MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Sociologia e Antropologia. Tradução: Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p. 153-162.[1]
Marcel Mauss apresenta sua obra, a teoria sobre o dom, como um fundamento para as relações sociais nas civilizações arcaicas, e, tenta demonstrar, os resquícios da dádiva nas sociedades antigas e modernas, “Elas podem servir para explicar historicamente as nossas sociedades.” [2]. Percebe-se então que “o objeto do Ensaio não é a economia primitiva, mas a circulação de valores como um momento do estabelecimento do contrato social.” [3]. Esses vestígios da dádiva também podem ser encontrados no direito romano, e isso fica bastante claro com a explanação de algumas características desse direito, o traditio e o furtum, por exemplo. É importante ressaltar que a sociedade romana se situa historicamente na idade antiga, uma fase de transição entre a predominância da dádiva de um lado, nas sociedades arcaicas (ou primitivas), e a compra e venda do outro lado, nas sociedades contemporâneas.
É possível perceber algumas características dos povos primitivos que reincidem no direito romano. Encontra-se, nas instituições contratuais do antigo direito romano, sinais que evidenciam essas características reincidentes.
“Exemplo de contrato inominado encontra-se no caso em que um romano convenciona em dar a outro um escravo – Plautus – que, em compensação, receberá outro escravo, Maevius. Quando se convenciona tal troca, ainda não existe nenhuma obrigação, mas assim que é transferido o escravo Plautus, a outra parte está obrigada a entregar o escravo Maevius.”[4]
Nesse trecho é evidente a obrigação da retribuição da dádiva. Na verdade se dá e se retribui respeito. Percebem-se, no contrato, os dois elementos do potlatch: a honra, o prestígio, e a obrigação de retribuir a dádiva [5]. Na Troca (permutatio rerum) essa obrigação se torna ainda mais clara, “Troca (…) é um contrato inominado (…) pelo qual uma pessoa entrega uma coisa determinada a outra pessoa, obrigando esta a entregar-lhe outra coisa.”[6]. É importante lembrar que os contratos inominados, atípicos e sem nomenclatura específica, só foram reconhecidos pelo direito romano depois de um determinado tempo, “Em princípio as convenções inominadas são simples pactos (…) que não dão nascimento a nenhuma actio…” [7], ou seja, eram contratos espontâneos e obrigatórios, simultaneamente, pois não gerava a nenhuma “actio, a ‘ação’, ou seja, o direito de perseguir diante do magistrado aquilo que nos é devido…” [8].
A noção de força da coisa, de um vínculo espiritual da coisa, não foi totalmente abandonada no direito romano, estando presente na tradição:
“Mauss nota a associação entre essas “coisas que passam” e a idéia de tradição. A raiz dessa palavra é a mesma da palavra que significa “comércio” em inglês (trade). A idéia é que as coisas criam vínculos espirituais: tradição. Neste sentido, a tradição é o que fica daquilo que passa”.[9]
A tradição para os romanos é bastante semelhante ao hau dos povos primitivos. “Quase todos os termos do contrato e da obrigação, e um certo número das formas desses contratos, parecem relacionados a esse sistema de vínculos espirituais criados pelo fato bruto da traditio.” [10]. Existe um vínculo espiritual nas coisas que parece explicar essa retribuição obrigatória nos contratos romanos, pode-se ver que a não circulação das coisas significa paralisar o fluxo da traditio, perder a tradição é perder a “honra”, isso também implica a obrigação de retribuir. Mauss mostra como esse fluxo se apresenta no contrato, “O contratante é, em primeiro lugar, reus: é antes de tudo o homem que recebeu a res de outrem, tornando-se assim o seu reus, isto é, o indivíduo que está ligado a ele pela coisa mesma, ou seja, por seu espírito.” [11]. No contrato os indivíduos criam esses vínculos espirituais pela coisa mesma, o seu espírito, ou tradição. “Mauss nota que a noção romana de réu, antes de assumir o sentido de ‘culpado’, indicava o homem possuído pela coisa. ‘A inferioridade espiritual’ que caracteriza aquele que recebe algo seria uma ‘quase culpa’.” [12].
Outra instituição romana que exemplifica esse vínculo da pessoa com a coisa é o nexum, a mais antiga forma de contrato do direito romano:
“Mauss mostra que, no nexum romano, o credor se vincula ao devedor como recipiente de uma dádiva ao seu doador: em uma relação de empréstimo, ‘o indivíduo que recebeu a coisa é ele mesmo, ainda mais que comprado, aceito pelo empréstimo’, ou ainda, ‘o mero fato de ter aceito algo de alguém torna o indivíduo obrigado’.”[13]
Percebe-se então que se fundem pessoas e coisas, tal é o liame entre eles. Esse vínculo espiritual que existia entre a coisa e o indivíduo só é possível porque, a princípio, no antigo direito romano, não existia uma separação precisa entre Direito Real e Direito Pessoal, ou seja, entre a pessoa e a coisa. Gradativamente, com o fortalecimento da distinção entre esses direitos, o vínculo que existia entre a pessoa e o objeto vai se enfraquecendo. Obstante essas distinções só ganharam a força que possuem recentemente.
Mas ainda assim é possível encontrar vestígios do dom nas sociedades modernas. “Uma parte considerável de nossa moral e de nossa própria vida permanece estacionada nessa mesma atmosfera em que a dádiva, obrigação e liberdade se misturam.” [14].
“Para Mauss, a dádiva, nas sociedades modernas, estaria “embutida na compra e venda”, e não paralela ou independente desta. Mauss minimiza a importância das relações de “pura dádiva” no capitalismo, eximindo-se de uma análise de momentos como o do Natal, o das festas e das relações de hospitalidade na moderna civilização ocidental.”[15]
Pode-se concluir que, da mesma forma que a dádiva, como circulação de valores, esteve presente na sociedade romana, ela pode ser encontrada nas sociedades modernas, ainda que sufocada pelo capitalismo e pelo liberalismo econômico.
Acadêmico de Direito pela Faculdade Milton Campos
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