunal para o julgamento. Entre
12(doze) condenados à morte apenas Tiradentes foi levado à execução. Não obstante
enforcado, esquartejaram-lhe o corpo e ainda o ofertaram à apreciação exemplar do
público.
Naquela época, as Ordenações
Filipinas ditavam as regras penais e processuais no Brasil, e todas as penas
eram cruéis, e a pena capital poderia ser por enforcamento, por fogo, precedida
de longos tormentos.
Penaliza-se ainda por açoites,
confiscação de bens, (degredo para África ou Índia) marcas infamantes, serviços
nas galés (trabalho forçado). Todas as normas repressivas eram implacavelmente
atrozes.
Aliás, utilizava-se de métodos
torturantes quando havia provas contra pessoa que insistia em negar sua culpa.
Tais contundentes meios serviam para extrair a confissão da pessoa que insistia
em negar sua culpa e, esta, na qualidade de regina probatorum, era suficiente para arrostar
um condenação , se repetida em juízo, em lugar diverso daquele em que as
torturas tivessem sido praticadas e quando as dor estivesse passado.
Tais eram as medidas para que a
confissão fosse tida como verdadeira. Fidalgos, juízes, doutores em cânones,
leis e medicina e membros do alto clero não eram submetidos aos tormentos, na
maioria dos casos. Porém, tal exceção não se aplicava ao crime de
lesa-majestade, falsidade, moeda falsa, feitiçaria, sodomia e furto.
Com a vinda da família real para o
Brasil após 1808, a
edição das normas passou a ser feita aqui, constituíam os alvarás e decretos,
onde se concedia perdão e se comutavam as penas.
O crime de heresia era conhecido
pelos juízes eclesiásticos, mas a Igreja mão executava as penas impostas conforme
previa o código filipino.
A igreja foi uma poderosa
instituição que sobreviveu à época medieval, adotando e transmitindo desde a
Antiguidade, a organização hierárquica e centralizada, efetivamente
burocrática, conseguindo impor seu poder mesmo ante as estruturas frágeis e
fragmentadas.
A Igreja reconhecidamente um poder
supranacional, bem acima das coroas e dos privilégios nobiliásticos. Durante a
Alta Idade Média (1050-1300) papas dotados de personalidade peculiar eram
apoiados pelo entusiasmo popular e exerciam seu poder que fora mais fortalecido
com as cruzadas.
Interessante notar que no século
XII, os papas passaram a ser coroados com barrete e a tiara de ouro aderindo
francamente à simbologia da monarquia.
Como jurista mereceu amplo destaque
o papa Inocêncio III (1198-1216) que
estudou direito em Bolonha e elaborou formas para o início do procedimento
criminal. A inquisição era a investigação realizada pelo próprio juiz diante da
notoriedade do crime.
Inocêncio
III no quarto Concílio de Latrão traçou
a imprescindibilidade do processo escrito, o que representou uma importante
conquista dentro da história do processo criminal.
O papa Gregório IX(1227-41) compilou normas jurídicas em Decretais, bem
elaboradas serviram de método que fora acolhido pelas Ordenações Afonsinas.
A Igreja inicialmente era coerente
com os preceitos do cristianismo antes de se iniciar a perseguição de heresias
e heréticos.
Havia a preocupação com o indivíduo,
com sua dignidade, tendo-se proibido as ordálias e os juízos de deus (quer correspondiam
aos modos de resolução de conflitos por resistência física em provas e em
duelos).
O próprio Gregório IX o das célebres
Decretais instituiu a Inquisição papal em 1231 trazendo para o direito canônico
a pena de queima de hereges (já anteriormente adotada pelo poder secular).
O direito canônico era compilado
para ser aplicado somente aos membros da Igreja, mas Bonifácio VIII que se
tornou papa em 1294 deu maior abrangência à forma de inquirição idealizada por
Inocêncio III e, a partir de então, iniciou-se o caminho para que a Santa
Inquisição controlasse o Ocidente e suas respectivas colônias por cerca de três
séculos.
O Tribunal de Inquisição do Santo
Ofício estabeleceu-se em 1536 em Portugal estando vinculado ao rei e, então
coexistiam o juízo secular e o juízo eclesiástico.
As vezes aconteciam que o mesmo
delito, como, por exemplo, a bigamia estivesse submetida às três esferas
diferentes de aplicação de justiça, não obstante tais competências acolhessem
regras jurídicas, muitas vezes análogas e semelhantes.
No Brasil não se instalou
propriamente o Tribunal do Santo Ofício e nem mesmo ocorreram os autos-de-fé
que eram espetáculos montados para que o povo presenciasse a queima dos
condenados pela Santa Inquisição.
Mesmo assim se fez presente a Santa
Inquisição no Brasil através dos enviados de Portugal e pela remessa de nossos
processados a Lisboa. Bispos aqui tiveram também a função inquisitorial embora
não fosse do Santo Ofício.
Ocorreram várias visitações de Santo
Ofício e, quando aqui chegavam se submetiam as autoridades civis locais. Na
época, se preocupava em reprimir o judaísmo, as heresias e os delitos sexuais
(como a bigamia e a sodomia).
Mesmo quando cessaram as visitações,
a partir do século XVII, o santo Ofício consolidou com seus emissários
espalhados pelas colônias continuando a reprimir os crimes de heresia e outros.
Ronaldo Vainfas relata que com a
chegada do inquisitor, eram afixados editais da fé nas portas das igrejas, e
eram lidos aos domingos. Objetivavam convocar as pessoas a confessarem seus
pecados e faltas e a delatarem umas as outras. Enumerava também quais delitos
deveriam ser comunicados, para incentivar a reflexão.
O tempo da Graça era o período de
trinta dias que o visitador concedia para que ocorressem as confissões
espontâneas. Se feitas nesse prazo não acarretariam penas corporais, foi tal
método muito utilizado pelo inquisitor Heitor Furtado em 1591 na Bahia.
As visitações do Santo ofício
distinguiam-se das diocesanas (da Igreja) que eram mais simplificadas e pedagógicas.
Embora a Inquisição fosse subordinada ao rei, e, não aos bispos, como estava o
tribunal eclesiástico, os propósitos de ambos eram os mesmos e os quadros do
Santo Ofício foram preenchidos por membros do clero. A Igreja colaborou
decididamente com a Inquisição.
Os métodos da Santa Inquisição em
todos os lugares onde passou sempre foram os mesmos: segredo das apurações,
acolhimento de notícias imprecisas de atos proibidos, a confissão como prova
máxima e geralmente obtida mediante tortura.
O que atualmente é considerado
degradante, cruel e desumano todavia, naquela época revelava-se apenas como um
procedimento burocrático normal na Justiça do Antigo Regime.
Também em Portugal se utilizava a
tortura como método, a partir das Ordenações Manuelinas, bem antes do advento
da Inquisição (E não se fazia diferente no Brasil colônia.).
É um clássico exemplo sobre os
métodos de inquisidores de Nicolau
Emérico, escrito em 1320. Tais regras do direito canônico bem elucidavam o
significado da investigação criminal.
Muito do atual e vigente sistema
investigatório criminal teve enfim sua gênese na forma com a qual a Igreja
apurava os atos que ofendiam os preceitos da fé. Eram métodos burocraticamente
aplicados, pois a Igreja, como se constatou, resistiu muito tempo, e,
particularmente à Idade das Trevas (a idade média) em razão de sua apurada
organização institucional.
Michel
Foucault em sua obra “A verdade e
as formas jurídicas” esclareceu o motivo pelo qual o procedimento de inquirição
de faltas e crimes, adotado pela Igreja nas visitas que os bispos realizavam as
dioceses e que significa uma forma de saber-poder.
O inquérito serviria para dar
autenticidade ao que seria, a partir da investigação, considerado como uma
forma legítima de saber-poder. Até hoje em dia, permanece o inquérito como a
forma adotada para a investigação de crime e autoria.
Somente após a Independência do
Brasil ocorrida em 1822, houve a possibilidade do Brasil formar ordenamento
penal e processual penal próprio. A consciência nacional inspirada pelas
dificuldades sociais e econômicas e ainda por ideais humanistas revolucionários
vindo da Europa e da América do norte estava em livre trâmite nos meios
intelectuais e de políticos no Brasil.
Acreditava-se na liberdade como um
estado a salvo do controle esmagador do Estado sobre as condutas individuais.
Frei Caneca (condenado à morte por fuzilamento por participar na Confederação
do Equador em 1824) e Cipriano Barata (jornalista que lutou pela emancipação
brasileira e pela real autonomia após independência) acreditaram nessa
concepção de liberdade que valorizava a lei como o único limite para o agir
humano.
Em 1791, já havia a Declaração
universal dos direitos do homem e do cidadão inaugurando o regime
liberal-individualista, e os periódicos não cansavam de divulgar os novos
ideais de liberdade e igualdade.
Cesare
Beccaria também havia publicado
seu famoso livro Dos delitos e das penas discutindo e questionando todos os
métodos judiciários do Antigo Regime. Aliás, na Itália ele, Pietro Ferri entre
outros intelectuais iluministas publicavam o periódico Il Caffe que servia para criticar o desumano sistema repressivo
vigente.
No Brasil também circulavam os
folhetos e panfletos a divulgar as idéias iluministas e humanistas, destacando
a discussão sobre a liberdade. A liberdade de expressão já era bem considerada,
e em 1821 promulgou-se a lei sobre a liberdade de imprensa.
Neste contexto, surgiu a
Constituição Brasileira de 1824 outorgada por D.Pedro I e que estabeleceu no
art. 179 direitos civis e políticos apesar de bastante liberal no tocante os
direitos individuais, dispunha com precisão sobre as possibilidades de
restrição à liberdade. Apresentava, também, o que se denomina princípio da
legalidade, estabelecendo que “nenhum cidadão pode ser obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei” (art.179, 1º.) E
acrescentava: “que nenhuma lei será estabelecida sem utilidade pública”.
Todavia, a Carta Magna do Imperador
destinava-se aos poucos brancos e mestiços que eram eleitores. Os escravos
permaneciam excluídos das novas disposições, pois não eram considerados
cidadãos. Somente os descendentes de escravos libertos poderiam votar, se
financeiramente preparados, já que o voto era censitário. Nem mesmo os
alforriados eram considerados cidadãos brasileiros. No Rio de Janeiro, em 1821
uma importante pesquisa revela que 46 % da população era de escravos.
Assim o arremedo de cidadania
brasileira se revelava superficial e apesar de liberal a Constituição Imperial
era imposta e continha terríveis paradoxos como o fato de a lei ser igual para
todos apesar de consentir a escravidão, excluindo os escravos da cidadania.
Apesar disto, os direitos e garantias então estabelecidos inicialmente seriam
bastante valiosos para o desenvolvimento do ordenamento jurídico brasileiro.
A Carta outorgada no Brasil aboliu
açoites, torturas, marcas de ferro quente e outras penas cruéis. Recomendou que
as cadeias deveriam ser limpas, seguras e arejadas. Ainda perdurava a pena de
morte. Quanto à escravidão esta seria problema a ser tratado pelo direito civil
por se tratar de propriedade patrimonial.
Ressalte-se que no que tange aos
escravos, não logrou êxito em proibir as punições corporais. Na verdade, os
escravos vivam uma difícil transição em ser coisa e gente ao mesmo tempo para o
direito.
No Brasil, já naquela época vigia a
dificuldade de concretização das normas escritas e ainda uma ideal de repressão
penal que jamais fora executado.
As Ordenações Filipinas continuariam
vigentes toda vez que não contrariasse os preceitos constitucionais até vir a
ser editado um novo Código Processo Criminal em 1832 cuja elaboração já tinha
sido determinada no texto constitucional.
Permaneceu indefinido o sistema
penal brasileiro até 1830, com a edição do Código Criminal do Império, e, logo
após o Código de Processo Criminal.
As prisões eram locais tenebrosos, o
calabouço era horroroso e destinado a açoites, prisão e guarda de escravos. E
havia ainda algo pior que era o Aljube que era a prisão para escravos e
não-escravos. Os presos detidos em condições desumanas muitos nem haviam sequer
sido julgados ou condenados.
Os crimes não estavam nitidamente
definidos bem como as penas a serem aplicadas que apenas seguiam o livre pensar
do magistrado. As normas proibindo condutas podiam ser editadas por autoridades
administrativas ou judiciais.
Em boa hora o Código Criminal veio a
solucionar tais nebulosidades quanto à definição dos tipos penais e a gradação
das penais apesar de manter a pena capital por enforcamento, assim como as
galés, trabalho forçado. Os açoites como pena corporal fica reservado aos
escravos e não poderiam exceder a mais de 50(cinqüenta) por dia.
O Código Criminal ainda previa que
para escravos condenados à pena diversa das de morte e galés, a punição
aconteceria por açoites, em número determinado pelo juiz. Após bem dadas às
surras, o escravo seria devolvido ao seu senhor, que deveria ainda mantê-lo
acorrentado a um ferro por tempo determinado pelo juiz criminal.
O primeiro Código de processo penal
brasileiro foi o de 1832 e denominava-se Código de Processo Criminal de
Primeira Instância, foi liberal e oferecia muitas garantias de defesa aos
acusados. Valorizava os juízes, conferindo-lhes funções importantes. Havia, na
época, além dos juízes de direito, juízes de paz que exerciam atribuições
policiais e eram eleitos.
O Código de Processo Criminal
seguindo o código Criminal distinguia os modos de proceder para os crimes
públicos e para os particulares. Os primeiros davam causam à ação penal
promovida pelo promotor público ou por qualquer cidadão (quando cabível a ação
penal popular), entre eles estavam incluídos os crimes políticos.
Já os crimes contra os particulares
conferiam ao ofendido a possibilidade de promover a ação penal, até mesmo o
homicídio eram considerado particular, pois ofendia a segurança individual.
A relevante distinção se faz curial
até hoje, pois as legislações variam conforme os poderes que possuem os
ofendidos no processo criminal. Também quem não fosse a vítima poderia
igualmente promover a ação penal, quando o crime fosse público, tal era a ação
penal popular que hoje não mais existe.
Em verdade, ainda existe uma única
hipótese em que qualquer cidadão pode acusar: quando for crime de
responsabilidade cometido pelo Presidente da república ou por ministro (art. 14
da Lei 1.079/50) que deverá ser feito perante a Câmara dos Deputados.
A ação penal é conceito técnico
jurídico e que pode ser explicado como medida adotada para que seja iniciado o
processo que vai redundar na condenação ou absolvição de quem estiver sendo
acusado por crime.
Aliás, a natureza processual do
direito de ação é tema inquietante principalmente pelo fato de seu
enquadramento da ação penal no sistema legal normativo. Poucas referências
existiram no Código Criminal de 1830. Pondera Frederico Marques que as regras
contidas nos arts. 100 e 100 do atual Código Penal brasileiro melhor estariam
se fossem postas no CPP.
Porém o fato de ser disciplinada no
CP não lhe fere a natureza jurídica que continua mesmo sendo processual, aliás,
sobre o caráter adjetivo da norma alega G.
Leone, que não se infere da sua localização e, sim do objeto de sue
conteúdo, de sua finalidade.
Realmente, existem normas no
processo penal que não possuem evidentemente o caráter processual penal, como
àquelas relativas à prisão administrativa (arts. 319 e 320 do CPP).
A ação penal é um momento da persecutio criminis e, o inquérito
policial não integra processo, mas compreende-se no procedimento, pois,
enquanto o primeiro é atividade jurisdicional que objetiva a aplicação da lei,
o procedimento é o modo pelo qual essa atividade se realiza e se efetiva.
Conceituou a ação penal João Mendes de Almeida Júnior como “o
direito de invocar a jurisdição do juiz é um atributo do autor; é o direito de
requerer em juízo aquilo que é devido ao autor” – jus persequendi in judicio, quod sibi debetur, como define Celso,
reproduzido nas Instituta de Actionibus.
Em suam, a ação é o direito de
invocar-se o Poder Judiciário para aplicação do direito objetivo e que se
subordina a condições.
Em princípio, toda a ação penal é
pública, pois é corresponde a um direito subjetivo perante o Estado-Juiz. A
distinção que se faz de ação pública e privada repousa unicamente na
legitimidade para agir.
Assim, a pública a ação quando
movida pelo próprio Estado -Administração, por intermédio do ministério Público
que é órgão de natureza especial do Executivo, não se subordinando como outros
órgãos e guardando inteira soberania no processo.
O Código de Processo Criminal foi
alterado duas vezes, em 3/12/1841, logo após D. Pedro II assumir o trono, aos
14 anos foi editada a Lei 261 famosa por ter feito um retrocesso: a reforma
reduziu toda a liberdade do ordenamento processual ao subtrair dos juízes de
paz as atribuições de investigar de investigar para entregá-las aos chefes de
Polícia e seus delegados. Naquele momento da história o fortalecimento do
aparato policial repressivo foi medida reacionária centralizadora.
A reforma de 1841 fortaleceu o
aparato repressivo do Estado, em época de crise na sociedade agravada por rebeliões
que agitaram o país com abdicação do primeiro imperador em 1831.
Os liberais estavam profundamente
descontentes e iniciou-se em 1845 um movimento para nova reforma que só viria a
se concretizar em 1871.
Foi a Lei 2.033, em 1871 que criou o
inquérito policial instrumento com nomen
iuris que ate hoje documenta as investigações de crime e de autoria
realizadas pela Polícia.
O regulamento desta lei, de no.
4.284 menciona em seu art. 42, que o inquérito “consiste em todas as
diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas
circunstâncias e de seus autores e cúmplices”. Embora o sistema de investigação
já existisse, é em 1871 que aparece com tal denominação e vinculado à atividade
policial.
A inquirição realizada pela
autoridade policial no inquérito policial servia para auxiliar a autoridade
judiciária ou o promotor posteriormente, quando, neste exato instante era
produzida a prova que resultaria na propositura da ação penal.
A apuração preliminar do crime
voltava para os juízes que eram auxiliados pela polícia. Era crença geral que
com isso se resolveria o impasse gerado com difícil separação entre as funções
da polícia e da judicatura.
A Constituição de 1891 com um Brasil
já republicano trouxe em seu bojo, o federalismo e a descentralização do poder.
E, com isto, surgiu a possibilidade de cada Estado ter seu próprio Código de
Processo Penal. Nem todos criam suas próprias legislações. Rio de Janeiro,
Maranhão, Rio Grande do Sul, Amazonas e outros criam suas leis processuais.
Estabeleceu a Carta Magna
republicana, direitos e garantias que deveriam ser observadas por todos e,
entre estas, a extinção das penas de morte ( com exceção da estabelecida nas
leis militares para tempos de guerra).
É indispensável abordarmos o habeas corpus que é a ação que visa
livrar o cidadão de uma constrição penal ilegítima e ilegal. No Brasil, tal
instituto apareceu, pela primeira vez, mencionada no Código Criminal de 1830 e
no Código de Processo Criminal de 1832 e, partir daí, permaneceu no ordenamento
jurídico pátrio, embora seu alcance tenha variado.
Em momentos de ditadura sua
aplicação se restringia, o Ato Institucional 5, de 1968 vedou sua utilização
quando o crime fosse político, contra a segurança nacional, a ordem econômica e
economia popular..
Bem antes disto, em 1937 na era
getuliana a Carta Constitucional havia fixado que, no estado de emergência, os
juízes não poderiam interferir nas prisões e desterros, apesar de não suspender
literalmente o habeas corpus.
Então, o habeas corpus em 1891 podia ser utilizado para combater toda e
qualquer violência ou coação, apenas aquelas que afetam a liberdade.
Mesmo com a criação posterior da
medida chamada de mandado de segurança, o habeas corpus concentrou-se na defesa
da liberdade e, portanto, passou a ser disciplinado pelo direito processual
penal.
Residualmente, restou ao mandado de
segurança a missão que até hoje guarda em sua essência que é coibir abuso de
poder não incidente sobre a liberdade.
Ao impetrar o habeas corpus,
provoca-se o Poder Judiciário para que em posição de reexame e correição
determine o fim da coação praticada por outro juiz ou por autoridade envolvida
na investigação criminal.
O habeas corpus pode procurar a soltura do paciente (que é como se
chama a pessoa que resta constrangida), o trancamento da ação penal ou a
anulação de ato que, embora não atingindo necessariamente a liberdade, sempre
estará violando, já que no processo penal, é sempre o direito de ir e vir que
está, em última análise em jogo.
É especificamente com Rui Barbosa que o habeas corpus adquire uma importância política, pois possibilitou
ao Poder Judiciário a interferência indispensável na solução de algumas
questões.
A sua grande contribuição foi
demonstrar da importância política do direito e, ainda a importância jurídica
da política. Rui Barbosa consagrou a
união do direito com a política e, provou que o direito, não obstante possa e
deva ser construído segundo critérios sistemáticos objetivos, nunca está
dissociado da política. E o direito pode e deve ser instrumento, portanto, para
o alcance das finalidades republicanas.
Rui
Barbosa como advogado, defendendo
acusados por crimes políticos, perante o recém-criado Supremo Tribunal Federal
foi inovador, pois com suas ações permitiu que o Judiciário pudesse exercer o poder
que a ordem jurídica lhe atribuía.
Ao impetrar os inúmeros habeas corpus em sua brilhante carreira
jurídica, Rui Barbosa provou que
representava a comunidade inteira, e, agia, sobretudo em nome da ordem
jurídica.
Qualquer pessoa do povo pode
impetrar ordem de habeas corpus em
favor da pessoa cuja liberdade esteja em perigo por ato de autoridade.
Pois é ação que pode ser promovida
sem a interferência de advogado, que bem espelhou seu discurso proferido em 26
de março de 1989 no Supremo Tribunal Federal, in verbis: “A liberdade não entra no patrimônio particular, como as
coisas que estão no comércio, que se dão, trocam, vendem, ou compram: é um
verdadeiro condomínio social; todos o desfrutam, sem que ninguém o possa
alienar, e, se o indivíduo, degenerado, a repudia, a comunhão, vigilante, a
reivindica”.
Rui
Barbosa acreditava que o Poder
Judiciário devia rever e corrigir os atos do Poder Executivo, e muito se
dedicou para demonstrar tal premissa.
Naquele tempo, os julgamentos no STF
eram freqüentados pelo povo que aplaudiam, rechaçando as teses defendidas. Tal
fenômeno hoje não tem mais lugar, pois a justiça afastou-se das pessoas comuns
e só alguns poucos advogados e acadêmicos assistem às sessões, embora estas
sejam públicas.
Excepcionam-se, os casos em que a
imprensa como intermediária entre os processos e a sociedade, transmitindo as
informações e formando opinião que, depois, repassam aos que realizam o
processo penal.
As atividades do STF iniciaram em
1892, e no mesmo ano, passou a decidir importantes casos em que se discutia
direitos e garantias individuais.
Durante o governo de Floriano
Peixoto que sucedeu ao de Deodoro da Fonseca, foi decretado o estado de sítio,
quando foram presas muitas pessoas, até mesmo alguns deputados protegidos por
imunidade parlamentar.
Entre estes, estavam o almirante
Eduardo Wanderkolk, Olavo dos Guimarães Bilac, José Carlos do Patrocínio, além
de muitos coronéis e tenentes. Há a sinistra possibilidade de desterro dos
presos para lugares inóspitos como a Amazônia, para aonde muitos foram
enviados.
Então, Rui Barbosa não hesitou e impetro a valiosa ação e, perdeu.
Conta-se que o julgamento foi ocasião de especial expectativa, tendo sido
avisado que Rui Barbosa sofreria atentado no STF.
Embora derrotado, Rui mostrou o valor
do habeas corpus como meio de
controlar o Executivo e proteger direitos e garantias individuais. Alegara que
o estado de sítio não poderia ter sido decretado e, por tal razão, as prisões
ocorridas eram ilegais.
Cogitaram os ministros que o
Congresso deveria manifestar-se sobre o estado de sítio. O STF andava cauteloso
em questionar o Executivo. È uma decisão histórica que merece mesmo uma
leitura.
Noutra ocasião, o “águia de Haia”
impetrou o habeas corpus que
destinava a libertar os militares e civis que, no navio Júpiter, quiseram
invadir cidade do Rio Grande, para apoiar os rebeldes. Ele obteve, contudo,
apenas uma vitória parcial, com resultado libertador para os civis.
Muito recentemente, tive a grata
oportunidade de assistir a apresentação de monografia de final de curso de
Direito na Estácio, Campus Méier, do aluno Rodrigo
Guerra Peres Cespes que tratava do cabimento do habeas corpus nas transgressões disciplinares militares.
Onde é interessante frisar que a
transgressão disciplinar militar é antes de tudo, um ato administrativo. Pontes de Miranda bem traduz a
transgressão disciplinar militar “na obediência por parte dos subordinados às
ordens dos superiores, comportando-se assim dentro da esfera do dever de
obedecer e do direito de mandar”.
Em que pese que boa parte da
doutrina repudie a aplicação do habeas
corpus à esfera militar, a indagação acerca da inconstitucionalidade do
art. 142, parágrafo segundo, da Constituição Federal Brasileira, é certo que
não há.
Pois nosso sistema jurídico
diferentemente o da Alemanha não admite a inconstitucionalidade das normas
constitucionais originárias, portanto, o direito pátrio interno adota somente o
controle da constitucionalidade das normas infraconstitucionais em face da
Constituição vigente.
Revela-se que a má técnica do
legislador constituinte originário fazendo constar a restrição do habeas corpus nas transgressões
disciplinares disciplinada no título “Da defesa do estado e das Instituições
Democráticas” e, não mais no título “Dos Direitos e Garantias Individuais”.
Acrescenta Paulo Tadeu Rodrigues Rosa que se fosse a intenção do constituinte
de limitar o seu cabimento nas transgressões disciplinares o teria feito
expressamente no título dos “direitos e garantias fundamental”, o que não
ocorreu.
Se a punição foi imposta por
autoridade manifestamente incompetente, ou de qualquer modo, ao arrepio das
normas regulamentares que vinculam a ação do superior que pune, a ação heróica
é certamente cabível.
Desta forma, em relação ao binômio liberdade-prisão,
a regulamentação constitucional, referente a toda espécies de prisões quer
sejam penais, processuais, civis e disciplinares.
Concluiu o brilhante graduando Rodrigo Cespes pela total
insubsistência das chamadas prisões para averiguações, inclusive no regime
castrense, que consistem em verdadeiro desrespeito ao direito de liberdade e
são passíveis de responsabilidades, seja ela civil, criminal e por ato de
improbidade administrativa.
Com efeito, o art. quinto da CF
estabelece entre outros princípios o da isonomia, preceituando que todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
A prisão administrativa decreta não
subtrai do militar sua condição de cidadão e, nem mesmo seus direitos e
garantias constitucionais fundamentadas e vigentes na Carta Magna.
Desta forma, se a prisão
administrativa fora praticada com ilegalidade, encontra-se sujeita ao controle
jurisdicional do Judiciário.
Portanto, o habeas corpus não discute o mérito da prisão administração e nem
das questões disciplinares militares e, sim, a legalidade da aplicação da
sanção constritiva da liberdade de ir e vir. O habeas corpus é antes de tudo um writ e, sobretudo uma forma de controle de legalidade do exercício
do poder proferido pelo Executivo.
O presente artigo traça mui
parcialmente breves considerações sobre a história do processo penal
brasileiro, sem contudo, jamais exaurir o tema, mas visando dar uma idéia pelo
menos panorâmica para entendermos as principais características dominantes no
processo penal pátrio.
Bibliografia:
BAJER, Paula Processo penal e
cidadania, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, Ed., 2002.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa
Manual de processo penal, São Paulo, Saraiva, 2002.
NORONHA, E. Magalhães Curso de
direito processual penal, São Paulo, Saraiva, 2002.
CESPES PERES, Rodrigo Guerra, in monografia intitulada “Cabimento do
Habeas Corpus nas transgressões disciplinares militares”, orientada pelo
brilhante professor Antônio Carlos Martins, Rio de Janeiro, julho de 2003.
Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.
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