Na primeira edição do meu livro “Imposto de Renda das Empresas” editado em 2004 (Atlas), sustentei que a figura da desconsideração da personalidade jurídica, ao menos de acordo com a configuração que lhe foi dada pelo art. 50 do Código Civil de 2002, não seria aplicável ao direito tributário.
Na ocasião sustentei – e agora repito – que, para fins tributários, a responsabilidade dos sócios e administradores está delineada nas regras dos artigos 134 e 135 do CTN que não seriam atingidas pelas regras do Código Civil de 2002. De fato, como observei, a matéria “responsabilidade” está sob reserva de lei complementar, com fulcro no art. 146 da Constituição Federal, o que impediria a “recepção” do art. 50 do Código Civil pelo direito tributário material. Ademais, as normas constantes do CTN têm o papel de lex specialis que afastam as normas gerais porventura editadas após o seu advento, como são as constantes do Código Civil.
Em resumo, a recepção da desconsideração da personalidade jurídica, para fins de atribuição de responsabilidade, não seria aceitável em face da dupla demanda do princípio da especialidade. A especialidade de fonte; que, nesta matéria, exige Lei Complementar; e, especialidade eficacial, ou seja, as normas do CTN seriam consideradas especiais e não atingidas pelas regras gerais do Código Civil.
Neste singelo estudo – que faz parte de um outro ora em andamento – pretendo tratar da desconsideração da personalidade jurídica como sinônimo de fraude ou simulação, tema que já desenvolvi em outro livro, que foi recém publicado pelo MP Editora. Trata-se de uma outra “face” da desconsideração da personalidade: aquela em que o foco das análises dirige-se para as questões pertinentes à validade dos atos ou negócios com o uso de personalidade jurídica sem que haja uma preocupação mediata ou imediata com a imputação de responsabilidade a uma pessoa diferente daquele que faz parte de uma relação jurídica obrigacional, como é próprio da desconsideração da personalidade jurídica em sua compleição ordinária.
Pois bem, são raros os precedentes jurisprudenciais acerca da desconsideração da personalidade jurídica em matéria tributária, mas existe uma antiga decisão do Conselho de Contribuintes que pode ser de grande valia para os estudiosos do assunto e para balizar eventuais decisões sobre planejamento tributário.
A Câmara Superior do Conselho de Contribuintes, quando do julgamento do Recurso RD/105-0.119 (Acórdão CSRF/ 01-0.967) debruçou-se sobre um Recurso interposto pela Procuradoria da Fazenda Nacional contra decisão de uma de suas Turmas que determinou o cancelamento de auto de infração lavrado contra contribuinte, no qual as autoridades fiscais qualificaram determinados fatos a partir da figura da desconsideração da personalidade jurídica.
O caso, julgado em 28 de novembro de 1989, envolvia uma sociedade por quotas de responsabilidade limitada cuja maioria das quotas de seu capital, precisamente 99,99%, pertencia a sociedade com sede em Aaron, na Suíça, e que era intermediária em operações que envolviam a sua matriz e empresas localizadas no Brasil e recebia uma remuneração sob a forma de comissão sobre o valor das vendas, e que, além disso, adquiria e vendia outras mercadorias. Para fundamentar a lavratura do auto de infração, a fiscalização qualificou o contribuinte como filial de fato da matriz suíça e exigiu imposto de renda calculado por arbitramento previsto no art. 270 do Regulamento do Imposto de Renda de 1980, que corresponde ao art. 399 do atual Regulamento aprovado pelo Decreto nº 3.000, de 26 de março de 1999. É importante salientar que a atuação não se deu por falta de recolhimento do imposto, mas sim por diversidade de qualificação dos fatos tributáveis; as autoridades fiscais entenderam que a despeito de haver uma sociedade regularmente constituída no País, as operações que ela realizou teriam sido em nome da matriz e não em seu próprio nome, como afinal, o sujeito passivo qualificara.
Nas razões do Recurso contra a decisão da 5a Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes – que fora favorável ao sujeito passivo – a Procuradoria da Fazenda Nacional, sustentou o cabimento do apelo porquanto era correto questionar se a autuada tinha, de fato e de direito, sede e administração no Brasil ou se, sob a “fachada” de empresa independente, estava oculta a realidade de mera filial de matriz estrangeira.
A certa altura, segundo está escrito no Relatório da lavra do eminente Antônio da Silva Cabral, a Procuradoria teria dito o seguinte: “a caracterização de uma filial não se prende a conceitos legais restritos. Constitui um prolongamento do estabelecimento matriz, com o qual mantém estrito relacionamento em razão do poder de mando e direção detido por aquela. O fato da destinação de uma parcela do capital social para as atividades da filial e o registro no órgão competente, são elementos irrelevantes para configurar a independência do estabelecimento nacional que se apresenta, na verdade, como uma longa manus da sede estrangeira”.
Também do Relatório consta a justificativa apresentada pela fiscalização em informação fiscal posterior à lavratura do auto de infração. As palavras são reveladoras da idéia de desconsideração da personalidade jurídica: “a fiscalização em momento algum disse não se tratar a impugnante de uma empresa brasileira, mas tão somente a classificou como uma “filial de fato” e, ainda agora o reitera; pois, a empresa estrangeira detém 99,99% (noventa e nove inteiros e noventa e nove centésimos por cento) do capital da autuada e, portanto, só não se trata de matriz de direito e de fato da peticionária face a um sofisma muito comum hoje em dia, quando empresas estrangeiras se estabelecem no Brasil e cedem parcelas insignificantes do capital atribuído às suas filiais, no caso, 0,01% (um centésimo por cento) a uma ou mais pessoas a fim de aparentar uma sociedade independente”.
O nome de batismo adotado pelas autoridades fiscais (filial de fato) é revelador de que, no caso, não importava o que o direito dizia: importava o fato considerado de uma perspectiva exclusivamente econômica. Em outro dizer, as autoridades fiscais foram às últimas conseqüências da desconsideração da personalidade jurídica lançando mão do princípio da “prevalência da substância sobre a forma” e suas variações.
O Relator, de forma sagaz e com argúcia, pôs a nu a verdadeira intenção as autoridades fiscais; elas vislumbraram, naquele caso, uma verdadeira simulação. Diz o douto Relator: “no caso, segundo a fiscalização, ter-se-ia uma vontade real, que consistiria em criar uma filial no Brasil da X suíça; de outro, ter-se-ia a vontade aparente, que seria a criação de uma empresa brasileira autônoma diversa da empresa suíça”.
É certo que, do ponto de vista societário, o poder de controle absoluto sobre a vida da pessoa jurídica implica, no mais das vezes, uma verdadeira longa manus do sócio ou acionista controlador com resultados práticos idênticos ao de uma simples filial. Os critérios de diferença, em termos jurídicos, entre uma sociedade controlada (ou unipessoal) e uma filial são sempre estipulados pela lei e não é incomum ocorrer que a uma e outra figura tenham a mesma qualificação ou estejam sob um mesmo regime jurídico. Todavia, quando a lei não quer ou não cogita desta equiparação não cabe à administração fazê-lo sob pena de agir contra legem e de forma arbitrária.
No caso concreto foram suscitados, também, problemas relacionados com a dupla ou múltipla tributação da renda em nível internacional. Em termos de direito tributário, quando a situação envolve residentes de um país que queira realizar negócios em território estrangeiro, entram em jogo as normas constantes de tratados ou acordos internacionais que veiculam elementos de conexão e qualificação de situações como a experimentada pelo contribuinte do caso concreto que, a despeito de estar regularmente constituído sob a forma de pessoa jurídica com sede e administração no país, foi tratada como uma filial de fato de empresa estrangeira o que, naquele específico caso, abstraindo-se as demais questões fáticas e jurídicas, traduziria em diferença de imposto a recolher.
Assim sendo, a legislação tributária brasileira poderia, em certas circunstâncias, desconsiderar a personalidade jurídica, desde que observados, no entanto, os limites impostos pelos artigos 109 e 110 do Código Tributário Nacional ou outra regra de direito positivo. O fato é que, no caso concreto, a legislação não permitia tal desconsideração tanto que as autoridades fiscais tentaram enquadrar a empresa (a pessoa jurídica legalmente constituída em pleno e regular funcionamento) como uma filial de fato sem negar a existência da pessoa jurídica. Sabedoras de que o direito não lhes acudia, as autoridades fiscais passaram a legitimar a sua ação com base em fatos; ocorre que o fato sem o direito é simples evento natural e, portanto, não serve de suporte válido para qualquer espécie de lançamento tributário que deve ter supedâneo em lei ou diploma normativo equivalente.
No caso, a decisão não deixou de considerar a questão sob o ângulo do negócio jurídico indireto. Em seu voto o douto Relator, com apoio na doutrina de Tulio Ascarelli, escreveu: “um negócio indireto é constituído pela transformação de uma filial de uma sociedade estrangeira em sociedade formalmente autônoma, hipótese esta bastante discutida, há anos, na Itália, sob o ponto de vista de simulação ou sob aquele de fraude fiscal”.(Problema das sociedades anônimas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1969, p. 145).
Portanto, temos aí um caso de desconsideração da personalidade jurídica, para fins fiscais, em que a fiscalização entendeu que a sociedade brasileira – incorretamente rotulada como “filial de fato” não tinha nenhuma outra finalidade senão obter um regime tributário mais favorável. Ocorre que, no caso, a sociedade brasileira não era apenas uma “sociedade de papel”; ela praticava atos regulares de comércio e mantinha corretamente escrituradas as suas operações. A qualificação da sociedade como “filial de fato” só seria legítima se houvesse sido comprovada a ocorrência de fraude ou simulação de modo a permitir a desconsideração da personalidade jurídica.
Advogado em São Paulo. Mestre e Doutor em Direito Público pela PUC-SP. Autor dos livros: Sociedade de Responsabilidade Limitada 1. ed. São Paulo: Quartier Latin 2004; Planejamento Tributário 2. ed. Saraiva 2016; e Imposto de Renda das Empresas 13. ed. Atlas 2016
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